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Separação de Abrão e Ló | Gênesis 13:1–18

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 1 de set.
  • 5 min de leitura
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Após sua saída problemática para o Egito (Gn 12:10-20), Abrão retorna à terra prometida e volta ao “lugar do altar” em Betel, retomando a comunhão com Deus (v.3-4). Isso marca um recomeço espiritual para Abrão, que agora enfrenta um novo desafio: o conflito com seu sobrinho Ló devido à prosperidade de ambos. O capítulo divide-se em cenas bem definidas:


(1) Viagem de volta e prosperidade (vv.1-5), mostrando Abrão e Ló riquíssimos em gado, prata e ouro;


(2) Conflito entre pastores (vv.6-7), pois “a terra não podia sustentá-los habitando juntos” e havia contenda entre os pastores de Abrão e os de Ló – agravada pela presença de outros povos (os cananeus e fereseus) competindo por pastagem;


(3) Proposta magnânima de Abrão (vv.8-9), buscando paz;


(4) Escolha de Ló (vv.10-13), que escolhe as planícies do Jordão próximas de Sodoma;


(5) Renovação da promessa divina a Abrão (vv.14-17); e


(6) Abrão estabelece-se em Hebrom (v.18). Essa estrutura em cenas destaca intencionalmente o contraste entre as trajetórias de Abrão e Ló.


Diante da contenda, Abrão age com notável generosidade e humildade para manter a harmonia familiar. Ele diz a Ló: “Não haja discórdia entre mim e ti... porque somos irmãos” (v.8). O uso da expressão “somos homens irmãos” sugere: “Somos parentes, não devemos brigar; homens não deveriam contendar, muito menos irmãos”. Abrão abre mão de seus direitos de primogenitura/tutela e dá a Ló a prioridade de escolha da terra (v.9). Essa atitude altruísta de Abrão é vista pelos comentaristas como modelo de conduta para o povo de Deus. Deus confirma esse espírito pacífico de Abrão: logo após Ló se apartar, o Senhor aparece para reiterar e até ampliar as promessas a Abrão (vv.14-17), o que funciona como um “selo divino de aprovação” sobre a atitude de Abrão. De fato, “a repetição das promessas coloca o selo divino na conduta de Abrão para com Ló”. A conduta de Abrão exemplifica o princípio de “bem-aventurados os pacificadores” (Mt 5:9), e essa virtude de buscar a paz permeia toda a Escritura (Sl 133:1; Hb 12:14).


Ló ergue os olhos e vê a planície do Jordão, bem irrigada “como o jardim do Senhor” (v.10), e decide por si mesmo tomar aquele lugar fértil. Do ponto de vista humano, sua escolha pareceu excelente para o gado e riquezas; porém, o texto ressalta que aquela era “antes de o Senhor destruir Sodoma e Gomorra” (v.10) e que os habitantes de Sodoma “eram maus e grandes pecadores contra o Senhor” (v.13). Ou seja, Ló escolheu baseado apenas em critérios materiais, sem ponderar os riscos espirituais e morais de se aproximar de Sodoma. Seu movimento é descrito de forma ominosa: ele vai “para o oriente” (v.11). No Gênesis, “ir para o leste” frequentemente simboliza afastar-se do centro da vontade de Deus (como Caim em 4:16 e a humanidade na torre de Babel em 11:2). Ló aproxima-se cada vez mais de Sodoma – primeiramente acampando “até Sodoma” (v.12) – e assim “virou as costas” para Canaã e para Abrão. Essa escolha, feita por cobiça dos olhos, terá consequências trágicas: o narrador já insinua que Ló caminhava rumo ao desastre, “edging away” da bênção de Abrão rumo à “cidade da destruição”. Como observou certo expositor, “Ló, quando imaginava estar vivendo no paraíso, quase foi lançado nas profundezas do inferno”. A história de Ló torna-se, assim, um alerta sobre os perigos de decisões motivadas apenas por vantagens aparentes, sem considerar os valores espirituais.


Depois que Ló se separa, o Senhor fala novamente com Abrão (v.14). Há um paralelo intencional: Ló “levantou os olhos e viu” (v.10) e tomou para si; agora Deus manda Abrão “levantar os olhos e olhar” em todas as direções (v.14) e promete dar-lhe toda aquela terra que ele vê, “para sempre”, a ele e à sua descendência. Além disso, se antes Deus já prometera fazer de Abrão uma “grande nação” (12:2) e dar a terra à sua descendência (12:7), agora especifica muito mais: “Farei a tua descendência como o pó da terra” – incalculável! (v.16). Ou seja, não será apenas uma nação qualquer (que no mundo antigo podia ser um povo pequeno), mas uma multidão incontável. Assim, “ambos os aspectos da promessa – terra e descendência – são amplificados de forma extraordinária” nessa renovação da aliança. Deus também manda Abrão percorrer “o comprimento e a largura” da terra (v.17), um gesto que simboliza posse legal, como quem caminha demarcando o território recebido. Abrão obedece e muda-se para Hebrom, junto aos carvalhais de Manre, estabelecendo-se no coração da terra de Canaã (v.18). Ali ele ergue mais um altar ao Senhor, mantendo a prática de culto e consagração da terra a Deus. Hebrom (e Manre) terão grande importância posteriormente: torna-se centro das próximas narrativas (Gn 14–19 acontecem ali por perto) e lugar onde Abrão, Isaque e Jacó seriam sepultados – a primeira propriedade que Abrão oficialmente comprará na terra (Gn 23). O altar em Hebrom reforça que Abrão continua andando pela fé, adorando a Deus e tomando posse da promessa de forma devocional.


O relato sugere que a experiência de Abrão serve de protótipo para eventos futuros com seus descendentes. Vemos ecos claros da vida de Abrão na história posterior de Israel: Assim como Abrão saiu do Egito com grandes bens e seguiu “por etapas” até Betel (v.3), Israel sairá do Egito com riquezas e viajará “por jornadas” pelo deserto (Êx 17:1; Nm 33). Abrão teve conflito de pastores e separou-se de um parente; Isaque enfrentará contenda entre pastores em Gerar (Gn 26:20-22) e Jacó separar-se-á de Esaú por causa de posses demasiado grandes para coabitar (Gn 36:6-7). Abrão edificou um altar em Betel tanto ao chegar quanto ao retornar; Jacó, seu neto, terá uma teofania em Betel ao deixar a terra e também edificará um altar em Betel ao retornar (Gn 28:10-19; 35:1-7). Ló se associou às cidades pervertidas da planície; séculos depois, os israelitas no deserto enfrentariam os descendentes de Ló – moabitas e amonitas – e receberiam ordens de tratá-los com generosidade, sem conquista (Dt 2:9,19), assim como Abrão tratou Ló. Em todos esses paralelos, Abrão funciona como tipo (modelo) para o povo de Deus. Alguns estudiosos sugerem que Ló, especificamente, representa o tipo de atitude errada dentro do povo – aqueles que flertam com os valores mundanos (“talvez Ló seja visto como típico das atitudes erradas dentro da nação”). Sua atração pela “terra do Egito” (v.10) e por Sodoma antecipa o desejo frequente dos israelitas rebeldes de “voltar ao Egito” no êxodo (cf. Êx 16:3; Nm 14:2-4) – todos acabaram em ruína. Em contraste, Abrão encarna a resposta de fé que Deus busca: ele prioriza a paz, confia na promessa e por isso lhe é creditada justiça (15:6). Seu exemplo de fé e paz é exaltado em toda a Bíblia, de Levítico a Provérbios e de Hebreus a Tiago (Lv 19:17-18; Sl 133; Hb 12:14; Tg 3:17-18), como modelo do crente que busca a reconciliação. Não é de admirar que logo a seguir Deus o recompense com uma garantia ainda maior da aliança.

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