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Os Luzeiros do Céu (Quarto Dia) | Gênesis 1.14–19

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 3 de ago.
  • 48 min de leitura

Atualizado: 10 de set.

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Contexto e Estrutura Literária do Quarto Dia


No quarto dia da criação (Gênesis 1:14–19), a narrativa bíblica descreve a origem dos luminares – o Sol, a Lua e as estrelas – como parte do cuidadoso esquema de criação em seis dias. Esse dia se encaixa na estrutura simétrica de Gênesis 1: nos três primeiros dias Deus formou espaços (céus, mar e terra), e nos três dias seguintes Ele os preencheu com luminares, aves, peixes, animais e o ser humano. Há, portanto, um paralelismo intencional: o Dia 1 (criação da luz) corresponde ao Dia 4 (luminares que governam a luz), assim como Dia 2 (separação das águas e firmamento) corresponde ao Dia 5 (peixes e aves nesses domínios), e Dia 3 (aparecimento da terra seca e vegetação) corresponde ao Dia 6 (animais terrestres e o homem ocupando a terra). Essa disposição literária ressalta ordem e propósito na obra criadora de Deus, em contraste com mitos caóticos de outras culturas.


A passagem segue o estilo solene e repetitivo de Gênesis 1: inicia com a fórmula “E disse Deus: ‘Haja...’”, seguida pela execução (“e assim se fez”) e a avaliação divina (“viu Deus que era bom”). Nos versículos 14–15, Deus ordena: “Haja luminares no firmamento dos céus...”. Nos versículos 16–18, vê-se o cumprimento: “Fez Deus os dois grandes luminares... e fez as estrelas... e os colocou no firmamento...”. A estrutura interna desses versículos apresenta um paralelismo e quiasmo notáveis. O relato dos versículos 14–15 contém três propósitos para os astros – separar o dia e a noite, sinalizar tempos (estações, dias, anos) e iluminar a terra – e nos versículos 17–18 esses propósitos reaparecem em ordem inversa (iluminar a terra, governar dia e noite, separar luz e trevas), com a menção dos dois grandes luminares colocada ao centro. Essa disposição em espelho reforça cada função atribuída aos astros, enfatizando que sua existência está estritamente vinculada às tarefas designadas por Deus. As repetições deliberadas (por exemplo, o verbo “para” aparece 11 vezes em 5 versículos) sublinham o papel funcional dos luminares na ordem criada.


Notavelmente, o quarto dia é o único em que, após o “e assim se fez”, não há uma palavra divina adicional nomeando ou abençoando a criação. Nos dias 1–3, Deus nomeou os elementos (Dia 1: “dia” e “noite”; Dia 2: “céus”; Dia 3: “terra” e “mares”), e nos dias 5–6, Ele abençoou os seres viventes. Já no Dia 4, não há nomeação específica para o Sol e a Lua, o que pode ser um elegante recurso estilístico ou, como muitos sugerem, uma forma deliberada de evitar os nomes “Sol” (Shemesh) e “Lua” (Yaréach) devido às suas associações pagãs como deuses na cultura circundante. Assim, o texto simplesmente os chama de “luminares”: “o luminar maior” para o dia e “o luminar menor” para a noite, esvaziando qualquer noção de personalidade divina desses corpos celestes.

Em termos de gênero literário, Gênesis 1 é frequentemente classificado como uma prosa altamente estruturada, com linguagem concisa e ritmada. Há paralelismos internos (como “governar o dia e a noite / separar a luz e as trevas” em 1:18) que conferem um tom quase poético, sem deixar de ser um relato narrativo. Esse balanço entre repetição e leve variação dá à passagem uma majestade litúrgica. A ordenança “Haja luminares... para iluminar a terra” seguida logo pela execução “e foi assim” reflete uma correspondência direta entre a palavra soberana de Deus e o cumprimento imediato, reforçando literariamente a onipotência divina: aquilo que Deus diz acontece com exatidão.


Do ponto de vista linguístico, alguns termos-chave merecem destaque: a palavra hebraica traduzida por “luminares” (mĕ’ōrōt, מְאוֹרוֹת) aparece aqui pela primeira vez e, curiosamente, fora deste capítulo de Gênesis, é usada no Pentateuco apenas para a lâmpada do santuário (Êx 25:6; 27:20). A escolha dessa palavra em vez dos nomes usuais “sol” e “lua” parece intencional, como veremos, para enfatizar a função de luzeiros e evitar qualquer conotação idolátrica. Outro termo importante é “firmamento” (raqîa‘, רָקִיעַ), já introduzido no segundo dia (1:6–8). O firmamento é a vasta expansão do céu onde Deus coloca os luminares. Ao contrário de mitologias antigas que imaginavam o céu como uma cúpula sólida e divina, a Escritura o trata aqui simplesmente como o palco físico preparado por Deus para colocar os astros visíveis.


Há ainda a expressão “para separar o dia da noite” (1:14) paralela a “para separar a luz das trevas” (1:18). Essa repetição indica um paralelismo sinônimo: separar dia e noite é explanado como separar luz e trevas. O texto vincula definitivamente a presença do sol com o período diurno e da lua com o noturno, instituindo a ordem cíclica de tempo que conhecemos. Isso suscita a interessante questão: como havia “dia e noite” nos três primeiros dias antes do sol? A estrutura literária sugere que o autor sabia dessa aparente anomalia e a resolveu teologicamente: nos dias 1–3 houve alternância de luz e trevas por mandato direto de Deus, enquanto a partir do dia 4 Deus delega essa função aos astros. Em outras palavras, “haja luz” (v.3) produziu luz difusa inicial, e somente no quarto dia essa luz foi concentrada e atribuída a fontes específicas – uma explicação que remonta a intérpretes antigos e que o comentarista U. Cassuto expressa dizendo que os hebreus não viam conexão absoluta entre luz e o astro solar, pois na aurora e no crepúsculo há claridade mesmo sem o sol visível. Assim, o autor sagrado afirma que a origem última da luz não é o sol, mas Deus; o sol passa a ser, a partir do quarto dia, o instrumento regular pelo qual Deus ilumina a terra. Essa compreensão literária e teológica reforça a soberania divina: Deus primeiro cria a luz por Sua palavra direta, depois estabelece meios ordinários (sol e astros) para a administração dessa luz.


Em suma, a análise estrutural e literária de Gênesis 1:14–19 revela um texto cuidadosamente organizado, com paralelismos e repetições que servem para ressaltar as funções dos luminares e a autoridade da palavra de Deus que os trouxe à existência. O estilo solene sublinha a mensagem central: o Sol, a Lua e as estrelas existem não como divindades caprichosas, mas como criaturas ordenadas para cumprir os propósitos determinados pelo único Deus verdadeiro.


Análise do Texto Hebraico: Termos-Chave e Imagens


Examinando mais de perto as palavras e expressões originais em hebraico, percebemos camadas adicionais de significado teológico nessa passagem. Quando Deus diz: “Haja luminares no firmamento dos céus, para separar o dia da noite; sirvam eles de sinais para tempos determinados, dias e anos” (1:14), cada termo é carregado de implicações:


  • Luminares (mĕ’ōrōt) – Como mencionado, essa palavra significa literalmente “luzeiros” ou objetos portadores de luz. Ao escolhê-la, o texto enfatiza a função desses corpos celestes (iluminar), em vez de suas identidades míticas. É significativo que o narrador evite os nomes comuns “sol” e “lua”, preferindo chamá-los genericamente de “o grande luminar” e “o pequeno luminar”. Isso “despersonaliza” esses astros, impedindo qualquer leitura que os confunda com deuses. Conforme observam estudiosos, essa evitação vocabular é um golpe direto contra a mitologia: a passagem tem uma “conotação anti-mítica” deliberada. Em apenas poucas palavras, Gênesis desmistifica séculos de idolatria astral, deixando claro que o sol e a lua não passam de objetos criados por Deus para servir a um propósito específico. Um comentarista ressalta: “os pagãos adoravam o Sol, a Lua e as estrelas como deuses de poder formidável; contudo, nesta narrativa, esses luminares nem mesmo são nomeados – são simplesmente criados e incumbidos de certas tarefas nos céus, possuindo uma dignidade de governo, nada mais. As estrelas também recebem nada além de uma menção honrosa. Que golpe no paganismo!”. Ou seja, o texto os trata quase burocraticamente, listando suas funções como quem designa servidores públicos cósmicos, enfatizando que seu “governo” sobre o dia e a noite é delegação, não autonomia.

  • Firmamento (raqîa‘) dos céus – O firmamento é apresentado como o “lugar” onde Deus coloca os luminares (1:17). A palavra raqîa‘ traz a ideia de uma expansão ou extensão fina (literalmente algo “expandido” ou “estendido”). Em contextos antigos, podia-se pensar no céu como uma abóbada sólida que separa as águas superiores das inferiores (cf. 1:6-8). Gênesis 1 acomoda essa percepção fenomenológica sem endossar superstições pagãs. De fato, nenhuma passagem bíblica sustenta a ideia mitológica de um céu sólido feito de alguma substância divina. Aqui o firmamento serve pragmaticamente como suporte dos luzeiros, “como um majestoso candeeiro no qual Deus pendurou as lâmpadas do céu” – usando a vívida imagem de Matthew Henry. Não por acaso, o texto observa que, só quando o firmamento é adornado pelos astros no quarto dia, sua utilidade plena para a humanidade fica evidente. Até então, o céu por si só (criado no dia 2) estava “incompleto” em termos de benefício prático, o que talvez explique porque no relato não aparece o refrão “e viu Deus que era bom” no segundo dia – somente após receber os luminares no dia 4 o firmamento cumpre seu propósito de iluminar a terra.

  • “Para separar o dia da noite” / “para separar a luz das trevas” – Essa frase dupla, presente no decreto divino (v.14) e repetida no cumprimento (v.18), estabelece uma imagem de ordem. Separar implica distinguir e organizar. No caos inicial, “trevas cobriam a face do abismo” (1:2), mas com a criação da luz e agora com os luminares, Deus define limites claros: quando é dia e quando é noite. A expressão no hebraico sugere que, a partir do quarto dia, o ciclo diário fica regularizado pelos astros. A conexão entre luz e trevas com dia e noite é tão importante que o autor reforça o ponto duas vezes, enfatizando que essa alternância não é uma batalha entre deuses (como em mitos dualistas), mas simplesmente a alternância natural controlada pelos relógios cósmicos que Deus instalou. Vale lembrar que, antes do quarto dia, Deus próprio havia imposto essa alternância; agora Ele delega essa função, indicando “a partir de então” uma estabilidade contínua do ciclo diurno-noturno. Essa delegação divina também demonstra um ponto teológico: Deus não depende do sol para trazer luz – Ele criou a luz antes e poderia tê-la sustentado independentemente – mas escolhe estabelecer meios secundários (sol, lua, estrelas) como instrumentos da sua providência diária. Isso ensina implicitamente que as segundas causas (leis naturais, astros) operam sob a primeira causa (Deus), um conceito caro à teologia reformada da criação.

  • “Sirvam eles de sinais, para tempos determinados, dias e anos” – Aqui encontramos termos hebraicos importantes: ’otot (אֹתוֹת) para “sinais” e mo‘adim (מוֹעֲדִים) para “tempos determinados” (ou estações, festas). A construção da frase admite algumas interpretações, e os eruditos divergem quanto à relação entre “sinais” e “tempos”. Uma possibilidade é tomar “sinais e tempos determinados” como uma expressão conjunta (hendiadys), significando “sinais das estações” – isto é, os astros marcariam as mudanças de estação do ano. Outra visão, preferida por muitos comentaristas modernos, é que sinais seria uma categoria geral subdividida em duas: (a) tempos determinados (as estações festivas ou sagradas) e (b) dias e anos (o tempo cronológico em geral). Há ainda quem veja três categorias separadas: (a) sinais celestes extraordinários (como eclipses, cometas – ou o arco-íris em Gn 9:12 – que servem de presságios), (b) as estações ou festivais marcados astronomicamente, e (c) a contagem de dias e anos do calendário comum. Seja qual for a melhor análise sintática, o sentido amplo é claro: os luminares estabelecem os marcadores de tempo para a vida na terra. Eles são os “relógios” e “calendários” divinamente dispostos no céu.


Do ponto de vista histórico, isso era vital: as culturas antigas dependiam do movimento do sol e especialmente das fases da lua para marcar calendários agrícolas e religiosos. A palavra mo‘adim muitas vezes refere-se a festivais sagrados em outras partes da Bíblia (por exemplo, Lv 23:2 fala das “festas fixas” do Senhor, usando mo‘adim). Não é coincidência, portanto, que o texto mencione “tempos determinados” – Deus desde a criação estava provendo os meios para que seu povo, no tempo certo, regulasse as colheitas e celebrasse as festas ao longo do ano litúrgico. Alguns estudiosos chegam a sugerir que o autor de Gênesis pudesse estar aludindo a um calendário específico usado em Israel (por exemplo, um calendário solar de 364 dias como o de Qumran, no qual o ano-novo sempre caía no quarto dia da semana). Essa hipótese é interessante, mas incerta. O ponto central permanece: o cosmos possui uma ordem temporal objetiva, instaurada por Deus – dias, anos e estações não são produtos do acaso, mas da disposição divina para benefício humano e, particularmente, para a correta adoração no tempo devido.


“Para governar o dia e a noite” – Aqui entra o verbo mashal (מָשַׁל), que significa governar, dominar. Deus concede ao sol e à lua um tipo de regência sobre o ciclo diário (1:16, 18). Importa notar que esse “governo” é relativo e funcional, não absoluto. Os luminares “mandam” na alternância de dia e noite, mas estão eles mesmos sujeitos à palavra de Deus que os colocou ali. A linguagem confere dignidade aos astros como parte da estrutura hierárquica da criação: assim como o homem iria “governar” sobre os seres vivos terrestres (1:28), o sol e a lua governam sobre os dias e noites. Porém, essa analogia tem limite – humanos são portadores da imagem de Deus e vice-regentes conscientes dEle, ao passo que o sol e a lua, embora chamados “maiores luminares”, não possuem vontade própria nem glória inerente. São regentes-servos, cuja autoridade restringe-se ao que lhes foi delegado. O Salmo 136:7-9 ecoa Gênesis 1 ao louvar “Aquele que fez os grandes luminares... o sol para governar o dia, e a lua e as estrelas para presidirem a noite, porque sua misericórdia dura para sempre”. Ou seja, até mesmo esse “governo” do sol e da lua é um ato da misericórdia de Deus para com suas criaturas, mantendo a constância necessária à vida.


É interessante que na poesia hebraica posterior, os luminares às vezes sejam personificados para louvar a Deus (p.ex. Salmo 148:3: “Sol e lua, louvem ao Senhor!”), mas nunca para roubar a glória de Deus. Em Gênesis 1, a linguagem de governo dos astros é imediatamente equilibrada pela afirmação de que eles servem “para iluminar a terra” (1:15, 17) – isto é, seu reinado é serviço. Eles governam fazendo o bem, provendo luz. Matthew Henry comenta que a maneira mais honrada de governar é “dar luz e fazer o bem”. Isso confere também um sentido moral figurado: líderes legítimos são aqueles que iluminam e servem ao bem dos súditos, um princípio que podemos derivar analogamente desse texto.


“E também as estrelas” – Quase um pós-escrito lacônico no versículo 16: “fez também as estrelas”. Essa breve menção carrega um peso teológico enorme. No mundo antigo, as estrelas eram objeto de intenso fascínio religioso; muitas culturas viam nelas seres divinos ou ancestrais, ou instrumentos deterministas do destino humano (astrologia). Mas aqui, em hebraico original, as estrelas não ganham nem sujeito próprio na frase – literalmente o texto pode ser traduzido como “e as estrelas” (como complemento direto de “fez Deus”). É como se dissesse: “Deus fez o sol, a lua... ah, e as incontáveis estrelas também”. Deliberadamente breve, essa nota rebaixa o status das miríades de astros distantes: longe de serem divindades misteriosas, são apenas mais criaturas de Deus, quase um produto lateral de Sua palavra criadora. Um comentarista observa: “as estrelas são mencionadas aqui como elas aparecem aos olhos comuns, sem distinção entre planetas e estrelas fixas, nem explicação de seu número, natureza ou influência, porque as Escrituras foram escritas não para satisfazer nossa curiosidade tornando-nos astrônomos, mas para nos conduzir a Deus e nos tornar santos”. Ou seja, a finalidade do relato não é explicar astrofísica, mas teologia: colocar astros imensos em seu devido lugar de servos do Criador.


Mesmo quando consideramos a ciência moderna – que revela bilhões de galáxias e estrelas – essa frase “fez também as estrelas” continua impressionante por sua simplicidade. Quão grande é Deus, que criou com a mesma facilidade o Sol vizinho e trilhões de estrelas longínquas! Hoje sabemos, por exemplo, que existem provavelmente mais estrelas no universo observável do que todos os grãos de areia de todas as praias e desertos da Terra multiplicados por três. Essa comparação, apontada pelo físico e apologista cristão Adauto Lourenço, nos deixa assombrados: o autor bíblico, sem qualquer desses dados científicos, já expressou essa realidade incomensurável ao praticamente despreocupar-se em quantificar ou engrandecer as estrelas – para Deus, fazê-las “também” não foi nenhum esforço extra. É um understatement proposital do texto, que destaca a facilidade do ato criativo divino.

Resumindo a análise lexical, Gênesis 1:14–19 emprega termos e construções simples, mas altamente intencionais. Palavras como luminares, sinais, tempos determinados e governar são escolhidas para comunicar que os corpos celestes desempenham papéis definidos no ecosistema temporal e físico do mundo, segundo a ordem de Deus. A linguagem é antimitológica, funcional e teologicamente orientada, servindo de fundamento para muitas doutrinas: Deus como rei soberano que delega autoridade, a bondade intrínseca da criação material (incluindo a escuridão da noite, que Deus não elimina mas subordina – note-se que as trevas também foram declaradas “boas” indiretamente por fazerem parte do “muito bom” em 1:31), e a ideia de um universo ordenado e inteligível, onde astros podem ser “sinais” – isto é, portadores de informação útil, como as estações e o calendário, mas nunca portadores de revelação autônoma ou deterministas do destino. Esses pontos ficarão mais claros ao olharmos as implicações teológicas e contrastarmos essa visão bíblica com outras cosmovisões.


Interpretações Teológicas: Literalismo, Reformada e Outras Abordagens


A narrativa do quarto dia da criação tem sido interpretada de diferentes maneiras dentro do cristianismo, conforme variam as compreensões do gênero de Gênesis 1, da ciência e do propósito do texto. Abordaremos aqui algumas perspectivas principais – enfatizando a linha reformada clássica – mas também apresentando outras visões legítimas: desde a leitura literalista estrita, passando pelo concordismo científico, até abordagens literárias ou mitopoéticas.


1. Perspectiva Tradicional e Reformada: Historicamente, teólogos da tradição reformada afirmaram a veracidade histórica da criação em seis dias, vendo nela um fundamento para doutrinas como a soberania de Deus, a bondade da criação e a instituição do sabá. Muitos reformados têm lido Gênesis 1 de forma literal-articulada, isto é, entendendo que o texto ensina eventos reais ocorridos em uma sequência temporal, ainda que reconheçam seu estilo especial. João Calvino, por exemplo, interpretou os dias como dias normais, mas já no século XVI ele alertava contra a curiosidade imprópria: Moisés escreve de forma acessível “segundo a nossa capacidade” e não segundo segredos astronômicos ocultos. Calvino via a criação dos luminares no quarto dia, após a luz no primeiro dia, como uma providência deliberada de Deus para que os homens não atribuíssem ao sol a honra de ser a fonte primária da luz e da vida – honra que pertence somente a Deus. Essa ênfase é típica da interpretação reformada: o relato serve para desmascarar idolatrias e exaltar a Deus como o único criador. Derek Kidner, um expositor de linha evangélica reformada, sublinha que Gênesis 1 tem servido de “baluarte contra uma sucessão de erros” ao longo dos séculos: politeísmo, dualismo, a ideia da matéria eterna, a noção de que a matéria é inerentemente má, a astrologia e – não menos – contra toda tendência de esvaziar de sentido a história humana. Ou seja, a cosmovisão expressa aqui refuta tanto o paganismo antigo quanto filosofias modernas de niilismo.


Dentro da tradição reformada, entretanto, há certa variedade quanto à duração e natureza dos dias da criação. Alguns, seguindo a leitura mais direta, sustentam que foram dias solares de 24 horas, ocorridos há poucos milhares de anos (visão hoje identificada com o criacionismo de Terra jovem, defendido por teólogos como R. C. Sproul em sua fase tardia, ou grupos como Answers in Genesis). Esses intérpretes enfatizam que a sequência explícita do texto (tarde e manhã, numeração ordinal dos dias) sugere fortemente dias literais e consecutivos. Eles apontam que o próprio decálogo, em Êxodo 20:11, baseia o mandamento do sábado no padrão da criação em seis dias e descanso no sétimo, implicando dias normais e uma semana original. Assim, para os literalistas, Gênesis 1:14–19 descreve o momento em que Deus realmente criou fisicamente o sol, a lua e todas as estrelas em um único dia de 24 horas, por milagre direto. Essa interpretação não se incomoda com aparentes problemas científicos (como as estrelas estarem a bilhões de anos-luz), pois confia no poder sobrenatural de Deus: Ele poderia criar a luz já “a caminho” da Terra, ou acelerar processos naturais. De fato, literalistas frequentemente argumentam que a criação foi feita madura – as árvores já frutificando no dia 3, Adão já adulto no dia 6, e por analogia, a luz das galáxias já percorrida no dia 4. O foco teológico é a omnipotência imediata de Deus. Autores contemporâneos nessa linha, como o cientista cristão Adauto Lourenço e o engenheiro Henry Morris, celebram o texto justamente por contrariar as suposições naturalistas: Morris comenta que, embora estrelas sejam fisicamente muito maiores que a Terra ou o Sol, Deus as menciona de modo secundário na criação; para Ele o que importa não é o tamanho, mas o propósito e a complexidade – e a Terra, embora pequena, é incomparavelmente mais complexa e preparada para a vida do que qualquer estrela. Essa visão sustenta que nenhum desenvolvimento evolutivo ou processo lento é indicado no texto – “não há sugestão de algum tipo de evolução”, escreve Warren Wiersbe, pois cada criatura é feita segundo sua espécie e os astros aparecem subitamente por ordem divina. O quarto dia, então, reforça que Deus não apenas formou a Terra previamente, mas depois fez os corpos celestes para servi-la, em um claro ato de priorização do habitat humano.


Por outro lado, alguns teólogos reformados de postura igualmente elevada da Escritura adotam uma interpretação não tão restritiva quanto ao como e quando. Por exemplo, a Hipótese do Estruturamento (Framework), defendida por figuras como Meredith Kline, entende os dias de Gênesis 1 mais como um dispositivo literário teológico do que uma cronologia estritamente literal. Nessa leitura, o quarto dia não necessariamente indica a criação material tardia do Sol, mas ensina teologicamente que Deus é quem designa os astros para suas funções – a ordem dos dias é vista como temática: dias 1–3 apresentam reinos (dia/noite, céus/mares, terra seca) e dias 4–6 apresentam os regentes ou habitantes desses reinos (luminares, aves/peixes, animais/humanos). Assim, o dia 4 corresponde ao dia 1 de forma arquitetônica, e a sequência pode ter uma lógica literária em vez de cronológica. Essa abordagem ressalta a sabedoria de Deus em organizar o relato de forma pedagógica, mas não exige que, por exemplo, as estrelas fisicamente tenham surgido após a Terra – elas poderiam já existir e apenas serem alocadas funcionalmente no drama do quarto dia. Ainda no campo reformado, alguns optam pela visão do Dia-Época (day-age), interpretando cada “dia” como um longo período indefinido em que Deus conduziu processos criativos. Dentro dessa leitura concordista, Gênesis 1:14–19 pode ser harmonizado com a ciência moderna supondo-se, por exemplo, que o Sol já existia desde o “dia” anterior mas sua luz não alcançava a superfície da Terra devido a uma atmosfera opaca; então, no quarto “dia” (entendido como era geológica), a atmosfera teria clareado, fazendo o sol e a lua aparecerem no firmamento visíveis da Terra. Essa explicação – adotada por alguns criacionistas de Terra antiga – tenta responder por que haveria vegetação (dia 3) antes do sol (dia 4): a vegetação surgiu quando ainda havia luminosidade difusa, e o sol tornou-se visível logo depois, regulando os ciclos. Outros concordistas propõem que “fez os dois grandes luminares” (v.16) significa na verdade “designou” ou “passou a haver” – interpretando que Deus poderia ter criado o sol antes, mas apenas no quarto dia estabeleceu sua função reguladora de calendário. Embora tais leituras não sejam o sentido mais óbvio do texto, elas nascem da tentativa de honrar tanto a Bíblia quanto dados científicos de longa data da terra e do cosmo.


Para a teologia reformada clássica, independentemente de se entender os dias como literais ou figurados, o cerne é manter a doutrina da criação ex nihilo (do nada, pela Palavra de Deus) e a historicidade fundamental de que houve um começo ordenado pelo Criador. A Confissão de Fé de Westminster (IV.I) declara que Deus criou o mundo e todas as coisas “em seis dias; e tudo muito bom”. Essa afirmação tem gerado discussões se os teólogos de Westminster pretenderam endossar dias de 24h – muitos argumentam que sim, mas há hoje interpretações de que eles não fechariam a porta para dias figurados. De todo modo, todos concordam que Gênesis 1 ensina verdades teológicas imutáveis: a criação é obra soberana do Deus triúno (o termo “Elohim”, plural, já sugere a plenitude divina, e a Tradição cristã frequentemente viu alusões à Trindade na palavra criadora e no Espírito pairando, bem como nos “fiat” divinos). Cada passo da criação foi intencional e “bom”. No quarto dia especificamente, enfatiza-se que o estabelecimento dos luminares demonstra a sabedoria providencial de Deus: Ele não apenas cria a matéria, mas lhe dá forma, ordem e propósito claro.


2. Visões Literalistas de Terra Jovem: Já delineamos acima a visão literalista no contexto reformado, mas vale notar que a defesa veemente dos dias de 24 horas e da criação recente da Terra é compartilhada amplamente em círculos evangélicos fundamentalistas e pentecostais também. Representantes notáveis incluem ministérios apologéticos da linha do Instituto de Pesquisa da Criação (ICR) e Respostas em Gênesis (AiG). Para esses intérpretes, Gênesis 1:14–19 é um registro factual e cronológico – Deus criou o sol, lua e estrelas depois da Terra e das plantas. Eles frequentemente apontam que a ordem bíblica confronta diretamente o paradigma cosmológico naturalista, no qual estrelas e galáxias se formam bilhões de anos antes de planetas como a Terra. Essa inversão bíblica (Terra e vegetação antes dos astros) seria proposital para demonstrar a falácia dos sistemas humanos que excluem Deus. De fato, um pai da igreja, Teófilo de Antioquia (século II d.C.), já argumentava contra filósofos gregos dizendo: “No quarto dia, os luminares vieram à existência. Como Deus tem presciência, Ele entendeu as tolices dos filósofos que iriam dizer que as coisas terrestres vieram dos astros, então [as Escrituras mostram que] o mundo e as plantas foram criados antes das estrelas”. Essa citação antiga ilustra que a leitura literal do quarto dia serviu até mesmo como polêmica apologética primitiva contra o materialismo e o astrolatrismo. Os criacionistas atuais mantêm esse espírito: longe de verem Gênesis 1 em conflito com a verdadeira ciência, eles afirmam que a ciência deve submeter-se ao dado revelado. Argumentam, por exemplo, que a aparente idade das estrelas (medida por bilhões de anos-luz) não é obstáculo insuperável – Deus que criou a luz poderia fazê-la já estendida; ou poderiam existir explicações físicas alternativas (alguns sugerem que a velocidade da luz era maior no passado, ou efeitos relativísticos do dilúvio cósmico, etc.). Embora tais hipóteses não sejam consenso científico, esses intérpretes as propõem para mostrar que não há contradição lógica entre um universo jovem e a observação atual, apenas contradição com modelos uniformitaristas naturalistas. Em resumo, a hermenêutica literalista lê Gênesis 1:14–19 como história simples, reforçando a visão elevada da Escritura: se Deus nos disse “sol e lua no dia 4”, então assim foi – e o crente deve confiar nessa ordem como verdadeira, ainda que a ciência ofereça outro cenário.


3. Concordismo Científico (Terra Antiga/Progressivo): Em contraste com o literalismo jovem, os criacionistas de Terra antiga e outros concordistas aceitam a evidência científica de que o universo tem bilhões de anos, mas sustentam que Gênesis 1 está em harmonia com essa realidade quando adequadamente compreendido. Para eles, Gênesis 1:14–19 registra não tanto o momento da criação material do sol e estrelas, mas a atribuição de propósito e manifestação deles num processo já em curso. Uma interpretação popular nesse meio é a da “revelação progressiva”: Gênesis 1 seria narrado da perspectiva de um observador hipotético na Terra. Assim, nos três primeiros “dias”, a Terra (coberta de nuvens espessas) experimenta luz difusa (dia 1), separação entre atmosfera e oceanos (dia 2) e emergência da terra seca com plantas (dia 3). Somente no dia 4 é que o céu se abre – a densa camada atmosférica dissipando-se – permitindo que sol, lua e estrelas se tornem visíveis claramente da superfície, marcando então os ciclos. Essa abordagem faz “dia 4” corresponder, por exemplo, ao fim do período Arqueano geológico, quando a fotossíntese das primeiras plantas teria oxigenado a atmosfera, reduzindo a névoa de vapor e permitindo a luz solar direta atingir o solo. Embora essa hipótese não seja explicitamente bíblica, é uma tentativa de harmonizar a sequência: desse modo, a cronologia de Gênesis 1 se alinha com uma certa ordem natural (luz difusa antes do sol visível, Terra primitiva antes das estrelas serem vistas, etc.). Outros concordistas, como Hugh Ross, leem os dias como longos períodos e argumentam que Deus de fato criou o sol antes, mas no quarto “dia-época” designou as condições para que ele regulasse dias e anos – talvez inclusive criando a lua nessa fase a partir de um impacto (encaixando a teoria científica da origem da lua com um asteróide). Nessa ótica, a frase “Fez Deus os dois grandes luminares” pode ser entendida como “Deus os tornou (funcionalmente) os dois grandes luminares”. Já a menção das estrelas seria parentética – Deus, lá atrás, também criara as estrelas durante o processo do dia 1 ou 2, mas o autor só as cita aqui para completar a informação.


Críticos argumentam que esses malabarismos interpretativos extrapolam o texto. No entanto, os concordistas creem que a Bíblia, corretamente lida, não entra em conflito com fatos da natureza, pois o mesmo Deus que revelou a Escritura criou o mundo. Assim, eles buscam uma leitura alternativa, contanto que respeite a infalibilidade bíblica. Um ponto positivo que ressaltam no dia 4 é a incrível precisão de o autor antigo ter destacado que os luminares servem para “tempos, dias e anos” – exatamente as funções que a astronomia moderna confirma: a translação da Terra (ano), a rotação (dia) e a inclinação orbital (estações). Para eles, isso indica que a intenção do texto é funcional e fenomenológica, não necessariamente dar a ordem cronológica de surgimento astral. Alguns concordistas citam também que a palavra hebraica asah (עשה, “fez”) usada no v.16 não exige criação ex nihilo naquele instante – asah é um verbo genérico que pode significar “fazer, formar, trabalhar” e não o termo “criar” (bara’) que aparece em 1:1 e 1:21. Então, enquanto Deus bara a luz no começo e bara o homem depois, Ele asah os luminares, o que poderia implicar formação ou designação a partir de materiais preexistentes (por exemplo, consolidando luz prévia em corpos luminosos). Essa nuance linguística, embora sutil, dá margem para conciliar a existência prévia do sol com sua nomeação funcional no dia 4.


Em suma, a leitura concordista científico vê Gênesis 1:14–19 como teologicamente autoritativo, porém não necessariamente contrariando a ciência – ao contrário, possivelmente antecipando verdades científicas sob forma velada. Um exemplo interessante: o texto diz que os luminares servem “de sinais”. Hoje sabemos que estrelas e galáxias carregam sinais (informações) sobre as origens do universo e até nosso elemento químico constitutivo (“somos feitos de poeira de estrelas” no jargão científico). Claro, o autor bíblico não tinha isso em mente, mas um concordista cristão poderia maravilhar-se de como a criação dos luminares aponta para uma legibilidade do cosmos que permitiu o desenvolvimento da ciência astronômica. Ainda que tal reflexão extrapole a intenção original, ela demonstra a convicção concordista de que não há dois livros separados – o da Escritura e o da Natureza – mas um único autor de ambos.


4. Abordagens Mitopoéticas e Simbólicas: Outra classe de interpretação, presente entre alguns teólogos acadêmicos e denominacionais históricas, lê Gênesis 1 de forma principalmente teológica e poética, não como relato histórico literal. Essas abordagens veem o texto como uma afirmação da fé de Israel em forma de cosmogonia teológica, por vezes utilizando imagens e estruturas literárias comuns no antigo Oriente Próximo, porém com um monoteísmo puro e intencional. Por exemplo, a chamada Visão do “Tempo do Templo” (proposta pelo estudioso John Walton) argumenta que Gênesis 1 descreve em linguagem figurativa a função das coisas na ordem criada, comparando a semana da criação a uma inauguração cósmica do templo do universo, com o sétimo dia sendo Deus assumindo seu trono de repouso. Nessa leitura funcional, o dia 4 seria quando Deus “instala as luminárias” como lâmpadas celestiais no seu “templo” cósmico, não muito diferente de como, na dedicação do Tabernáculo, Moisés acendeu o candelabro para iluminar o santuário. A ênfase recai no simbolismo: os luminares marcam tempos sagrados (festivais = mo‘adim), quase como relógios litúrgicos do templo cósmico. Essa abordagem não se preocupa com a ordem física de surgimento do sol e estrelas, pois entende que o texto não visa uma cronologia científica, mas sim afirmar que Deus deu propósito e função a cada elemento. As aparentes incoerências (luz antes do sol, plantas antes do sol) seriam intencionais para comunicar precisamente que Deus é a fonte e não as coisas criadas – um recurso estilístico teológico.


Ainda na vertente simbólica, alguns exegetas consideram Gênesis 1 um tipo de poema ou hino litúrgico. Embora não tenha a forma métrica da poesia hebraica clássica, ele tem refrões e cadência que sugerem um uso cultual (talvez recitado no templo). Assim, a “verdade” do texto estaria no seu significado espiritual e doutrinário, não em detalhes factuais. Nessa visão, Gênesis 1:14–19 instrui os ouvintes a reverenciarem o Criador e a enxergarem o cosmos como algo ordenado e bom; a sequência temporal seria secundária ou até didática. Algumas igrejas cristãs tradicionais, ao conciliar fé e ciência, adotam essa abordagem, ensinando que Deus é o Criador de tudo (e aqui Ele estabelece luminares para governar dias e noites), mas não necessariamente insistindo que o Sol surgiu após a Terra literalmente – antes, afirmam que “o propósito teológico do autor não era fornecer uma cronologia astrofísica, e sim combater idolatrias e ensinar a soberania de Deus”.


É importante, entretanto, distinguir leitura mitopoética (que vê Gênesis 1 como um mito teológico ou alegoria) da negação da historicidade total. Mesmo intérpretes não literalistas geralmente reconhecem Adão e Eva e a Queda como eventos fundantes da história redentora. Gênesis 1, porém, pela sua singularidade, é por vezes visto como um prelúdio altamente estilizado. Essa visão mitopoética destaca, por exemplo, que a estrutura de sete dias aponta para perfeição e completude (sete é número simbólico); que a repetição de “era bom” indica a bondade essencial do mundo criado; e que o repouso divino no sétimo dia traz um significado espiritual (Deus estabelecendo comunhão com a criação).


No que tange ao quarto dia, essas abordagens ressaltam a política teológica do texto: num mundo rodeado por culturas que adoravam astros, Israel entoava que até o “grandioso” sol e a “prateada” lua foram feitos por Yahweh e cumprem Sua ordem – não há sol deus da justiça (Shamash) nem lua deusa da fertilidade (Sin/Ishtar) independentes, mas apenas servos do Altíssimo. Assim, mesmo quem não lê o quarto dia literalmente pode extrair a mesma lição central: Deus reina sobre o tempo e a luz.


5. Conclusão das Interpretações: Dentro da ortodoxia cristã, a interpretação reformada clássica mantém a centralidade teológica da passagem, vendo-a como verdadeiro relato histórico-teológico. Contudo, reconhece-se que há “espaço” para diferentes entendimentos dos detalhes do “como” e “quando” Deus fez, desde que não se traia a mensagem básica. A fidelidade ao texto bíblico e à tradição cristã reformada exige afirmar pelo menos que: (a) Deus criou soberanamente os luminares – eles não surgiram por si nem por outros deuses; (b) Ele os criou com um propósito definido (iluminar e reger o ritmo temporal para benefício das criaturas); (c) Ele declara essa obra boa, o que implica que matéria e tempo são bons dons de Deus, não ilusões nem prisões malignas (ao contrário do que pensavam algumas seitas gnósticas ou filosofias que desprezam o mundo físico); e (d) o relato, ao ser dado num formato de seis dias, estabelece um padrão para o trabalho e descanso humanos (que repercute no mandamento do sábado).


Desde os primórdios da igreja há reflexão sobre detalhes de Gênesis 1 que permitem certa elasticidade. Por exemplo, Santo Agostinho, muito antes de surgir a ciência moderna, já sugeria em suas Confissões e De Genesi ad Litteram que talvez Deus tenha criado tudo simultanemente e os “dias” sejam uma forma de descrever essa criação única sob diversas ordens de conceitos – ele tinha dificuldade em imaginar dias literais sem sol para marcá-los nos três primeiros. Sua preocupação era teológica: Deus não está sujeito ao tempo, então a criação do tempo (dia/noite) é algo misterioso. Mesmo Calvino admitiu que Gênesis 1 não nos satisfaz todas as curiosidades astronômicas, mas nos dá o que precisamos saber para adorar a Deus e entender nosso lugar no mundo. Portanto, dentro da ortodoxia reformada, pode-se dialogar com ciência e outras abordagens interpretativas, contanto que não se comprometa a sola Scriptura (Escritura como autoridade) e o sensus plenior que a igreja sempre enxergou ali – ou seja, que “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo sopro de sua boca” (Salmo 33:6).


Em conclusão desta seção, percebemos que Gênesis 1:14–19 suporta múltiplas camadas de leitura: literal/histórica, literária/estrutural e teológica/devocional. Cada abordagem traz à tona facetas importantes. A leitura literal sublinha o poder sobrenatural de Deus que age na história concreta; a literária ressalta a beleza e intencionalidade do arranjo do texto; e a teológica nos relembra o propósito principal – comunicar quem é Deus e quem não são os luminares. Na exposição reformada, costuramos essas dimensões, reconhecendo a realidade histórica da criação dos astros no tempo de Deus, mas também apreciando como o texto serve de fundamento doutrinário e pastoral para o povo de Deus em todas as eras.


Os Luminares e as Cosmogonias do Antigo Oriente Próximo


Um dos aspectos mais fascinantes (e polêmicos) do relato bíblico da criação é como ele dialoga com as cosmogonias do antigo Oriente Próximo (AOP), em especial no que tange ao Sol, à Lua e às estrelas. Gênesis 1:14–19, quando lido em seu contexto histórico-cultural, funciona quase como um manifesto contracultural: num tempo em que povos vizinhos de Israel cultuavam os astros como deuses ou personificações do destino, o escritor sagrado apresenta uma visão radicalmente distinta – monoteísta e desacralizadora do cosmos. Consideremos algumas cosmogonias e mitos do AOP:


  • Na antiga Mesopotâmia, por exemplo, o Enuma Elish (épico babilônico da criação, provavelmente conhecido nos círculos israelitas pós-exílicos) descreve como o deus Marduk, após vencer a deusa do caos Tiamat, organiza o universo. Em tábuas desse épico, Marduk fixa as luminárias celestes: ele “estabelece as constelações dos deuses no céu”, designa as fases da lua e cria o calendário, tudo isso para assegurar a ordem cósmica e também, significativamente, para marcar festivais. Vemos aí um paralelo formal com Gênesis 1: as luminárias determinando tempos e estações. Porém, a diferença teológica é gritante: no mito babilônico, o sol (Shamash) e a lua (Sin) são divindades ou corpos governados por deuses, cuja colocação no céu é parte da consolidação do poder de Marduk dentro de um panteão. Além disso, há toda uma narrativa de conflito prévio (teomáquia) para que a ordem surja. Já Gênesis não conhece nenhuma batalha cósmica: a criação dos luminares é pacífica, pelo fiat divino, e não há outros deuses em cena. O autor bíblico parece até deliberadamente reduzir o drama ao mínimo – “fez os luminares... e as estrelas” – como já notamos, quase trivializando o que para Babilônia era glorioso feito de um deus supremo. Essa demitologização sugere que Gênesis 1 foi escrito, entre outras razões, para corrigir e confrontar as ideias pagãs. Deus sozinho cria; os astros não têm vontade própria nem poderes místicos: eles obedecem.

  • No Egito Antigo, a religião solar era central. O deus Rá (ou Ámon-Rá) era adorado como criador e sustentador, identificado com o Sol. Faraó era considerado “filho de Rá”. Em uma das cosmogonias egípcias, o deus Atum (aspecto de Rá) surge das águas primevas e gera Shu e Téfene, e eventualmente o Sol nasce como um deus. Ou seja, para o egípcio, o surgimento do Sol está ligado a genealogias divinas e o próprio ciclo dia-noite é uma renovação do deus solar (que “morre” ao anoitecer e viaja pelo submundo). Gênesis 1, possivelmente contrapondo-se a esse pano de fundo (lembrando que Moisés, o tradicional autor de Gênesis, teria sido educado no Egito), nem menciona o nome “Sol” – justamente o nome do deus Rá em hebraico (רֶע, shemesh) – para não evocar a divindade egípcia. Em vez disso, “luminar maior” deixa claro: não é uma pessoa divina com nome, é apenas um objeto funcional. Assim, para um israelita que conhecia o poder ideológico da religião egípcia, o quarto dia de Gênesis soa quase como uma zombaria sutil: “aquele que os povos reverenciam como o maior deus – o Sol – não passa de uma lâmpada fabricada pelo nosso Deus, colocada lá em cima para iluminar o chão”. E o mesmo vale para a Lua, venerada em cultos cananeus e mesopotâmicos como deusa ou deus (Sin, Nana, Ishtar sob certas formas).

  • Outro paralelo interessante está nos relatos cananeus. Em Ugarit, textos míticos falam do deus Lua (Yarikh) como patrono da fertilidade noturna e do deus Sol (Shapash) como juiz que brilha. Contudo, até onde sabemos, nos panteões do Oriente Próximo, o Sol e a Lua apesar de importantes, não são criadores supremos – geralmente eles mesmos são criados ou nascidos de deuses superiores. Gênesis, ao ignorar completamente genealogias e simplesmente atribuir a Deus o feito de tê-los feito, coloca Yahweh acima de todos, até acima de qualquer suposto pai dos luminares. “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (1:1) já implodiu a ideia de qualquer deus rival; quando chegamos ao dia 4, a implosão se completa ao tirar dos astros qualquer aura divina. Não é de admirar que os profetas e escritores bíblicos posteriores constantemente ridicularizam a idolatria astral – por exemplo, Jeremias 10:2: “Não aprendais o caminho dos gentios, nem vos espanteis dos sinais dos céus, ainda que os gentios se espantam deles”. Gênesis 1 dá a base: os “sinais” dos céus (eclipses, cometas, etc.) não carregam poder fatídico; eles não falam pelo destino cego, mas podem falar por Deus no sentido de servirem a Ele (como a estrela de Belém serviu de sinal aos magos). Em outras palavras, destitui-se a astrologia de validade. Uma nota exegética: a frase “sirvam de sinais” poderia, se isolada, ser mal-entendida como se Deus estivesse legitimando a astrologia (lendo-se “sinais celestes” como presságios do destino). Mas o restante – “para tempos, dias e anos” – deixa claro que são sinais cronológicos, não oraculares. Como comenta um estudioso, nessas poucas sentenças o texto exposta a falsidade das superstições antigas e modernas (como horóscopos). Os astros “governam apenas como luzeiros, não como potestades”.


Em vista desses contrastes, muitos estudiosos entendem Gênesis 1 como um texto com intento apologético/polemista além de catequético. Não que seja um panfleto contra um mito específico, mas seus traços sugerem conhecimento dos temas cosmológicos em voga e uma resposta a eles. Por exemplo, o fato de Gênesis mencionar explicitamente “as estrelas” (quando já havia falado dos dois luminares principais) pode ser para não deixar dúvida: “sim, até mesmo aquele incontável exército brilhante que vocês temem – Deus os fez também”. A tradição judaica notou isso; Filon de Alexandria (séc. I) e outros rabinos enfatizaram como a Torá coloca os astros como criação de Deus para afastar qualquer idolatria (eles até vincularam a expressão “todo o exército deles” de Gn 2:1 às estrelas como “exército do céu” que adora a Deus).


Outro exemplo notável vem da lei de Moisés: Deuteronômio 4:19 adverte Israel a não levantar os olhos aos céus, vendo sol, lua e estrelas, “e se deixar seduzir para inclinar-se perante eles e prestar-lhes culto”. A lei reconhece que os astros chamam atenção humana, mas proíbe explicitamente seu culto, afirmando que o Senhor os deu a todos os povos (i.e., eles são apenas parte da criação disponível). Ora, Gênesis 1 antecede teologicamente essa proibição mostrando já que os astros não são deuses.


Um detalhe linguístico reforça o antídoto bíblico contra a idolatria: na língua hebraica, as palavras comuns para sol (shemesh) e lua (yareach) aparecem em Gênesis 1 ou não? Não aparecem! Em vez disso, temos ma’or gadol (luminar grande) e ma’or qatan (luminar pequeno). Por quê? Possivelmente porque Shemesh e Yareach eram também nomes de deuses no Canaã e arredores. “Shemesh” era o nome do deus-sol entre semitas orientais; em Canaã havia a deusa-lua Yarikh. Ao evitar esses termos, o autor bíblico esvazia o panteão. É notável que mais adiante na Bíblia, quando os termos sol e lua já são usados normalmente, ainda assim há todo um monitoramento contra idolatria astral – por exemplo, os bons reis como Josias são elogiados por eliminar os cavalos e carros do sol (objetos de culto solar) que estavam no templo (2Rs 23:11). Jó 31:26-28 menciona que saudar o sol resplandecente ou a lua caminhando pode ser “iniquidade digna de juízo, pois seria negar o Deus lá de cima”. O pano de fundo cultural era forte, e Gênesis 1 atuou por milênios como o remédio teológico para esse mal: “No princípio... Deus fez...” – e isso inclui todos os seres que outros povos endeusavam.


Interessantemente, encontramos ecos desse entendimento polemico-teológico em escritos cristãos primitivos. Teófilo de Antioquia, já citado, não apenas usou Gênesis para refutar filósofos estóicos que consideravam as estrelas a origem de tudo, mas também fez uma alegoria cristológica: ele via nos três dias antes dos luminares uma figura da Trindade e talvez da luz de Cristo que precede o sol. Orígenes no século III argumentou que se o sol foi criado no quarto dia, não podia ser fonte original da vida ou digna de adoração, e usou isso contra pagãos. Ou seja, a igreja manteve essa leitura apologética.


Resumindo, Gênesis 1:14–19, lido à luz das cosmogonias AOP, destaca-se pela sua sublime simplicidade monoteísta. Ele afirma: (a) Os luminares não são deuses autônomos, mas criação do único Deus. (b) Eles não nasceram de conflitos ou sexualidade divina, mas de um decreto racional. (c) Seu propósito não é determinar nosso destino inexoravelmente (como na astrologia), mas prover luz e regular ritmos dados por Deus – servindo assim à humanidade e à ordem moral-divina. (d) Até mesmo a infinidade das estrelas é submetida numa breve menção, enfatizando que, por mais numerosa ou complexa que seja a criação, tudo provém de Yahweh. Como disse Bruce Waltke, comparando com os mitos do Oriente Médio: “enquanto nos mitos antigos do Oriente Médio o Sol e a Lua são as principais divindades, aqui são objetos sem nome designados pelo Deus criador para servirem à humanidade”. A diferença é de categoria: no paganismo, humanidade e naturezas astrais estão sujeitas a caprichos de deuses; na Bíblia, tanto os céus quanto os homens estão sob o cuidado do Deus único, e os céus até “contam a glória” dEle (Salmo 19:1) ao cumprir obedientemente seu papel.


Essa compreensão nos permite apreciar duplamente o texto bíblico: primeiro, como um produto contextualizado (Deus falando na linguagem do tempo de Moisés, confrontando erros presentes); segundo, como uma palavra atemporal que ainda hoje desmantela os “mitos” modernos – que embora não adorem Baal ou Shamash, caem noutras venerações: seja o cientificismo que endeusa os processos naturais, seja a astrologia popular e crenças da Nova Era que voltam a atribuir ao cosmos poder de guiar vidas. Gênesis 1 permanece atual ao proclamar que nem o sol, nem a lua, nem as galáxias têm a última palavra – todos eles são criaturas, obras das mãos de Deus, tal como nós. Logo, não são dignos de culto; antes, estão, conosco, no mesmo “palco da criação” apontando para Alguém maior.


Desafios Contemporâneos: Ciência e Fé à Luz do Quarto Dia


A passagem de Gênesis 1:14–19 também levanta questões relevantes nos debates contemporâneos sobre a relação entre ciência e fé. Embora, conforme vimos, o texto não seja um “manual científico”, seu conteúdo tangencia áreas da cosmologia, astronomia e cronologia que geram discussão. Vamos abordar alguns pontos polêmicos que emergem quando confrontamos o relato bíblico com o conhecimento científico moderno, sempre buscando compreender as possíveis harmonizações ou tensões e o que isso significa para a fé cristã.


1. Luz antes do Sol – um problema científico?  A primeira dificuldade óbvia é: como pode haver “dia e noite” e “tarde e manhã” nos três primeiros dias se o sol só aparece no quarto? Esta questão é frequentemente levantada por críticos da Bíblia, mas também intriga crentes fiéis. Cientificamente, sabemos que a alternância de dia e noite é causada pela rotação da Terra exposta à luz do Sol. Sem sol, não haveria um ciclo normal de claro/escuro a cada 24 horas. Então, o que seria a “luz” do dia 1 que permitiu aquelas “tardes e manhãs” até o dia 4?


  • Resposta sobrenaturalista: Deus é perfeitamente capaz de criar uma fonte de luz temporária ou simplesmente fazer brilhar luz de Si mesmo. Afinal, em Apocalipse 22:5 diz-se que na Nova Jerusalém “não precisam de luz de lâmpada nem do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles”. Alguns sugerem que a luz primordial poderia ser a própria glória divina resplandecendo sobre a criação inicial. Outros, como defendido na tradição judaica (e.g. pelo historiador Josefo), especularam que era um tipo de luz cósmica difusa. O texto bíblico não explica a fonte, apenas afirma que Deus disse “Haja luz” e houve luz (1:3). Os literalistas acenam que, por três dias, houve um milagre constante – talvez uma coluna de luz, ou um brilho em toda parte – sustentado por Deus, até Ele “transferir” a função ao sol no quarto dia. Assim, na perspectiva sobrenaturalista, não há contradição alguma: Aquele que é Luz (1Jo 1:5) supriu a luz inicial.

  • Resposta fenomenológica/literária: Como já exploramos, algumas interpretações não veem necessidade de um sol “físico” só no dia 4. O sol poderia existir antes, mas a narração fenomenológica faz o observador só “vê-lo” no dia 4. Ou então, a estrutura literária desejava apresentar Deus criando luz primeiro para mostrar Sua supremacia, deixando o surgimento do sol propositalmente tardio no enredo para enfatizar a teologia. Nesse caso, não se trata de uma cronologia física, mas de uma ordem lógica e teológica. Essa leitura alivia a tensão com a ciência, pois se supormos que o sol físico já existia desde o “princípio” (1:1) ou desde o primeiro dia, a Terra já teria dia e noite desde então – e o autor apenas postergou sua menção por motivos temáticos.

  • Resposta concordista naturalista: Outra tentativa é dizer que a Terra inicialmente tinha luz difusa, possivelmente do sol por trás de densas nuvens ou de reações químicas na atmosfera. Os dias poderiam ter sido longos períodos durante os quais a claridade existia sem o sol visível. Essa hipótese se correlaciona com ideias como a Terra primordial envolta em poeira ou nuvens de gás incandescente que emitiam claridade. Embora essa ideia seja especulativa, ela tenta encontrar um processo natural para a luz sem sol (por exemplo, luminescência atmosférica ou luz zodiacal refletida). De qualquer forma, é bom lembrar que a ciência atual não endossa nenhum cenário em que haja luz diurna na Terra por bilhões de anos sem o sol – então os concordistas tendem mais para a explicação da atmosfera opaca do que para uma fonte de luz alternativa.


2. A idade do universo e das estrelas: Um segundo ponto de confronto é que, segundo a cosmologia padrão, as estrelas (incluindo o Sol) se formaram bilhões de anos antes da Terra. O Sol tem cerca de 4,6 bilhões de anos; a Terra, 4,5 bilhões. Milhões de estrelas mais velhas existiram antes do Sol. Gênesis, se lido literalmente, dá a impressão inversa: a Terra (1:1–2) e até plantas (dia 3) antes das estrelas (dia 4). Isso representaria um sério “erro” do ponto de vista científico moderno. Como os cristãos respondem?


  • Os criacionistas de Terra jovem respondem francamente que Deus criou o universo maduro. Assim, Ele poderia ter criado luz de estrelas já viajando pelo espaço de modo que, ainda que a estrela esteja a 13 bilhões de anos-luz, sua luz já alcançasse a Terra instantaneamente ao ser criada. Eles apontam que Deus criou Adão adulto, árvores já frutíferas, etc., então o universo poderia ser análogo. Essa ideia da “luz em trânsito” recebe críticas (seria Deus enganando ao criar um feixe de luz com aparência de história inexistente? – ex.: luz de uma supernova de uma estrela nunca criada realmente), mas é uma possibilidade que alguns defendem. Outra abordagem jovem é questionar os métodos de datação (por exemplo, sugerindo que a velocidade da luz não é constante ou que os modelos cosmológicos podem estar equivocados). São posições minoritárias na ciência, mas são exploradas em literatura criacionista. Para esses cristãos, se há desacordo entre Gênesis e a ciência secular, confia-se na Escritura e aguarda-se que a ciência um dia se ajuste ou reconheça sua limitação.

  • Os criacionistas de Terra antiga reinterpretam o texto para alinhá-lo com a ciência, conforme vimos. Então, não haveria de fato esse conflito, pois Gênesis 1 não ensina que fisicamente a Terra surgiu antes do Sol, mas apenas organiza o relato de forma tópica. Alguns chegam a propor que Gênesis 1:1 (“No princípio criou Deus os céus e a terra”) abrange o Big Bang e bilhões de anos de formação do cosmos, resumidos num versículo. Assim, as estrelas foram criadas “no princípio”, e o autor assume isso, focando a partir do versículo 2 na preparação da Terra especificamente. Com esse enquadramento, “Haja luminares” no dia 4 seria Deus ordenando que já se enxergassem ou assumissem papel referente à Terra, mas Sua criação material já ocorrera no “princípio”. Essa harmonização coloca Gênesis quase em paralelo com a ciência moderna: primeiro luz (Big Bang, “faça-se a luz”), depois estruturação, Terra em formação, etc., e só quando a Terra está pronta a vida aparece. Claro, essa leitura exige certa abstração e não é consensual, mas muitos cristãos veem nela uma saída elegante.

  • Uma consideração importante: o gênero literário. Se Gênesis 1 for entendido não como jornalístico, mas exaltado e didático, então não se deve exigir dele precisão cronológica científica. Assim como ninguém acusa um Salmo poético de erro científico por dizer “o sol corre rapidamente” (Salmo 19:5-6) – entendemos ser uma metáfora fenomenológica –, também Gênesis poderia estar usando um dispositivo literário. Essa linha argumentativa sustenta que Gênesis 1 visa comunicar verdades de forma acessível ao antigo leitor, não antecipar descobertas modernas. Portanto, não se veria a ordem Terra antes do Sol como uma “falha”, mas como um rearranjo literário intencional, sem compromisso com cronologia astrofísica.


3. Os luminares como instrumentos de datação e a vida: Gênesis diz que o sol e a lua servem para marcar dias e anos. Isso implica que antes disso, mesmo que houvesse luz, não havia um relógio estável. De fato, só após o quarto dia o texto menciona “o quarto dia” explicitamente terminado. Isso levanta discussões: se os primeiros três “dias” não eram marcados pelo sol, seriam dias literais? Os defensores do literalismo dirão que sim, pois Deus podia sustentar um ciclo de 24h de forma sobrenatural. Os que questionam isso argumentam que possivelmente os “dias” pré-sol não precisam ser 24h exatas, reforçando a leitura não-literal desses termos. Essa nuance tem impacto, por exemplo, no debate sobre a cronologia do cosmos – se os três primeiros dias são “diferentes” em natureza, então não se pode insistir que todos os seis sejam idênticos.


Outra implicação: a vida das plantas no dia 3. Se lido literalmente, as plantas tiveram um dia completo (ou mais, dependendo da interpretação) sem sol. Para um criacionista literal, isso não é problema – um dia sem sol não mataria as plantas, e havia luz de qualquer forma. Para outros, isso reforça a ideia de que a sequência não é estritamente naturalista, apontando para algo mais. De qualquer maneira, esse ponto raramente é visto como problemático, pois um intervalo curto (de um dia) sem sol não inviabiliza vegetação, especialmente se havia luz.


4. Fine-tuning e condição para a vida: Um aspecto positivo do diálogo ciência-fé aqui é o reconhecimento de que o sol, a lua e a posição da Terra são perfeitamente adequados para a vida. Os cientistas falam do princípio antrópico e de como as condições astronômicas do nosso planeta (distância exata do sol, um satélite grande como a lua para estabilizar o eixo e gerar marés, a proteção gravitacional de Júpiter contra asteroides, etc.) são “justas” para sustento da vida. Curiosamente, embora Gênesis 1 não detalhe nada disso, o fato de apresentar a criação num esquema que culmina com um mundo habitável para o homem e de enfatizar que os luminares estão “para iluminar a Terra” e servir aos ritmos (implicando benefício da vida), se alinha com a noção de um universo deliberadamente calibrado para a vida. Alguns apologistas cristãos usam isso: a Bíblia desde sua primeira página mostra um design intencional na relação entre os céus e a Terra. Autores como Adauto Lourenço e outros criacionistas científicos gostam de elencar dados mostrando quão singular é o nosso sistema solar e galáxia para permitir vida – por exemplo, a Terra está situada numa faixa ideal (“zona habitável”) e até mesmo a galáxia espiral plana em que estamos, num braço afastado, proporciona um céu relativamente claro para observação do cosmos, diferente de um aglomerado central violento. Esses detalhes alimentam a visão de que “os céus proclamam a glória de Deus” também na linguagem científica. Assim, o quarto dia nos lembra que não vivemos num universo hostil e aleatório onde a vida brotou por sorte; pelo contrário, a Bíblia nos apresenta um universo criado com luz, calor, ciclos e estabilidade precisamente para ser o lar do ser humano e demais criaturas. Em tempos de crescente conhecimento astronômico, isso inspira muitos crentes a glorificar a Deus pela majestade e fineza de Seu trabalho.


5. Astrologia, “influência” dos astros e cosmovisão contemporânea: Ainda que a idolatria explícita do sol e da lua não seja comum no Ocidente hoje, a mentalidade subjacente aparece em formas modernas. A astrologia – horóscopos, zodíaco, etc. – permanece popular. Pessoas acreditam que a posição dos astros no momento de seu nascimento determina traços de personalidade ou destino. A ciência descarta isso como superstição, e a Bíblia rejeita como idolatria, mas muitos se deixam influenciar. Gênesis 1:14–19 fornece um poderoso corretivo cosmovisional: os luminares não governam nossas almas, eles governam apenas dia e noite conforme Deus ordenou. Eles são servos, não senhores. Portanto, a visão de mundo bíblica liberta o ser humano do fatalismo astrológico. O reformador João Calvino certa vez comentou que os astros foram postos para nos servir de calendário e beleza, mas alguns “invertem a ordem” e escravizam-se a eles, quando deviam reconhecê-los apenas como obras de Deus. A aplicação contemporânea disso é reforçar entre os cristãos a suficiência de Deus e de Sua revelação para guiar nossas vidas, sem necessidade de mapas astrais ou superstição. Mesmo na cultura secular, embora rejeite-se a astrologia oficial, subsistem crenças como destino, “universo conspirando” (linguagem de autoajuda que deifica o universo), etc. A resposta bíblica consistente desde Gênesis 1 é que o universo não é autônomo nem onisciente – somente Deus é. Assim, confiar nos “sinais do universo” ou temer “mercúrio retrógrado” são, sob perspectiva bíblica, tão infundados quanto curvar-se a Baal.


6. Educação e testemunho: Um desafio prático decorrente desse assunto é: como ensinar Gênesis 1 à geração que aprende ciência moderna? Muitos jovens se perguntam se precisam escolher entre crer na Bíblia ou na astronomia. A abordagem reformada sabiamente busca mostrar que não há contradição última, pois a verdade é una. Dependendo da posição teológica adotada, um educador cristão pode explicar os diferentes entendimentos (literal ou figurado) e assegurar que, de qualquer modo, a mensagem central não conflita com a ciência bem estabelecida. Por exemplo, pode-se dizer: “A Bíblia afirma quem criou e por quê; a ciência investiga como funciona. Quando Gênesis nos conta que Deus fez o sol, isso é algo que tanto um astrônomo cristão quanto um camponês analfabeto podem igualmente crer. Já quando e como exatamente Deus fez isso, há mistério e discussão – mas isso não diminui a certeza de que foi Ele, nem a finalidade pela qual fez.” Essa postura humilde e esclarecedora evita tanto o conflito desnecessário quanto a acomodação cética. O professor de física que é cristão, por exemplo, pode testemunhar que ao estudar as estrelas com seu telescópio está pensando no poder de Deus que “fez as estrelas também”, sentindo admiração semelhante (aliás, maior) à do salmista: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que estabeleceste... Que é o homem, para que com ele te importes?” (Salmo 8:3-4). A ciência vira então quase um ato de louvor, ao invés de rivalizar com a fé.


7. Milagre e regularidade: O quarto dia marca a transição do extraordinário para o ordinário na semana da criação. Nos dias 1-3 Deus estava estabelecendo fundamentos miraculosos (luz sem fontes naturais, divisão de águas cósmicas, terra brotando plantas de imediato). A partir do dia 4, Ele instala mecanismos para continuidade: sol e lua para ritmos, animais e humanos que se reproduziriam, etc. Isso ilustra um princípio: Deus inicialmente fez certas coisas de modo sobrenatural único, mas então delegou a manutenção via leis naturais e ordem providencial. Para a fé cristã, isso significa que não há problema em reconhecer processos e “leis” na natureza – elas foram designadas por Deus. O erro seria divinizá-las ou achar que elas eliminam Deus. O quarto dia, nesse sentido, é quase pedagógico: nos primeiros dias, Deus mostra que a luz e a vida dependem dEle (não do sol); nos demais, Ele passa a usar instrumentos (sol, solo, sementes) para sustentar a criação. Assim, tanto a visão “supernaturalista” quanto a “naturalista” se equilibram – o cristão afirma que Deus faz, às vezes diretamente, às vezes mediante meios. Essa compreensão ajuda em debates atuais, como por exemplo: podemos louvar a Deus pela cura de uma doença seja ela repentina (milagre “dia 1-3 style”) ou via tratamento médico previsível (providência “dia 4-6 style” sob leis naturais). Ambos vêm dEle, no fim das contas. Aplicando ao cosmos: o curso regular do sol e das estrelas hoje não é visto pela fé como algo independente, mas como a fiel execução da ordem dada naquele quarto dia, sustentada até agora pela Palavra de Deus (cf. Hb 1:3, Ele “sustenta todas coisas pela palavra do seu poder”).


Em conclusão desta seção, Gênesis 1:14–19 continua a provocar diálogo entre o relato bíblico e as teorias científicas. Embora haja áreas de tensão (como cronologia), muitos cristãos encontram maneiras coerentes de integrá-lo a uma cosmovisão onde ciência e fé não se anulam. O que não pode ser comprometido é o núcleo teológico: Deus intencionalmente fez os luminares para nosso benefício e para Sua glória, e nenhum discurso científico pode invalidar isso – antes, como vimos, a própria exploração científica, quando bem compreendida, pode levar a maravilhar-se ainda mais com essa verdade. Em vez de tropeço, o quarto dia pode ser trampolim para uma apreciação mais profunda tanto da revelação especial (Escritura) quanto da revelação geral (a criação). Afinal, como dizia Johannes Kepler, grande astrônomo e cristão devoto, ao descobrir as leis planetárias ele sentia que estava “pensando os pensamentos de Deus depois dEle”.


Implicações Teológicas e Relevância para o Pensamento Cristão


Gênesis 1:14–19, ao descrever a criação do sol, da lua e das estrelas, traz em seu bojo várias implicações teológicas profundas. No contexto da teologia reformada – com sua ênfase na soberania de Deus, na suficiência das Escrituras e na glória de Deus como fim último de todas as coisas – esses versículos reforçam e enriquecem pontos-chave da cosmovisão bíblica. Analisemos algumas dessas implicações:


1. Soberania absoluta de Deus: A cena do quarto dia revela Deus como o Rei e Legislador cósmico. Ele comanda os luminares a existirem (“Disse Deus: Haja luminares... e foi assim”) e lhes outorga funções específicas. Não há nenhum senso de consulta ou esforço: Sua palavra eficaz é suficiente para trazer à existência até mesmo os objetos mais grandiosos do universo físico. Isso sublinha a doutrina reformada da sola potentia Dei – o poder exclusivo de Deus na criação e providência. Se Deus é quem posiciona e define a missão do Sol e da Lua, quanto mais Ele governa sobre a história humana e nossas vidas individuais! Jesus ecoa esse conceito ao dizer que Deus “faz o sol nascer sobre maus e bons” (Mt 5:45), mostrando que o astro-rei é apenas um servo obediente ao beneplácito do Pai, para distribuir graça comum. Espiritualmente, isso conforta o crente: o Deus a quem oramos é Aquele que “conta o número das estrelas e chama cada uma pelo nome” (Salmo 147:4). Ele não divide Seu governo com quaisquer outros seres ou supostas leis autônomas. Ao percebermos a ordem exata dos dias, meses e anos estabelecida ali, entendemos que todas as noções de destino cego ou caos final estão descartadas – o cosmos tem Regente e Ele não abdica do controle.


2. Revelação e glória de Deus na criação: Os luminares celestes, além de funções práticas, sempre tiveram um caráter de testemunhas da glória de Deus. O Salmo 19:1-2 declara: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.” Essa linguagem poética ganha base literal em Gênesis 1: Deus fez intencionalmente luminares que “discursam” – isto é, servem de revelação geral. Cada amanhecer e anoitecer marcados pelo sol e lua é um sermão silencioso sobre a fidelidade de Deus. Cada estação do ano que retorna testifica do cuidado providencial. Até mesmo as estrelas, em sua imensidão, falam da majestade e infinita criatividade do Criador. A teologia reformada tradicional valoriza muito essa revelação natural (embora frise que é insuficiente para a salvação, mas suficiente para deixar os homens indesculpáveis – Rm 1:20). Os astros, portanto, são parte desse “livro da natureza” que declara atributos de Deus: Seu poder (na energia do sol), Sua ordem (na regularidade astronômica), Sua beleza (no esplendor do céu estrelado), Sua imutabilidade (o ciclo dia-noite invariável). Assim, uma implicação clara é que negar-se a honrar a Deus ao contemplar os luminares é ingratidão e loucura. Paulo escreve que alguns “adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador” (Rm 1:25) – caso clássico da idolatria astral –, trocando a verdade pela mentira. Mas nós, conhecendo a fonte, deveríamos seguir o exemplo do salmista: “Ó Senhor, nosso Senhor, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl 8:1). Em suma, o propósito final dos luminares é glorificar a Deus, seja sustentando a vida que O louva, seja convidando nossos olhos a olhar além deles para sua Origem.


3. Bondade e propósito da criação material: Deus viu que era bom. No quarto dia, implicitamente, a luz ordenada pelo sol e lua é boa, os ciclos de tempo são bons. Isso enfatiza que a matéria, o tempo e o cosmos físico não são ilusórios nem maus em si mesmos (rechaçando visões gnósticas ou neoplatônicas que depreciavam o mundo material). A criação dos luminares, em particular, mostra Deus investindo valor no tempo: dias, anos, estações – todos fazem parte do projeto divino. O tempo às vezes nos parece um fardo (envelhecimento, prazos), mas segundo Gênesis 1 é um bem criado por Deus para estruturar a existência de forma saudável (Ec 3:1: “Para tudo há uma ocasião, um tempo para cada propósito”). Teologicamente, isso alimenta uma espiritualidade de ritmo e ordem: aprender a valorizar o dia e a noite, o trabalho e o repouso, as festas e os ciclos, como dons de Deus. A teologia reformada, com sua visão sóbria da Criação, sempre ensinou a usufruir com gratidão desses bons presentes (1Tm 4:4-5).


Também vemos aqui delineado o princípio de que a criação está orientada para sustentar a vida humana e demais criaturas – um antropocentrismo funcional sob Deus. Os luminares “servem” à Terra, tornando-a habitável e ordenada. Isso leva à doutrina da providência divina: desde o início Deus proveu o necessário para a vida florescer. Ele “faz provisão para os corvos” e “veste os lírios do campo” através dos ciclos naturais de sol e chuva – e Gênesis 1 nos dá o fundamento disso. Assim, confiar na provisão de Deus (Mt 6:26-30) tem base concreta na estrutura que Ele colocou no universo no quarto dia e nos demais. A ciência chamaria isso de “constâncias astronômicas”, a fé chama de “fidelidade de Deus renovada a cada manhã” (Lm 3:23).


4. Dignidade humana e nosso lugar no cosmos: Embora o homem seja criado apenas no sexto dia, já no quarto dia notamos algo notável: os maiores objetos do sistema solar, aqueles que governam dias e noites, foram feitos com referência à Terra (“para iluminar a terra”). Isso confere à Terra – e por extensão à raça humana que a habita – um lugar especial no plano divino. Não especial no sentido de que o universo gira fisicamente em torno da Terra (já entendemos que não), mas no sentido teológico de que o cosmos foi feito para ser casa do homem. Como já foi dito, os luminares são “servos” e o homem é colocado como “rei” da criação terrestre no dia 6. Dessa forma, Gênesis 1 fornece a base para a dignidade humana e uma cosmovisão contrária ao reducionismo moderno que vê a humanidade como um acidente insignificante num canto do universo. Por mais vastos que sejam os astros, o salmista maravilhado diz: “Que é o homem, para que te lembres dele?... Fizeste-o um pouco menor que os anjos, e de glória e honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés” (Sl 8:4-6). Note o eco de Gênesis: luminares governam dia/noite; homem governa criação terrena. Há uma hierarquia de serviços. Não somos fruto das estrelas; ao contrário, as estrelas foram feitas para nós, em última instância sob a glória de Deus. Isso não nos leva ao orgulho, mas à responsabilidade e gratidão. Como aplicação teológica, isso sustenta a ideia bíblica de coroação da criação no ser humano e, ao mesmo tempo, posiciona o homem sob Deus: se até o sol Lhe obedece, quanto mais devemos obedecer nós, feitos à imagem dEle. Aliás, Matthew Henry aplicou justamente assim: os luminares cumprem fielmente seu designío, brilhando sem cessar, mas os homens, criados para brilhar diante de Deus, muitas vezes falham em seu propósito. Essa reflexão devocional evoca um exame de consciência: a criação irracional responde prontamente à ordem de Deus – “ele falou e tudo começou simultaneamente... ele ordenou e veio à existência... e ainda continua do mesmo jeito” –, enquanto nós, dotados de razão e vontade, tantas vezes resistimos. O quarto dia, então, indiretamente nos conclama à obediência e vocação: se sol e lua servem tão bem, e se fomos postos como “luzeiros” portando a luz de Deus no mundo (Mt 5:14 – Jesus chama seus discípulos de luz do mundo), precisamos cumprir nosso chamado com diligência e fidelidade.


5. Exclusividade do culto a Deus: Teologicamente, este texto reforça o mandamento central da fé bíblica: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3). Ao ler Gênesis 1:14–19, um israelita seria catequizado a jamais incorrer na adoração do sol ou da lua, ou seja, a manter a pureza da adoração. Isso tem relevância contínua; Lutero, em seu tempo, comenta nos Catecismos sobre o primeiro mandamento, citando astros como exemplos de coisas que as pessoas indevidamente tomam por deuses. Em contexto moderno, pode não ser Sol/Lua, mas as “forças do universo”, a “Mãe Natureza”, etc. – tudo isso são equivalentes funcionais. A teologia reformada afirmaria que nossa adoração, confiança e amor devem ser somente para o Deus criador. Os astros, por belos e úteis que sejam, não ouvem orações, não guiam nossas vidas moralmente, nem merecem honra religiosa. Ao contrário, devemos usá-los para melhor servirmos a Deus (calendário para marcar cultos e eventos sagrados, por exemplo). Assim, um cristão reformado enxerga o sol e pensa: “Glória a Deus por me dar luz para trabalhar e calor para viver”; enquanto um pagão antigo pensaria: “Salve, ó deus sol, fonte da vida”. A diferença é abissal. E essa diferença moldou toda uma civilização judaico-cristã em distinção das outras. Essa implicação é prática: libera-nos do medo e da servidão a qualquer elemento da criação. Como afirma o Novo Testamento, referindo-se talvez à tentação astrológica, “não temais os sinais do céu” (Jr 10:2) e “ninguém vos julgue por dias de festa, luas novas...” (Cl 2:16) – Cristo nos libertou para servirmos somente a Deus.


6. Escatologia e teologia bíblica: Curiosamente, a Bíblia retoma o tema dos luminares em contextos proféticos e escatológicos. Por exemplo, profetas anunciam que nos dias do juízo “o sol escurecerá, a lua não dará a sua luz, as estrelas cairão” (Jl 2:31, Mt 24:29). E Apocalipse 21:23 diz que na Nova Jerusalém “não precisa de sol nem lua, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada”. Essas passagens escatológicas se conectam com Gênesis 1 de maneira interessante: indicam que os luminares, embora bons e necessários nesta ordem presente, são transitórios face à glória maior de Deus. Eles pertencem à criação presente, sujeita à vaidade (Rm 8:20) e que será transformada. Isso aponta para a verdade de que Deus é a fonte última de luz e vida – o sol é apenas uma provisão temporária que um dia não será necessária, quando Deus for “tudo em todos” (1Co 15:28). Dessa forma, a teologia bíblica traça uma linha do quarto dia da criação até o “Dia eterno” da nova criação. No princípio, Deus forneceu luz através de luminares; no fim, Ele próprio será a luz direta. Este arco narrativo ensina a supremacia de Deus sobre Seus meios: Ele não depende nem sequer do sol eternamente. Também inspira esperança: se hoje vivemos num mundo regido por sóis e luas que também trazem sombras (noite, trevas, perigos), esperamos um mundo futuro onde não haverá noite (Ap 22:5), isto é, total segurança e comunhão plena com Deus. Logo, espiritualmente, quando vemos o sol e a lua hoje, podemos lembrarmo-nos que são provisórios: importantes agora, mas destinados a ceder lugar a algo maior. Assim como a lâmpada de um quarto perde sentido quando o sol nasce pela manhã, os luminares perdem ofício quando a glória do Senhor brilhar plena. Essa perspectiva escatológica mantém nosso coração no Criador e não nas criaturas, e realça a narrativa redentora inteira: do Génesis ao Apocalipse, Deus provendo luz – primeiramente física e geral, finalmente espiritual e imediata.


7. Fundamento para a sabedoria e ética cristã: Na literatura sapiencial da Bíblia, às vezes astros servem de analogias para virtudes e para a fidelidade. Provérbios 4:18 compara o caminho dos justos à “luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito”. Daniel 12:3 diz que “os que conduzem muitos à justiça brilharão como as estrelas, sempre e eternamente”. Essas imagens positivas derivam da estima pela constância e brilho dos luminares que Gênesis estabeleceu. Por contraste, idolatrias ligadas aos astros eram consideradas adultérios espirituais (como o culto às “rainha dos céus” em Jr 7:18). Assim, na ética bíblica, seguir a Deus é andar na luz e ser luz (1Jo 1:7, Mt 5:14-16), enquanto rebelar-se é preferir as trevas (Jo 3:19). É notável que o próprio Jesus se apresentou como “a luz do mundo” (Jo 8:12), e no cântico de Zacarias Ele é chamado “sol nascente das alturas” que veio para “alumiar os que jazem nas trevas” (Lc 1:78-79). Tais designações messiânicas têm ressonância com o simbolismo do sol criado. Isto nos ensina que os luminares, além de sua função literal, foram também tipos e metáforas de realidades espirituais maiores. O sol nos céus apontava, em última análise, para o Sol da Justiça (Ml 4:2) que é Cristo; e a separação da luz e trevas no quarto dia aponta para a divisão do bem e do mal, que Cristo veio esclarecer e superar (Jo 1:5: “a luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram”). Logo, uma implicação teológica riquíssima é que a criação física serve de prenúncio do evangelho. Deus ordenando “Haja luz” prenuncia a luz do evangelho resplandecendo em corações (2Co 4:6). Deus criando luminares para governarem o dia e a noite prenuncia Cristo reinando sobre todas as eras. Assim, a cosmovisão cristã vê unidade no propósito divino: aquilo que Ele fez na criação (dar luz, dar ordem ao tempo, marcar um ritmo de seis mais um dias) reflete verdades que serão desdobradas na redenção (Cristo luz do mundo, nova criação, descanso sabático redentor).


Portanto, Gênesis 1:14–19 não é um texto isolado, mas uma pedra fundamental para muitas doutrinas e aplicações. Ele reforça a convicção reformada de que “Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas” (Rm 11:36) – inclusive o Sol que aquece nossa pele cada manhã. Também nos lembra que a fé cristã não é apenas espiritual em um vácuo: ela abraça o universo físico todo dentro do plano divino. Cada vez que marcamos um culto no domingo contando sete dias, ou celebramos a Páscoa que cai na primavera (no hemisfério norte) regulada pela lua cheia, estamos – consciente ou inconscientemente – nos apoiando naquela estrutura criada no quarto dia. E cada vez que oramos o Salmo 121: “O sol não te molestará de dia nem a lua de noite”, estamos reivindicando a promessa do Deus que comanda esses luminares para nos guardar. Em suma, essa passagem fundamenta uma cosmovisão teísta íntegra, em que céus e terra são teatro da glória de Deus, o tempo é teleológico (visando consumação, não eterno retorno pagão), e o ser humano vive num universo pessoalmente planejado para a comunhão com o Criador.

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