Sara e Abimeleque | Gênesis 20:1–18
- João Pavão
- 2 de set.
- 24 min de leitura

Após a destruição de Sodoma e Gomorra, Abraão muda-se para a região sul de Canaã, estabelecendo-se em Gerar (v.1) – território próximo ao deserto de Cades e Sur, na fronteira do Egito. Essa transição geográfica prepara o cenário para um incidente que espelha o episódio anterior no Egito (Gn 12:10-20): mais uma vez Abraão apresenta Sara como sua irmã e ela é tomada para o harém real. A narrativa de Gn 20 segue uma estrutura bem definida, alternando cenas narrativas (N) e diálogos (D) em forma quase palístrica (em “x”): Abraão em Gerar (v.1, N), o engano de Abraão (v.2a, D), tomada de Sara (v.2b, N), o sonho de Deus a Abimeleque (vv.3-7, D), Abimeleque alerta seus servos (v.8, N), Abimeleque repreende Abraão (vv.9-13, D), restituição de Sara (v.14, N), discurso de Abimeleque a Abraão e Sara (vv.15-16, D) e oração final de Abraão (vv.17-18, N). O foco central recai sobre dois diálogos principais: entre Deus e Abimeleque (vv.3-7) e entre Abimeleque e Abraão (vv.9-13). Essa disposição destaca, de um lado, a intervenção divina direta para proteger a promessa e, de outro, o confronto moral entre o patriarca e o rei gentio.
Do ponto de vista teológico e literário, o episódio explora temas cruciais: a recorrência do pecado (Abraão recaindo na mesma falha por medo), a soberania de Deus em proteger Seu plano da aliança, a presença do temor de Deus fora do círculo de Abraão, e a tensão entre a justiça divina e a integridade humana. A seguir, examinaremos versículo por versículo (ou em pequenos blocos) para desenvolver esses pontos, dialogando com o texto hebraico quando pertinente, traçando referências intertextuais e extraindo implicações doutrinárias (aliança, pecado, soberania, justiça etc.), além de informações históricas e culturais que iluminam a passagem.
Abraão em Gerar e a Repetição de uma Falha (20:1–2)
20:1. O versículo inicial estabelece o cenário: “Partiu Abraão dali para a terra do Neguebe, e habitou entre Cades e Sur; e peregrinou em Gerar” (ARA). A menção de “peregrinar” (heb. gûr, גּוּר) indica que Abraão vivia como estrangeiro residente, sem posse fixa de terra, cumprindo o chamado de deixar sua casa e confiar na promessa de Deus (cf. Hb 11:9). Gerar, conforme Gn 10:19, ficava no limite sul de Canaã, próxima à região filisteia e da fronteira com o Egito. Ao dizer “partiu Abraão dali”, o texto conecta este episódio ao contexto anterior em Hebrom/Mambré (Gn 18–19); possivelmente Abraão se deslocou buscando pastagens ou se distanciando da área calcinada pela destruição de Sodoma. Notavelmente, o redator usa aqui a mesma combinação de verbos de Gn 12:9–10 – nasá‘ (נסע, “partir/jornar”) e gûr (“peregrinar/habitar como forasteiro”) – sugerindo deliberadamente ao leitor que uma história semelhante à do Egito está para se repetir. De fato, em Gn 12 Abraão desceu ao Egito e, com medo de ser morto, passou Sara por sua irmã, o que levou Faraó a tomá-la em seu palácio. Agora, anos depois, Abraão cai na mesma estratégia questionável.
Abraão disse de Sara, sua mulher: “Ela é minha irmã”. Temendo por sua vida devido à beleza de Sara, Abraão recorre mais uma vez à meia-verdade que esconde o casamento deles. O texto é conciso – não reitera as motivações, presumindo que o leitor já conhece do capítulo 12 que Abraão estava com medo de ser assassinado para que tomassem sua esposa (Gn 12:11-13). De fato, sem o capítulo anterior como pano de fundo, o versículo seria enigmático. Isso corrobora a visão de que o autor de Gn 20 assume que a audiência conhece bem o incidente do Egito e agora quer que comparemos as duas situações.
Sara, aos 90 anos de idade (cf. Gn 17:17, 21:5), ainda era considerada desejável a ponto de entrar no harém de Abimeleque, rei de Gerar. Isso pode nos surpreender – como uma idosa pós-menopausa (Gn 18:11-12) atrai interesse para casamento? Algumas explicações são possíveis: (1) Pode ter havido motivações políticas – Abraão era rico e poderoso, e Abimeleque talvez visse em Sara (aparente irmã de um grande sheikh estrangeiro) uma oportunidade de aliança ou aquisição de propriedades. (2) Pode ser simplesmente um testemunho da graça de Deus preservando a saúde e beleza de Sara de forma notável mesmo na velhice. Há quem sugira, de forma intrigante, que Deus estivesse rejuvenescendo Sara em preparação para a concepção de Isaque, tornando-a novamente atraente e fértil. O texto não afirma diretamente, mas o fato intriga: estaria algo acontecendo no corpo de Sara para viabilizar o milagre vindouro? Seja como for, Abimeleque a toma para si: “Então Abimeleque, rei de Gerar, mandou buscá-la” (v.2b).
O nome Abimeleque (heb. ’Ăbīmeleḵ, אֲבִימֶלֶךְ) significa “meu pai é rei”. Era provavelmente um título dinástico comum entre os filisteus ou cananeus – veremos outro “Abimeleque” no tempo de Isaque (Gn 26:1) e até nos títulos de salmos (Sl 34, referindo-se a Aquis, rei de Gate). Isso dificulta saber se era o mesmo indivíduo nos vários textos ou apenas o título real de qualquer governante local. Em todo caso, Abimeleque aqui representa os povos cananeus/filisteus com quem Abraão interage. Ao tomar Sara para seu harém, o rei age de acordo com as normas da época – monarcas frequentemente anexavam mulheres bonitas ou de clãs influentes à sua casa. Porém, tal ação, no caso de Sara, coloca em risco a integridade da linhagem da promessa, criando o conflito central do capítulo: a esposa do patriarca está em mãos estrangeiras, e a promessa de um filho (Isaque) parece ser ameaçada.
O Sonho Divino: Deus Adverte Abimeleque (20:3–7)
Quando Sara está sob custódia de Abimeleque, Deus intervém diretamente antes que ocorra qualquer transgressão irreversível. “Deus, porém, veio a Abimeleque em sonhos de noite, e disse-lhe: Eis que és morto por causa da mulher que tomaste; porque ela tem marido” (v.3, ARC). Este sonho oracular destaca a seriedade do caso aos olhos divinos. A frase “eis que estás morto” (heb. hinêḵā mēṯ, הנה֣ך מת) é uma expressão de juízo iminente – um anúncio direto de morte sobre Abimeleque. Não é exagero retórico: Deus está avisando que Abimeleque incorreu na pena capital por ter tomado uma mulher casada.
No antigo Oriente Próximo, o adultério era universalmente reconhecido como “grande pecado”, punível com a morte tanto na legislação mosaica (Lv 20:10; Dt 22:22) quanto em códigos pagãos. Mesmo não havendo ainda Lei escrita, Abimeleque devia conhecer esse princípio moral. O próprio Deus afirma que Sara é “casada com marido” – literalmente, ba‘al be‘ulat ba‘al (בְּעֻלַת־בָּעַל), uma expressão hebraica forte que significa “possída por um senhor”, enfatizando que ela pertence em aliança exclusiva a um marido. Tomá-la era usurpar algo que pertence a outro – “o pior tipo de furto”, comenta Wenham. Por isso, Deus declara que Abimeleque está sob sentença de morte. É notável que Deus toma a iniciativa de proteger Sara: em vez de esperar que Abraão a reivindique, é o Senhor mesmo quem se faz “marido lesado” exigindo restituição. Diferentemente de Gn 12, onde pragas caíram sobre o Egito sem aviso, aqui Deus adverte antecipadamente antes que Abimeleque peque de fato. Isso já indica que Abimeleque tem uma oportunidade de arrependimento, o que veremos adiante.
Abimeleque desperta em meio ao sonho (ou ainda dentro dele, dialogando com Deus) e defende-se fervorosamente. O texto insere uma nota editorial crucial: “Ora, Abimeleque ainda não se havia chegado a ela” (v.4a). Ou seja, não houve relação sexual. A integridade física de Sara permanece intacta. Essa informação serve para esclarecer a inocência factual de Abimeleque – ele tomou Sara com intenção de tê-la, mas até aquele momento não consumou o ato. Também prepara o leitor para entender por que Deus poupará Abimeleque: faltavam-lhe conhecimento e oportunidade de pecar. Além disso, literariamente, essa abstinência “antecipa” o nascimento de Isaque no capítulo seguinte – garantindo que nenhum descendente de Sara poderia ser ilegítimo. Em outras palavras, o narrador deixa claro: se Sara engravidar, Abimeleque não pode ser o pai.
Abimeleque então apela ao Senhor: “Senhor, matarás também uma nação justa?” (v.4b). Ele chama Deus de “Senhor” (’Ăḏōnāy), título divino que mesmo pagãos usavam ao dirigir-se a Deus em contextos bíblicos. A menção de “uma nação” (heb. gôy) é interessante – o rei se vê representando todo seu povo. Ele teme que a culpa caia sobre a nação inteira, não só sobre si. Isso reflete uma compreensão de responsabilidade corporativa: o pecado do governante podia atrair julgamento sobre seus súditos. Gênesis 18 mostrou conceito similar (a cidade inteira de Sodoma seria poupada ou destruída conforme a presença ou ausência de justos). Aqui, Abimeleque argumenta que Gerar é inocente nessa questão, já que nem ele nem seu povo sabiam que Sara era casada.
Ele prossegue lembrando a Deus os fatos: “Não me disse ele: É minha irmã? E ela também disse: Ele é meu irmão. Com sinceridade de coração e na minha inocência é que fiz isso” (v.5). Abimeleque apela para a boa fé: tanto Abraão quanto Sara afirmaram ser irmãos, de modo que ele agiu sob engano. Os termos hebraicos usados – bətōm-leḇāḇ (בְּתֹם־לְבָבִי, “na integridade do meu coração”) e niqayōn kappāyim (נִקּיֹן כַּפָּי, “inocência das minhas mãos”) – transmitem a ideia de consciência limpa e ausência de má intenção. Essa linguagem de pureza moral aparece em Salmos (cf. Sl 7:8; 24:4) para denotar retidão. Abimeleque, portanto, pleiteia que não houve dolo de sua parte.
Sua pergunta retórica inicial (“Matarás uma nação justa?”) ecoa, de forma assombrosa, as palavras que o próprio Abraão usou intercedendo por Sodoma: “Destruirás o justo com o ímpio?” (Gn 18:23). Agora, porém, Abraão está ausente e é o pagão que argumenta com Deus sobre justiça. Gunkel observou: “Abimeleque presume que a ira de Deus recairá não apenas sobre o rei, mas sobre todo o povo”. A sincera preocupação de Abimeleque com a justiça – “não merecemos morrer por um erro involuntário” – pinta-o como um gentio de alto padrão moral, contrastando deliberadamente com os sodomitas de Gn 19, e até com o próprio Abraão nessa circunstância. Em suma, Abimeleque clama: “Sou inocente, fui enganado; seria justo punir-nos?” Diante de tal apelo, o leitor é levado a respeitar Abimeleque e aguardar a resposta divina.
Deus responde no sonho, confirmando a alegação de Abimeleque: “Bem sei eu que na sinceridade de teu coração fizeste isso – e também eu te impeçi de pecar contra mim; por isso não te permiti tocá-la” (v.6). Aqui Deus reconhece a integridade de Abimeleque, mas deixa claro que foi Sua providência que o impediu de pecar. O verbo “impedir” e “não permitir tocar” sugerem que Deus interveio fisicamente nas circunstâncias. De que modo? O texto não detalha, mas o contexto indica que Abimeleque sofreu alguma enfermidade repentina. No versículo 17, aprenderemos que Deus “curou Abimeleque, sua mulher e suas servas” – implicando que ele estava doente e incapaz de ter relações. Isso explica porque “não a tocou” (v.6b) e possivelmente por que teve o sonho: talvez Abimeleque estivesse acamado, temendo pela vida, quando Deus lhe revela o motivo da doença. Deus enfatiza: “Eu te guardei de pecar contra mim”. Mesmo que o pecado fosse adultério contra Abraão e Sara, em última análise todo pecado fere os padrões de Deus (cf. Gn 39:9, 2Sm 12:13, Sl 51:4). Essa declaração contradiz a ideia de alguns críticos (Westermann) de que Deus estaria retratado aqui como não onisciente; pelo contrário, Deus demonstra saber mais do que Abimeleque dissera e ter poder total sobre a situação (onipotência e onisciência) ao ponto de restringir a ação do rei.
Teologicamente, esse verso ressalta a soberania preveniente de Deus – Ele não apenas julga o pecado após o fato, mas também pode, por graça, prevenir que ele ocorra quando há sinceridade. Abimeleque estava enganado, mas tinha intenção limpa; Deus honrou isso evitando que pecasse gravemente sem saber. Isso nos lembra que Deus, em Sua misericórdia, às vezes nos guarda de pecados que cometeríamos por ignorância ou fraqueza, fechando portas e impondo limites invisíveis.
Depois de reconhecer a inocência de Abimeleque, Deus lhe dá um mandamento e uma saída para viver: “Agora, pois, restitui a mulher ao seu marido, porque ele é profeta; e ele orará por ti, para que vivas. Porém, se não lha restituíres, sabe que certamente morrerás, tu e tudo o que é teu”. Cada parte dessa declaração é rica em significado:
“Restitui a mulher ao seu marido”: Deus ordena a ação correta – devolver Sara. É uma restauração da ordem moral violada. O verbo “restituir” (hāšēḇ השֵׁב) ecoa princípios legais de reparação; Abimeleque deve devolver o que não é seu. Não há negociação – é uma exigência categórica de Deus.
“Porque ele é profeta”: Aqui encontramos a primeira ocorrência da palavra nāḇī’ (נָבִיא, “profeta”) na Bíblia, aplicada a Abraão. Isso é surpreendente, visto que Abraão não é apresentado exercendo funções proféticas clássicas (como pregar ou escrever oráculos). Contudo, “profeta” basicamente significa alguém que é porta-voz de Deus ou intimamente ligado a Ele. Abraão havia intercedido junto a Deus em Gn 18, e aqui Deus indica que Abraão atuará novamente como intercessor. O status profético de Abraão também serviria para Abimeleque reconhecer a gravidade de ter retido a esposa de um homem de Deus. Curiosamente, Deus destaca o ofício de Abraão num momento em que este acabou de falhar moralmente – um lembrete de que a posição de Abraão decorre da graça e chamado divino, não de sua justiça pessoal.
“Ele orará por ti, para que vivas”: Deus estabelece uma condição de mediação – a vida de Abimeleque e sua casa depende da oração de Abraão. Isso insinua que a doença/julgamento sobre Abimeleque ainda paira; apenas quando Abraão orar é que a cura virá. Vemos aqui um vislumbre do princípio de intercessão sacerdotal: Deus quer que Abimeleque humilhe-se buscando a intercessão do profeta. Lembre-se que Abraão até aqui não sabe de nada; Deus coloca Abimeleque em posição de suplicante diante de Abraão, invertendo os papéis usuais (afinal, reis raramente pedem favores a estrangeiros). Isso reforça a honra de Abraão como escolhido de Deus e também proporciona reconciliação: a oração de Abraão selará a paz entre eles.
“Se não a restituíres, morrerás, tu e os teus”: A alternativa da obediência é repetida em tom de juramento divino – “certamente morrerás” (môṯ tamûṯ, מות תמות, literalmente “morrendo, morrerás”). Essa fórmula intensiva relembra a advertência de Deus no Éden (Gn 2:17). Abimeleque tem, portanto, um caminho de vida ou morte diante de si – ecoando a teologia pactual posteriormente expressa a Israel (cf. Dt 30:15). Note que a penalidade se estenderia a “tudo o que é teu” – ou seja, a toda a casa/nação de Abimeleque. Novamente, a responsabilidade coletiva: se o rei persistisse no erro, traria ruína sobre seu povo.
Essa mensagem de Deus a Abimeleque revela muito sobre o caráter divino: Deus é justo, mas também misericordioso e relacional. Ele não apenas pune – Ele conversa, explica, dá oportunidade de conserto e envolve Seu servo (Abraão) no processo de restauração. Vemos também que os dons e chamamento de Deus são irrevogáveis (cf. Rm 11:29): Abraão, apesar de seu comportamento questionável, ainda é reconhecido por Deus como profeta e intercessor. Deus permanece fiel ao propósito pelo qual escolheu Abraão (ser bênção às nações), mesmo quando Abraão não está à altura do ideal.
Temor de Deus entre os Gentios: Abimeleque Reage (20:8–13)
Abimeleque não hesita em obedecer. “Levantou-se Abimeleque de madrugada” – sinal de urgência e diligência. Assim que amanhece, ele reúne seus servos de confiança e lhes relata tudo o que acontecera em seu sonho. A reação coletiva é que “os homens ficaram atemorizados” (v.8b). Ou seja, o temor de Deus caiu sobre toda a casa de Abimeleque. Esse detalhe é crucial: havia temor de Deus naquele lugar! Abraão justificara sua mentira justamente supondo o contrário – “achei que não há temor de Deus neste lugar” (v.11). Mas os eventos provam o erro de Abraão: os servos de Abimeleque mostram grande reverência diante da revelação divina, temendo grandemente pelo que Deus dissera. A prontidão em crer no sonho do rei e tremer diante de Deus revela que, apesar de serem estrangeiros, não eram homens sem consciência de Deus. Isso prepara o terreno para o próximo passo de Abimeleque, que será corrigir a situação com Abraão o quanto antes. (Observe também a semelhança com Gn 22:3 – Abraão levantando-se de madrugada para obedecer a Deus. Abimeleque demonstra um zelo semelhante em atender à voz divina imediatamente.)
Abimeleque passa da obediência para o confronto moral com Abraão. Ele convoca o patriarca à sua presença. Podemos imaginar Abraão apreensivo, sem saber que Abimeleque tivera um sonho. Mas em vez de violência, o rei lhe faz perguntas carregadas de indignação e decepção. Abimeleque coloca três questões incisivas a Abraão:
“Que foi que nos fizeste?” – expressão de choque e reprovação. Abimeleque sugere que Abraão causou a ele e ao seu povo um grande mal. “O que você fez conosco?” implica: “Como pôde nos armar uma cilada dessas?”. Ele usa o plural “nos” (a mim e minha casa), evidenciando que o engano de Abraão colocou muitos em perigo.
“Em que pequei contra ti, para que trouxesses sobre mim e meu reino tamanho pecado?” – aqui Abimeleque protesta sua inocência e magoa. Ele pergunta se havia feito algum mal a Abraão para este lhe retribuir induzindo-o involuntariamente a um “grande pecado” (heb. ḥăṭā’āh gəḏōlāh, expressão que designa uma ofensa gravíssima, v.9). Abimeleque entende que quase cometeu adultério – crime mortal – por causa da mentira de Abraão, e isso teria trazido culpa sobre toda a nação (“meu reino”). Ou seja, “Eu não lhe fiz mal algum; por que você quase nos levou a pecar horrivelmente e incorrer em juízo?” Ele acrescenta: “Tu me trataste de modo que não se deve tratar!” (v.9, NAA) – declarando que Abraão violou as regras básicas de respeito e justiça. Abimeleque, apesar de rei, se preocupa com seus súditos (“meu reino”) e com a moralidade dos atos, demonstrando qualidades de um governante justo e benevolente, preocupado em não trazer desastre sobre seu povo (ao contrário do egoísta Faraó de Gn 12:18).
“Que tinhas em vista para fazeres tal coisa?” – agora Abimeleque procura entender a motivação de Abraão (v.10). Essencialmente: “O que te levou a agir assim?” Diferente de Faraó, que não permitiu explicações (Faraó apenas expulsou Abraão; cf. Gn 12:19-20), Abimeleque abre espaço para Abraão se defender. Essa pergunta evidencia o autocontrole e a justiça do rei: mesmo sendo a parte ofendida, ele busca ouvir o que Abraão tem a dizer. João Calvino admirou a moderação de Abimeleque aqui: “Não é sinal comum de temperança e justo ânimo em Abimeleque permitir a Abraão uma defesa livre... grande louvor é devido à moderação deste rei para com um estrangeiro desconhecido”. Abimeleque mistura justa indignação moral (“coisas que não se faz” – v.9) com um espírito de investigação honesta, em vez de pura retaliação. Nesse aspecto, Abimeleque novamente se mostra nobre: muitos governantes se limitariam a punir Abraão sumariamente, mas ele busca a verdade e uma reconciliação se possível.
Vale ressaltar a ironia: Abimeleque, um rei pagão, demonstra aqui valores éticos elevados e até alinha-se com a justiça de Deus. Ele repreende o escolhido de Deus por conduta imprópria. Essa humilhação de Abraão diante de um gentio é parte do propósito pedagógico do texto – quebrar qualquer noção de superioridade automática do povo da aliança em termos morais. Deus e o narrador intencionalmente apresentam Abimeleque sob luz favorável para contrastar com Abraão. Afinal, como o próprio Abimeleque observa, Abraão “trouxe sobre mim grande pecado” – de certo modo, Abraão foi o causador do quase-pecado de Abimeleque. É um tapa com luva de pelica: “Eu quase pequei gravemente por culpa da sua mentira, Abraão!” Não admira que “essas coisas não se faz[em]” – nem mesmo entre pagãos (v.9). A vergonha de Abraão está completa: seu engano foi desmascarado e censurado publicamente por alguém que ele imaginara não temer a Deus. Diante desse constrangedor sermão de moralidade, Abraão tenta se explicar. Sua resposta vem em três partes, correspondendo (embora não exatamente) às perguntas de Abimeleque:
(v.11) “Eu disse comigo mesmo: Certamente não há temor de Deus neste lugar, e eles me matarão por causa da minha mulher.” Aqui Abraão revela seu medo básico. Ele supôs que Gerar era tão corrupta quanto Sodoma ou outros povos, onde homens belos poderiam ser assassinados por causa de suas esposas. Sua frase “não há temor de Deus” (’ên yir’at ’ĕlōhîm) indica pessoas sem escrúpulos ou reverência moral. Ironicamente, Abraão estava redondamente enganado – como vimos, havia sim temor de Deus ali (v.8) e o próprio Abimeleque demonstra consciência moral. No contexto imediato da história, essa justificativa de Abraão o incrimina: ele julgou mal o caráter alheio e, com base num preconceito, arquitetou engano e quase causou um desastre. Além disso, no panorama mais amplo da narrativa de Abraão, a desculpa é ainda menos válida: Deus vinha protegendo e abençoando Abraão poderosamente desde que ele saíra de Ur (Gn 12–19). Ele sobrevivera ileso a situações perigosas – inclusive o episódio no Egito semelhante a este – e Deus lhe prometera: “Eu sou o teu escudo” (Gn 15:1). Abraão acabara de testemunhar a destruição de Sodoma e o livramento milagroso de Ló; tivera aparições do Senhor confirmando a aliança. Não há fundamento para seu medo, senão a fraqueza humana. Seu raciocínio parece plausível aos olhos humanos (“este lugar deve ser violento, vão me matar pela bela Sara”), mas ignora completamente a proteção especial de Deus. O narrador deixa claro: sob a luz de tudo, as palavras de Abraão soam lamentáveis e irônicas. Ele confessa, sem querer, sua falta de fé naquele momento. “Para Abraão dizer ‘certamente não há temor de Deus neste lugar’ mostra quão mal leu a situação”, aponta Wenham. E Kidner observa que Abraão caiu em “planejamento sem fé” logo após grandes feitos espirituais, o que serve de advertência contra autoconfiança. Em suma, Abraão admite: “Agir assim foi a única forma que encontrei de me proteger, pois presumi que vocês eram perversos e me matariam por Sara.” Mas essa presunção estava errada e não justifica sua conduta perante Abimeleque ou perante Deus.
(v.12) “Além disso, ela é realmente minha irmã, filha de meu pai, embora não de minha mãe; e veio a ser minha mulher.” Aqui Abraão tenta minimizar a mentira dizendo que era meia-verdade. Sara de fato era meia-irmã de Abraão (Terá era pai de ambos, embora de mães diferentes). Abraão apresenta isso como se dissesse: “Técnicamente, não menti, pois ela é minha irmã por parte de pai.” Essa revelação, porém, levanta mais problemas do que resolve. Primeiro, não muda o fato de que ele escondeu deliberadamente que Sara também era sua esposa, informação crucial que Abimeleque precisava saber. O subterfúgio continua sendo engano. Segundo, para os ouvintes israelitas, afirmar que Sara é meia-irmã de Abraão soaria incestuoso – as leis posteriores da Torá proibiriam explicitamente tais casamentos (Lv 18:9, 11; Dt 27:22). Claro, Abraão vive séculos antes da Lei, e casamentos entre meio-irmãos ocorriam em famílias nobres antigas (até os faraós praticavam algo assim). Ainda assim, o autor de Gênesis registra o fato sem desculpas, revelando que os patriarcas nem sempre seguiam padrões morais que viriam depois. Isso sugere a autenticidade e antiguidade da tradição (os israelitas não inventariam um patriarca casando com meia-irmã; é embaraçoso do ponto de vista mosaico). Tanto escritores judeus medievais quanto comentaristas cristãos (como Calvino) tentaram reinterpretar “irmã” para “prima” a fim de amenizar a questão, mas o texto é claro. Abraão e Sara se casaram apesar do laço de sangue – algo permitido em seu tempo, mas posteriormente banido. Para Abimeleque, essa informação talvez fosse novidade ou talvez não causasse espanto (costumes antigos variavam; leis hititas, p.ex., permitiam casar com meio-irmã por parte de pai). De qualquer forma, Abraão a usa para argumentar que “não mentiu totalmente”. Contudo, um meia-verdade dita para enganar é uma mentira inteira. Abimeleque agora sabia que Abraão ocultara intencionalmente o dado mais relevante (o casamento), então essa explicação soa mais como desculpa do que justificação.
(v.13) “Quando Deus me fez andar errante para longe da casa de meu pai, eu disse a ela: Este é o favor que me farás: em todo lugar aonde formos, dirás de mim: Ele é meu irmão.” Aqui Abraão revela a origem do plano. Desde que deixaram Harã, anos atrás, ele e Sara combinaram essa estratégia de se apresentarem como irmãos em terras estranhas. Abraão enquadra isso como um ato de sobrevivência numa vida nômade perigosa. Há algumas nuances dignas de nota: ele inicia dizendo “quando Deus me fez andar errante...” – no hebraico, “Deus” (’ĕlōhîm) vem seguido de um verbo no plural (hiṯ‘û, “fizeram-me vaguear”). Ou seja, literalmente “quando (os) deuses me fizeram vaguear...”. Essa construção gramatical inusitada pode refletir uma acomodação de linguagem – Abraão falando com um rei politeísta, usando “Elohim” de forma que Abimeleque entendesse “os poderes divinos” em geral. Alguns comentaristas veem isso como um resquício literário indicando que este relato poderia provir de uma fonte (chamada “E”) que preferia “Elohim” a “Yahweh”. Independentemente disso, Abraão aqui meio que culpa Deus por sua peregrinação perigosa. “Deus (ou ‘os deuses’) me tirou da casa do meu pai e me fez vaguear por aí...”, implícito: “...logo, tive de adotar medidas de proteção.” Há um eco distante do tom de Adão em Gn 3:12 (“a mulher que Tu me deste me levou a pecar”). Abraão atribui a circunstância a Deus, mas sua própria falta de confiança é o real motivador. Ademais, Abraão alega que essa era sua política “em todo lugar”. Será verdade? Não temos registro de tal comportamento exceto no Egito e agora em Gerar. Abraão esteve em outras regiões (Betel, Hebrom, etc.) e não há menção de ter dito o mesmo. É possível que Abraão esteja exagerando para persuadir Abimeleque de que não foi algo pessoal contra ele, e sim um hábito antigo – ainda que não tenha sido praticado sempre. Wenham comenta que, ou Abraão não foi totalmente sincero aqui (e de fato só mentiu nessas duas vezes), ou ele realmente enganava com frequência, o que o pinta como um “homem de pouca fé” rotineiramente. De qualquer forma, nenhuma das opções é lisonjeira. É provável que Abraão tenha dito isso apenas para mollificar Abimeleque, sugerindo: “Eu já fazia isso desde o início, não foi por desconfiança especial de você ou malícia.”
Resumindo a resposta de Abraão: ele agiu por medo da falta de temor de Deus no lugar; tecnicamente não mentiu porque Sara é sua meia-irmã; e esse engodo era um acordo prévio deles desde que saíram da Mesopotâmia. Em vez de desculpar Abraão, essas explicações apenas reforçam sua falta de confiança em Deus e a fraqueza moral em recorrer a meios duvidosos. Como diz Kidner, Abraão “confessou um padrão de decisão que, no fundo, é o de todo homem falível” – pensando somente em si e esquecendo deveres para com os outros e para com Deus. Além disso, Abraão manchou sua confissão com uma tentativa de “empurrar a culpa para outro, como Adão fez” (Kidner), chegando a dizer literalmente: “quando os deuses me fizeram vagar...”, adotando uma linguagem tortuosa própria do pagão. Em suma, Abraão se coloca no mesmo nível de qualquer homem mundano assustado – naquele momento, agiu como se não conhecesse o Deus vivo, falando a meia-verdade como qualquer outro faria.
O efeito narrativo é claro: se em Gn 18 Abraão surgia como herói da fé intercedendo por outros, aqui em Gn 20 ele aparece sob crítica – suas palavras o condenam e geram mais simpatia pelo íntegro Abimeleque do que por ele. Abraão falhou no testemunho e precisa da misericórdia de Deus para sair dessa situação, como veremos a seguir. Contudo, apesar do fiasco de Abraão, Deus não revoga Sua promessa nem Seu cuidado, e até Abimeleque, o ofendido, continuará a tratar Abraão melhor do que Abraão o tratou!
Restituição e Misericórdia: Desfecho do Conflito (20:14–18)
A resposta de Abimeleque, após ouvir Abraão, não é de fúria, mas de ação generosa. “Então Abimeleque tomou ovelhas e bois, e servos e servas, e os deu a Abraão; e lhe restituiu Sara, sua mulher” (v.14). Isto remonta à cena do Egito, onde Faraó também deu muitos presentes a Abraão por causa de Sara (Gn 12:16). Porém, há uma diferença significativa: os presentes de Faraó foram dados antes, como dote pelo erro involuntário, e sem conhecimento do engano – ou seja, Faraó pensou estar agradando ao “irmão” de Sara com riqueza. Abimeleque, por sua vez, concede os presentes depois da restauração, como forma de indenização/reparação e sinal de paz. Em outras palavras, Abimeleque reconhece que uma injustiça ocorreu (ainda que causada pela mentira de Abraão) e, por iniciativa própria, oferece compensação para consertar as coisas. Dar gado e servos era transferir riqueza considerável. Além disso, ele devolve Sara publicamente a Abraão, removendo qualquer dúvida de que ela pertence a Abraão.
No verso 15, Abimeleque disse: “A minha terra está diante de ti; habita onde quiseres.” Em vez de expulsar Abraão do país (como Faraó fez, cf. Gn 12:19-20), Abimeleque convida Abraão a permanecer e escolher livremente onde quer morar. Isso é extraordinário: Abraão já era muito rico (Gn 13:2) e tinha inúmeros rebanhos, o que causou conflito com Ló por falta de espaço. Ainda assim, o rei de Gerar oferece sua terra para Abraão se estabelecer onde achar melhor. Esse gesto de hospitalidade régia sugere que Abimeleque, longe de guardar rancor, quer manter bons relacionamentos com Abraão. Talvez ele reconheça a mão de Deus sobre Abraão e prefira tê-lo como aliado residente em vez de inimigo. Note-se que Gerar ficava no extremo sul de Canaã; Abimeleque pode ter visto vantagem estratégica em permitir que Abraão, com seu grande séquito, acampe ali, possivelmente servindo de proteção extra contra outras tribos. Independentemente das razões, é mais uma prova do caráter conciliador de Abimeleque. Ele age de forma semelhante a Melquisedeque (Gn 14:18-20), abençoando Abraão com dádivas e paz, em contraste com Faraó que simplesmente mandou o patriarca embora. Isso realça o tema: “os que abençoarem Abraão serão abençoados” (Gn 12:3) – Abimeleque está abençoando Abraão com presentes e liberdade, e logo colherá o fruto da bênção de Deus.
Este verso foca especificamente em Sara. “E disse Abimeleque: Fiz dar ao teu irmão mil peças de prata; eis que isso te será por defesa dos olhos para com todos os que estão contigo, e para com todos os outros; e estás justificada” (v.16, conforme ARA e outras). Abimeleque dirige-se a Sara, talvez na presença de Abraão, e explica o significado do presente em dinheiro. Mil siclos de prata era uma quantia enorme. Para comparação: 50 siclos era o preço máximo por uma noiva virgem (Dt 22:29), e um trabalhador comum ganhava cerca de 0,5 siclo por mês. Ou seja, 1000 siclos representavam os salários de cerca de 160 anos de um trabalhador médio! Essa soma astronômica demonstra a sinceridade de Abimeleque em compensar qualquer dano à reputação de Sara. É como se ele dissesse: “Quero que todos saibam que você não saiu lesada nem desonrada desta situação.”
A expressão hebraica traduzida por “defesa dos olhos” ou “cobertura dos olhos” é kesut ‘ênayim (כְּסוּת עֵינַיִם). Essa frase única gerou debates, pois literalmente significa “cobertura para os olhos”. A maioria entende como uma figura de linguagem: o dinheiro serviria para “cobrir os olhos” de Sara e de todos quanto ao ocorrido – isto é, encerrar o assunto, evitar olhares acusadores ou maldosos. Funciona quase como um “acordo legal” compensatório que impede qualquer reclamação futura e “cega” qualquer observador de criticar Sara. Em termos modernos, seria equivalente a limpar oficialmente o nome dela. De fato, Abimeleque conclui: “assim [com isso] estás justificada” ou “estás reabilitada diante de todos”. O verbo hebraico aqui (נכחת, nokhāḥat) pode ser traduzido como “justificada/vindicada” em vez de “reprovada”, como algumas versões antigas entendiam. No contexto, claramente Abimeleque não está repreendendo Sara, mas restaurando sua honra publicamente. Ele enfatiza: “diante de todos os que estão contigo e de todos, estás justificada” – ou seja, não há falta em Sara; tudo que aconteceu foi além do controle dela, e agora foi reparado. Se algum dos presentes duvidasse da pureza ou dignidade de Sara após ter estado no harém, aquele enorme pagamento e declaração real eliminariam quaisquer suspeitas. Era, por assim dizer, uma “carta de absolvição” dada por Abimeleque a Sara.
Curiosamente, Abimeleque se refere a Abraão como “teu irmão” ao falar com Sara: “dei ao teu irmão mil peças de prata...” Esse é um toque irônico/sarcástico. Ao usar deliberadamente “teu irmão” (em vez de “teu marido”), Abimeleque relembra a ambos o subterfúgio que usaram. Podemos quase ouvir a fina ironia: “Veja, estou dando este grande presente ao seu ‘irmão’...” – deixando subentendido que ele está bem ciente da verdade e do constrangimento deles. Mesmo assim, Abimeleque não ofende abertamente Abraão; o comentário pode ter sido apenas um leve puxão de orelha. O mais importante é que Abimeleque, mesmo sendo a parte enganada, faz tudo corretamente: restitui Sara intacta, compensa financeiramente e até cuida da reputação dela. Em suma, ele vai além da justiça básica, agindo com graça e nobreza.
Abraão, por sua vez, nada responde que esteja registrado. Seu silêncio talvez indique concordância humilde – ele aceita a reprimenda implícita e a generosidade imerecida. Ao receber os presentes e a autorização de residência, Abraão está tacitamente se comprometendo a paz e fechando a questão. Abimeleque, tendo agido conforme Deus instruiu, aguarda agora o desfecho final – a oração de Abraão.
O capítulo se encerra narrando o resultado redentor dessa história tensa. “E orou Abraão a Deus, e sarou Deus a Abimeleque, e a sua mulher e as suas servas, de maneira que tiveram filhos; porque o Senhor havia fechado completamente todas as madres da casa de Abimeleque, por causa de Sara, mulher de Abraão” (vv.17-18).
Vemos que Abraão cumpre o papel designado: ele intercede por Abimeleque e sua casa, e Deus responde positivamente. Aqui Abraão é plenamente profeta e mediador – sua oração traz cura divina. Isso confirma que Abraão, tendo aprendido a lição, se colocou de novo em comunhão com Deus (não há menção explícita de arrependimento de Abraão, mas o fato de Deus ouvir sua oração implica que Abraão certamente se reencontrou com a graça de Deus). A restauração não é apenas física para Abimeleque, mas também espiritual para Abraão – ele volta a servir de canal de bênção. Note também que Deus só “sarou” Abimeleque após Abraão orar, mesmo já estando tudo resolvido materialmente. Isso destaca a importância da intercessão profética no plano de Deus.
A narração de que “Deus sarou Abimeleque, sua mulher e suas servas, de maneira que puderam ter filhos” indica qual foi o problema que afligira a casa real: infertilidade generalizada. O Senhor “havia fechado completamente todas as madres” (v.18) das mulheres de Abimeleque por causa de Sara. Em outras palavras, enquanto Sara esteve no harém, nenhuma mulher em Gerar concebeu. Talvez as que estavam grávidas tivessem abortos, e as tentativas de concepção falharam – algo anormal o suficiente para todos perceberem que uma maldição caíra sobre a casa. Isso esclarece como Abimeleque entendeu que estava sob juízo antes mesmo do sonho: ele ou seu palácio podem ter notado que “há algo errado – ninguém está engravidando”.
Além disso, Abimeleque pessoalmente precisava de cura. O texto não detalha a enfermidade dele, mas dado o contexto, Abimeleque provavelmente estava impotente ou acometido de alguma doença grave. No verso 3, Deus disse “és morto” e no verso 7, “orar para que vivas” – sugerindo que Abimeleque poderia já estar padecendo seriamente (quem sabe febril ou com dores) e temia morrer. Ao ligar a cura dele com a das mulheres, a implicação é que a doença dele estava relacionada à questão reprodutiva também. Talvez uma praga que causava disfunção sexual temporária. Quando Abraão ora, imediatamente a vitalidade e fertilidade retornam: Abimeleque se sente melhor, suas esposas e concubinas voltam a conceber. É notável a menção de “servas” ou “servas-esposas” – possivelmente concubinas do rei – dando à luz novamente. Isso indica que algum tempo se passou com Sara em Gerar: o suficiente para que as mulheres percebessem que estavam estéreis durante aquele período e, uma vez curadas, viessem a ter filhos (o texto não diz que conceberam imediatamente, mas infere-se que a normalidade voltou e, no devido tempo, nascimentos ocorreram).
Para o leitor atento, a informação de que o Senhor fechara todos os ventres por causa de Sara provoca um dejà vu deliberado: em Gn 16:2, Sara queixara-se a Abraão: “O Senhor me tem impedido (literalmente, ‘fechado’) de dar à luz filhos”. O verbo usado (עצר, ‘āṣar) é o mesmo. Agora, esse verbo aparece de novo: o Senhor “fechou completamente cada madre” na casa de Abimeleque (v.18). A correspondência não é coincidência. O narrador, ao fechar este episódio, planta uma grande interrogação de fé: Se Abraão, o profeta, orou e Deus abriu as madres das mulheres estéreis de Gerar, por que então Sara, esposa de Abraão, continua estéril? Seria Deus também capaz de abrir o ventre de Sara? Afinal, Abraão orou pelos outros e eles foram curados – faltaria orar por Sara? Ou faltaria chegar o tempo de Deus? O capítulo termina, portanto, criando expectativa. Como diz Wenham, “por esse comentário conclusivo sobre o caso Sara-Abimeleque, o autor alude à preocupação predominante do ciclo de Abraão e levanta a expectativa de que enfim a promessa de um filho se cumprirá”.
E de fato, na sequência imediata (Gn 21), lemos o cumprimento jubiloso: “O Senhor visitou a Sara, como dissera... e Sara concebeu” (21:1-2). Gênesis 20, então, serve como um pré-clímax dramático antes do nascimento do filho da promessa. Ao proteger Sara de Abimeleque e curar a infertilidade temporária na casa deste, Deus reafirma Seu poder soberano sobre a vida e a morte, sobre fechar e abrir o útero (cf. 1Sm 1:5-6). E ao fazer isso em resposta à oração de Abraão, Deus também restaura Abraão à posição de intercessor eficaz. Tudo está agora pronto – tanto no mundo exterior (Sara livre, reputação ilesa, Abraão em paz com vizinhos) quanto no mundo interior de fé de Abraão (humilhado, mas novamente em comunhão com Deus) – para que a promessa do filho finalmente se manifeste.




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