top of page

Os Animais Terrestres (Sexto Dia - Parte 1) | Gênesis 1.24–25

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 3 de ago.
  • 27 min de leitura

Atualizado: 15 de set.


ree

Introdução e Contextualização


Os versículos 24 e 25 do primeiro capítulo de Gênesis, embora concisos, representam um momento de culminância e preparação na grandiosa sinfonia da criação. Eles narram o ato final de Deus na povoação do palco terrestre antes da introdução de Seu ator principal: a humanidade. Este segmento da narrativa sagrada não é meramente um catálogo zoológico; é uma profunda declaração teológica sobre a soberania, a sabedoria e a bondade do Criador. Situados no clímax do sexto dia, estes versículos descrevem a origem da vida animal terrestre, estabelecendo o cenário imediato para a criação do homem e da mulher, que compartilharão com estas criaturas o mesmo habitat.   


O livro de Gênesis, cujo nome significa "origens", serve como a pedra fundamental para toda a revelação bíblica subsequente. Nele, encontramos as raízes de todas as grandes doutrinas: a doutrina de Deus, da criação, do homem, do pecado e da redenção. Portanto, a análise de Gênesis 1:24-25 transcende a mera curiosidade sobre a origem dos animais; ela é essencial para uma compreensão robusta da cosmovisão bíblica, da antropologia e da relação intrínseca entre a humanidade e o mundo natural. A narrativa da criação, apresentada como um registro factual e histórico por comentaristas como Hernandes Dias Lopes e Adauto Lourenço, estabelece que o universo não é produto do acaso, mas o resultado de um ato intencional e poderoso de um Deus pessoal e transcendente.   


A progressão da obra criadora de Deus, como observado por comentaristas clássicos como Matthew Henry, avança de forma gradual e ordenada, do menos ao mais excelente. Esta progressão não é apenas estética, mas pedagógica, ensinando um princípio de crescimento em direção à perfeição. No quinto dia, as águas e os céus foram povoados; no sexto, a terra seca, preparada no terceiro dia, recebe seus habitantes. Esta sequência meticulosa prepara o leitor para o ápice da criação terrena: o ser humano, criado no mesmo dia que os animais terrestres, mas com uma distinção radical e definidora.   


A justaposição da criação dos animais terrestres e do homem no mesmo "dia" não é uma mera coincidência cronológica, mas uma declaração teológica de imensa profundidade. A narrativa estabelece, de forma deliberada, tanto a conexão quanto a distinção da humanidade em relação ao resto da criação. Por um lado, ao serem formados a partir da "terra" (ha′arets), assim como o homem seria formado "do pó da terra" (Gênesis 2:7), os animais compartilham com a humanidade uma solidariedade biológica e ecológica. O homem não é um ser etéreo, mas está fisicamente ligado ao mesmo mundo que os animais. Por outro lado, a distinção fundamental é imediatamente estabelecida: apenas o homem é criado à imagem e semelhança de Deus (b′tsalmenukidmutenu) e recebe o mandato de domínio (Gênesis 1:26-28). Assim, o sexto dia estabelece a tensão fundamental que percorre toda a antropologia bíblica: a humanidade é, ao mesmo tempo, parte da criação e regente sobre ela, imanente e transcendente. Compreender Gênesis 1:24-25 é, portanto, dar um passo essencial para compreender o que significa ser humano no mundo de Deus.


Estrutura Literária e Análise Narrativa


A majestade teológica de Gênesis 1:24-25 é comunicada através de uma estrutura literária altamente refinada e deliberada. Longe de ser uma prosa casual, o texto emprega um padrão rítmico e formulaico que permeia todo o capítulo, conferindo à narrativa um tom de proclamação solene e litúrgica. Esta estrutura não é meramente ornamental; ela é o veículo pelo qual a mensagem de ordem divina, poder sem esforço e propósito soberano é transmitida.


A Estrutura da Palavra Criadora: Os versículos em análise seguem o padrão consistente observado nos dias anteriores da criação, um ciclo de comando e cumprimento que reforça a eficácia da Palavra de Deus. Esta estrutura pode ser decomposta em cinco elementos distintos:   


  1. Anúncio da Palavra Divina: O ato criador inicia-se com a fórmula introdutória "E disse Deus..." . Esta frase, que ocorre dez vezes em Gênesis 1, estabelece que a fonte de toda a existência é a vontade expressa do Criador. O poder não reside na matéria preexistente ou em forças caóticas, mas na Palavra soberana de Deus.   

  2. O Comando Criador: Segue-se a ordem específica: "...Produza a terra alma vivente conforme a sua espécie...". O uso do jussivo hebraico confere à frase a força de um decreto real que não pode ser contestado.

  3. Relato do Cumprimento Imediato: A resposta da criação ao comando divino é imediata e completa, expressa pela fórmula "E assim se fez" . A criação obedece instantaneamente à voz de seu Mestre, sublinhando a ausência de luta ou resistência.

  4. Descrição da Execução Divina: O texto então elabora sobre o cumprimento, reafirmando a agência direta de Deus: "E fez Deus as bestas-feras da terra conforme a sua espécie..." . Esta reafirmação é teologicamente crucial, como será explorado adiante.

  5. Aprovação Divina: Cada etapa da obra é concluída com a avaliação do Criador: "E viu Deus que era bom" . Esta declaração não é uma expressão de surpresa, mas um decreto de que a obra concluída corresponde perfeitamente ao Seu plano, sendo funcional, bela e adequada ao seu propósito.   


Esta cadência repetitiva cria um efeito de majestade e ordem, pintando um quadro de um Deus que cria com dignidade e propósito, transformando o "sem forma e vazio" em um cosmos ordenado e belo.


O Paralelismo Estrutural de Gênesis 1: Além da estrutura interna de cada dia, o capítulo como um todo exibe um notável paralelismo, onde as obras dos dias 4, 5 e 6 correspondem e preenchem os domínios criados nos dias 1, 2 e 3.


Neste esquema, a criação dos animais terrestres em Gênesis 1:24-25 (Dia 6) é o preenchimento direto do domínio da "terra seca" (haˉ′aˉreṣ) que foi separada das águas e adornada com vegetação no Dia 3. Esta simetria artística não é apenas um artifício mnemônico; ela reforça a ideia de um universo projetado, onde cada parte tem seu lugar e função designados. A terra não foi criada para permanecer vazia, mas para ser habitada (Isaías 45:18). A obra do sexto dia, portanto, completa o projeto de Deus para o habitat terrestre.


A Instrumentalidade e a Agência na Criação: Uma análise mais atenta da narrativa revela uma nuance teológica crucial na interação entre o comando de Deus e sua execução. O versículo 24 afirma que Deus ordenou: "Produza a terra...", o que poderia sugerir que a terra possui algum poder gerador inerente. No entanto, o versículo 25 imediatamente clarifica a agência primária: "E fez Deus...".

Esta alternância não é uma contradição ou uma redundância desajeitada, mas uma declaração sofisticada sobre a relação entre a causa primária e as causas secundárias. A terra não gera vida ex nihilo ou por sua própria virtude; ela o faz porque foi comandada e capacitada pelo Criador para tal. Deus é o agente soberano que pode operar tanto diretamente quanto através dos meios que Ele mesmo estabeleceu. A terra atua como um instrumento da vontade divina.   


Este modelo teológico serve como uma polêmica sutil contra duas visões de mundo opostas. Por um lado, refuta o panteísmo, que diviniza a natureza e a vê como a fonte última da vida. Gênesis afirma que a terra é uma criatura, não o Criador. Por outro lado, refuta o deísmo, que imagina um Deus "relojoeiro" que cria o universo e o abandona para operar por si só. O Deus de Gênesis está imanente e ativamente envolvido em Sua criação, supervisionando e executando diretamente Sua vontade, mesmo ao usar a própria criação como Seu instrumento. A estrutura literária, portanto, não apenas embeleza a narrativa, mas ensina uma teologia profunda sobre a natureza de Deus e Sua relação com o mundo que Ele fez.


Análise Exegética e Hermenêutica de Gênesis 1:24-25


Uma imersão profunda no texto hebraico de Gênesis 1:24-25, aliada a uma cuidadosa hermenêutica, desvenda a precisão e a riqueza teológica contidas nestes versículos. Cada termo foi escolhido com propósito, contribuindo para a majestosa descrição da obra do sexto dia.


Análise Detalhada do Versículo 24: "E disse Deus: Produza a terra...": Como já analisado, o comando divino é a força motriz. A terra é convocada a ser o meio pelo qual a vida animal terrestre surge, destacando a instrumentalidade da criação na execução dos planos do Criador.


(nepeš ḥayyāh) - "alma vivente" ou "ser vivente": Este é um termo técnico crucial na antropologia e biologia bíblicas. A palavra nepeš é complexa, podendo significar "alma", "vida", "pessoa", "desejo" ou "fôlego". Quando combinada com ḥayyāh ("vivente"), ela designa uma criatura que respira, que possui vida anímica – ou seja, consciência, vontade e emoções, em contraste com a vida vegetativa das plantas. É significativo que este mesmo termo seja usado para descrever os animais aquáticos e as aves (1:20-21) e, mais tarde, o próprio homem (2:7). Isso estabelece uma continuidade biológica entre a humanidade e o reino animal, ao mesmo tempo que a criação à imagem de Deus (1:26-27) estabelecerá a descontinuidade radical.


A Classificação Tripartite dos Animais Terrestres: O texto divide os nepeš ḥayyāh terrestres em três categorias. Esta não é uma taxonomia científica no sentido moderno, mas uma classificação fenomenológica, baseada na observação e na relação funcional com o homem e seu ambiente.


  1. (bəhēmāh) - "gado", "animais domésticos": Este termo geralmente se refere a quadrúpedes maiores, especialmente aqueles que são domesticáveis ou que vivem em rebanhos, como bois, ovelhas e cabras. Eles representam a porção do reino animal que interage mais diretamente com a vida humana, seja para trabalho, alimento ou companhia.

  2. (remeś) - "répteis", "animais que rastejam": A raiz do verbo (raˉmasˊ) significa "mover-se" ou "deslizar". O termo abrange uma vasta gama de criaturas menores que se movem perto do solo, incluindo não apenas répteis e anfíbios, mas também insetos e pequenos mamíferos. Adauto Lourenço sugere que esta categoria é ampla o suficiente para incluir até mesmo os dinossauros, por seu modo de locomoção.

  3. (wəḥaytô-'ereṣ) - "e bestas-feras da terra", "animais selvagens": Literalmente "a vida da terra". Este termo designa os animais selvagens, os predadores e as grandes criaturas que habitam florestas e desertos, mais distantes do domínio direto do homem.


(ləmînāh) - "conforme a sua espécie": Esta frase, repetida dez vezes em Gênesis 1, é de importância teológica e apologética central. A palavra mîn significa "tipo", "espécie" ou "gênero". A preposição  indica conformidade ou padrão. A frase estabelece dois princípios fundamentais:


  1. Ordem e Diversidade: Deus criou uma variedade de "tipos" básicos de vida, cada um distinto e separado. A criação não é um continuum homogêneo, mas um mosaico de formas de vida ordenadas.

  2. Estabilidade e Reprodução: Cada "tipo" foi dotado da capacidade de se reproduzir dentro de seus próprios limites genéticos. Como argumentam Hernandes Dias Lopes e Adauto Lourenço, isso implica que uma "espécie" (no sentido bíblico de mîn) só pode gerar descendentes de sua própria espécie, um princípio que eles veem como uma refutação direta da macroevolução. Gordon Wenham nota que este princípio de separação é tão fundamental que se reflete nas leis levíticas que proíbem a mistura de diferentes tipos (Levítico 19:19).


Análise Detalhada do Versículo 25


  • "E fez Deus...": O verbo aqui é עָשָׂה ('āśāh), que significa "fazer", "fabricar" ou "realizar". Enquanto o verbo בָּרָא (bārā'), "criar", (usado nos v. 1, 21, 27) enfatiza a novidade e a origem divina do ato, 'āśāh foca na formação e no acabamento da obra. O uso de 'āśāh aqui reforça a agência direta de Deus, clarificando que a "produção" pela terra no versículo 24 foi, em última análise, a obra de Deus.

  • Repetição das Categorias e da "Espécie": O versículo reitera as três categorias de animais e a frase "conforme a sua espécie", enfatizando a ordem e a fidelidade da criação ao comando divino. A ordem das categorias é ligeiramente alterada (animais selvagens primeiro), o que pode ser um artifício estilístico para variar a narrativa, como um quiasmo sutil que estrutura a passagem.   

  • (hā'ădāmāh) - "do solo": Note a sutil mudança de hā'āreṣ ("a terra") para hā'ădāmāh ("o solo", "a terra arável") em conexão com os remeś. Este é o mesmo termo do qual o homem, 'ādām, será nomeado, criando um jogo de palavras que liga ainda mais as criaturas terrestres e a humanidade à sua origem comum do solo.

  • "E viu Deus que era bom": A avaliação divina finaliza o ato criador. A obra está completa, perfeita em seu desígnio e pronta para cumprir seu propósito dentro do ecossistema que Deus está estabelecendo. Esta bondade intrínseca da criação material, incluindo os animais selvagens e predadores, é uma refutação a qualquer sistema de pensamento que veja o mundo físico como inerentemente mau ou falho.


Contexto Histórico-Cultural e Aspectos Arqueológicos


O relato da criação em Gênesis 1, incluindo a formação dos animais terrestres nos versículos 24 e 25, não pode ser plenamente compreendido sem situá-lo em seu contexto histórico e cultural: o Antigo Oriente Próximo (AON). Longe de ser um documento isolado, Gênesis 1 é um texto profundamente engajado com as cosmovisões de seu tempo, funcionando como uma poderosa polêmica teológica que redefine radicalmente a natureza de Deus, do mundo e da humanidade em contraste com as mitologias prevalecentes na Mesopotâmia e no Egito. Não há achados arqueológicos diretos que "provem" a criação dos animais, mas a arqueologia desenterrou textos que revelam o pano de fundo intelectual contra o qual Gênesis apresentou sua mensagem revolucionária.   


Mitos de Criação do Antigo Oriente Próximo: As descobertas arqueológicas em locais como Nínive e Nippur trouxeram à luz épicos de criação que circulavam séculos antes e durante a composição de Gênesis. Dois dos mais importantes são o Enuma Elish babilônico e o épico de Atrahasis mesopotâmico.


  • Enuma Elish: Este épico, recitado anualmente no festival de ano novo babilônico, descreve a criação como o resultado de um conflito violento e caótico entre os deuses. A ordem emerge quando o deus-herói Marduk derrota e esquarteja a deusa-dragão primordial Tiamat, que personifica o caos aquático. De seu cadáver, ele forma os céus e a terra. Neste mito:   


    • A Criação é violenta e conflituosa.

    • O politeísmo é a norma, com deuses que são caprichosos, limitados e muitas vezes imorais.

    • A humanidade é criada como um subproduto, a partir do sangue de um deus rebelde, com o propósito de servir como escravos para aliviar os deuses de seu trabalho.   

    • Elementos da natureza, como o sol, a lua e certos animais, são deificados ou associados a divindades.


  • Atrahasis: Este épico também conecta a criação da humanidade com a necessidade de os deuses terem trabalhadores. Os humanos são criados para realizar as tarefas árduas que os deuses menores se recusavam a fazer. No entanto, a humanidade se multiplica tanto que seu barulho perturba o sono do deus Enlil, que então decide exterminá-la com pragas, secas e, finalmente, um grande dilúvio. A criação, aqui, é funcional, mas a relação entre deuses e humanos é tensa e arbitrária.   


Gênesis como Polêmica e Demitologização: Ao justapor Gênesis 1:24-25 a essas narrativas, o caráter polêmico do texto bíblico torna-se evidente. A criação dos animais terrestres, assim como o resto da criação, serve para refutar sistematicamente os pilares da teologia pagã.


  1. Monoteísmo Soberano vs. Politeísmo Caótico: Em Gênesis, há um único Deus, 'Ĕlōhîm, que cria por meio de Sua palavra sem esforço e sem oposição. Não há batalha, não há conflito. A criação das "bestas-feras da terra" (ḥayto^−′ereṣ) não requer a subjugação de nenhuma força monstruosa. O Deus de Israel é transcendente e soberano sobre tudo o que existe.

  2. Ordem Deliberada vs. Ordem Emergente do Caos: A estrutura repetitiva e ordenada de Gênesis 1, com suas fases distintas e a declaração recorrente de que tudo "era bom", contrasta fortemente com a criação violenta e acidental do Enuma Elish. A ordem não é um resultado afortunado de uma guerra divina; é o plano original do Criador.

  3. Demitologização da Natureza: Talvez a função polêmica mais significativa de Gênesis 1 seja a sua demitologização radical do mundo natural. No Egito, de onde Israel saiu, muitos animais eram adorados como deuses ou manifestações de divindades (o touro Ápis, o crocodilo Sobek, o gato Bastet, etc.). Na Mesopotâmia, monstros marinhos e bestas selvagens poderiam personificar forças caóticas. Gênesis 1:24-25 realiza um ato de destronamento teológico:


    • O "gado" (bəheˉmaˉh), incluindo o touro, não é uma divindade a ser adorada, mas uma criatura "feita" por Deus.

    • As "bestas-feras da terra" (ḥayto^−′ereṣ), longe de serem forças demoníacas ou caóticas a serem temidas, são igualmente parte da boa criação de Deus, feitas por Sua palavra e declaradas "boas".

    • Mesmo os "grandes monstros marinhos" (v. 21), que poderiam evocar imagens de Tiamat, são simplesmente criaturas criadas por Deus.


A ausência de uma teomaquia (batalha de deuses) na criação dos animais em Gênesis é uma das declarações teológicas mais profundas e revolucionárias do texto. Enquanto os mitos do AON viam o universo como um campo de batalha cósmico, onde a ordem era precariamente conquistada sobre o caos personificado por monstros, Gênesis apresenta uma visão radicalmente diferente. Deus cria animais potencialmente temíveis, como leões e serpentes, com a mesma facilidade e aprovação ("era bom") que cria ovelhas e pombas.


Isso comunica uma verdade fundamental: o mal não é inerente à estrutura da criação. Não existe um princípio do mal coeterno com Deus, nem o mundo material é intrinsecamente perigoso ou maligno. Os animais selvagens não são encarnações de deuses hostis; são simplesmente criaturas de Deus, parte de um ecossistema bom e ordenado. O mal, como a narrativa de Gênesis mostrará em breve, entrará na história não através de uma batalha cósmica primordial, mas através da rebelião moral de uma criatura dotada de livre-arbítrio. Ao criar os animais terrestres por Sua simples palavra, Deus não apenas povoou a terra, mas também purificou o cosmos da superstição e do medo, revelando-se como o único e soberano Senhor de tudo o que existe.


Questões Polêmicas, Discussões Teológicas e Teorias


A aparente simplicidade de Gênesis 1:24-25 esconde séculos de debates teológicos e polêmicas, especialmente no diálogo entre a fé e a ciência. As questões sobre a natureza do tempo, o mecanismo da criação e a relação entre o relato bíblico e as teorias científicas modernas encontram um ponto focal nestes versículos.


Criação "Segundo a Sua Espécie" vs. Evolução: A frase "conforme a sua espécie" (ləmînāh) é o epicentro da controvérsia entre criacionismo e evolucionismo.


  • Visão Criacionista (Criação Especial): Comentaristas como Adauto Lourenço e Hernandes Dias Lopes interpretam esta frase como uma barreira intransponível para a macroevolução (a transformação de um tipo de criatura em outro). Eles argumentam que Deus criou "tipos" básicos e distintos de organismos (chamados de baramins) com um vasto potencial genético para variação e adaptação (microevolução) dentro de seus próprios limites, mas sem a capacidade de evoluir para um tipo diferente. A repetição da frase seria a ênfase divina nesta estabilidade das espécies.


  • Visão da Evolução Teísta: Outros intérpretes, como Derek Kidner, embora afirmando o propósito teológico do texto, veem a linguagem como potencialmente compatível com um processo evolutivo guiado por Deus. Nesta visão, "segundo a sua espécie" poderia descrever o resultado do processo, onde Deus soberanamente guiou a evolução para produzir os distintos tipos de vida que vemos hoje. A ênfase do texto, contudo, permaneceria teológica: afirmar que Deus é a fonte de toda a vida, independentemente do mecanismo.   


É crucial reconhecer que a controvérsia moderna sobre "criação vs. evolução" impõe ao texto de Gênesis uma pergunta que não era a preocupação primária do autor original. A análise histórico-cultural demonstra que a polêmica principal de Gênesis 1 era contra o politeísmo e a mitologia do Antigo Oriente Próximo, não contra uma teoria científica que só surgiria milênios depois. O texto utiliza linguagem fenomenológica (baseada na observação do dia a dia) e funcional, não a linguagem técnica da biologia moderna. Tentar forçar Gênesis 1 a ser um manual científico é cometer um anacronismo hermenêutico. A verdade teológica central do texto — que Deus é o Criador soberano que trouxe à existência tipos distintos de vida com propósito — pode ser afirmada, embora as implicações dessa afirmação para a ciência moderna continuem a ser um campo de intenso debate.   


A Ausência de uma Bênção Explícita: Uma questão teológica notada por comentaristas como João Calvino e Gordon Wenham é a ausência de uma bênção explícita de procriação para os animais terrestres no versículo 25, em contraste com os peixes e as aves, que foram abençoados e ordenados a se multiplicar no versículo 22. Várias teorias foram propostas para explicar esta omissão:   


  1. Bênção Implícita: A bênção de procriação é inerente à criação "segundo a sua espécie" e não precisava ser repetida. Calvino sugere que o que foi dito uma vez se aplica a todos os animais.   


  2. Prevenção de Competição: Gordon Wenham menciona a possibilidade de que a bênção foi omitida para que os animais terrestres não se multiplicassem a ponto de competir com a humanidade pelo domínio da terra (cf. Êxodo 23:29).   


  3. Inclusão na Bênção Humana: A teoria mais provável, também apoiada por Wenham, é que a bênção dada à humanidade no versículo 28, no mesmo sexto dia, abrange todas as criaturas criadas nesse dia. Como o homem é o regente da terra, a bênção sobre ele se estende ao seu domínio, que inclui os animais terrestres.


Esta discussão, embora sutil, revela a profundidade da estrutura narrativa e a forma como cada detalhe do texto pode gerar reflexão teológica sobre o plano e o propósito de Deus para Sua criação.


Doutrina Teológica (Sistemática) e Visões de Correntes Denominacionais


Gênesis 1:24-25 é uma fonte primária para a formulação de doutrinas teológicas sistemáticas fundamentais. Além disso, a interpretação destes versículos reflete as ênfases e as tradições hermenêuticas de diversas correntes denominacionais do cristianismo, revelando tanto um consenso central quanto uma diversidade de abordagens em questões secundárias.


  1. Teologia Própria (Doutrina de Deus):


    • Soberania e Onipotência: A doutrina da soberania de Deus é proeminentemente exibida. A criação ocorre por meio de um decreto verbal ("Disse Deus..."), demonstrando que a vontade de Deus é a causa última de tudo o que existe. Seu poder é tal que a criação responde imediatamente ("assim se fez"). Ele é o Deus que fala e a existência acontece.   


    • Transcendência e Imanência: Deus é transcendente, existindo antes e independentemente da criação. Ao mesmo tempo, Ele é imanente, interagindo diretamente com Sua obra, "fazendo" (′aˉsˊaˉh) os animais e avaliando-a como "boa".   


    • Sabedoria e Ordem: A criação não é aleatória. A classificação dos animais e o princípio de reprodução "conforme a sua espécie" revelam um Deus de ordem, sabedoria e desígnio, que estabelece uma estrutura para o funcionamento do mundo natural.


  2. Cosmologia (Doutrina da Criação):


    • Bondade Intrínseca da Criação Material: A declaração "E viu Deus que era bom" é uma refutação fundamental a qualquer forma de gnosticismo ou dualismo que despreza o mundo material como mau ou inferior. O reino animal, em toda a sua diversidade, incluindo as "bestas-feras", é parte da boa e perfeita criação de Deus.   


    • Criação Mediata e Imediata: O texto apresenta Deus criando tanto de forma mediata (ordenando à terra que "produza") quanto imediata ("E fez Deus"). Isso estabelece um modelo teológico onde Deus pode usar causas secundárias e processos naturais para cumprir Sua vontade soberana, sem diminuir Sua agência direta.


  3. Providência Divina - Sustentação da Criação: O princípio "conforme a sua espécie" não é apenas um ato criador inicial, mas também uma doutrina da providência. Deus não apenas criou os animais, mas também instituiu o mecanismo para sua propagação e sustentação contínua ao longo do tempo, garantindo a estabilidade das ordens criadas.   



Visões de Correntes Denominacionais


Embora haja um consenso sobre as doutrinas centrais acima, diferentes tradições cristãs abordam Gênesis 1:24-25 com ênfases distintas, especialmente no que diz respeito à sua relação com a ciência e a cronologia.


  • Reformada (Calvinista): A tradição reformada, seguindo João Calvino, enfatiza a soberania absoluta de Deus e a glória de Deus como o propósito final da criação. A criação dos animais pela palavra de Deus é vista como uma demonstração de Seu poder irresistível. Calvino interpreta a terra "produzindo" vida não como uma capacidade inerente, mas como um milagre do poder divino que infunde vida na matéria inanimada. A soberania de Deus é o princípio hermenêutico central.   


  • Luterana: O luteranismo afirma firmemente Deus como o Criador de todas as coisas. Historicamente, Lutero mantinha uma visão literal dos dias da criação. Contudo, denominações luteranas contemporâneas demonstram uma maior diversidade de opiniões, com muitos aceitando a evolução teísta ou outras formas de compatibilização entre Gênesis e a ciência moderna, sem comprometer a doutrina fundamental de Deus como Criador.   


  • Batista (particularmente a Convenção Batista do Sul - SBC): A tradição batista, especialmente nos Estados Unidos, tem sido um dos principais redutos do criacionismo da Terra Jovem. A interpretação de Gênesis 1:24-25 é predominantemente literal, vendo os animais criados em um dia de 24 horas. A frase "conforme a sua espécie" é central para a apologética batista contra a teoria da evolução.   


  • Metodista (Wesleyana): A teologia metodista, enraizada em John Wesley, foca na criação como uma obra do Deus Triúno (Pai, Filho e Espírito Santo) e como uma expressão de Seu amor. Há uma forte ênfase na "graça preveniente" que se estende a toda a criação. A criação dos animais é vista como parte do bom mundo de Deus, e a humanidade recebe a responsabilidade sagrada de ser mordomo (steward) dessa criação.   


  • Adventista do Sétimo Dia: A interpretação adventista é estritamente literal em relação à cronologia de uma semana de criação de seis dias de 24 horas, culminando no descanso do sábado. A frase "segundo a sua espécie" é entendida como um comando divino que estabelece distinções biológicas fixas e imutáveis entre os tipos de organismos, reforçando a oposição à evolução.   


  • Católica Romana: A teologia católica afirma inequivocamente Deus como o Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis, a partir do nada (ex nihilo). O Catecismo ensina que os animais são criaturas de Deus, que Ele os cerca com Seu cuidado providencial e que, por sua simples existência, eles O bendizem. A humanidade tem a responsabilidade de tratar os animais com bondade, como parte do cuidado geral com a criação. A Igreja Católica permite uma variedade de visões sobre os mecanismos da criação, incluindo a evolução teísta, desde que a agência direta de Deus na criação da alma humana seja mantida.   


Apesar das divergências em questões de cronologia e mecanismo (Terra Jovem vs. Terra Antiga; Criação Especial vs. Evolução Teísta), um poderoso consenso teológico une estas diversas tradições: Deus é o Criador soberano e pessoal; a criação material, incluindo o reino animal, é intrinsecamente boa; e a humanidade detém uma posição e responsabilidade únicas dentro dessa criação. O debate interdenominacional não é sobre se Deus criou, mas sobre como e quando. O núcleo teológico de Gênesis 1:24-25 permanece como um pilar inabalável da fé cristã.


Análise Apologética e Filosófica


Os versículos de Gênesis 1:24-25, ao descreverem a origem da vida animal terrestre, fornecem uma base robusta para a apologética cristã — a defesa racional da fé. Eles se conectam diretamente com argumentos filosóficos clássicos, como o argumento teleológico, e oferecem um quadro coerente para abordar questões desafiadoras, como a existência dos dinossauros, transformando potenciais objeções em testemunhos da abrangência da cosmovisão bíblica.


O Argumento Teleológico e o Desígnio Inteligente: O argumento teleológico, ou argumento do desígnio, postula que a ordem, a complexidade e o propósito observados no universo apontam para a existência de um projetista inteligente. Gênesis 1:24-25 é um exemplo primordial deste princípio.   


  1. Complexidade Irredutível: A vida animal, desde a célula até o organismo completo, exibe o que os teóricos do Desígnio Inteligente chamam de "complexidade irredutível" — sistemas compostos por várias partes interativas, onde a remoção de qualquer uma das partes faz com que o sistema deixe de funcionar. O naturalismo, que depende de mutações aleatórias e seleção natural, luta para explicar a origem de tais sistemas de uma só vez. A narrativa bíblica, ao contrário, atribui essa complexidade a um ato criativo intencional de Deus.   


  2. Informação Especificada: Como destacado por Adauto Lourenço, a base de toda a vida é a informação codificada no DNA. O DNA não é apenas uma molécula complexa; ele contém um código genético, uma linguagem com sintaxe e semântica que especifica a construção e o funcionamento de um organismo. A experiência uniforme demonstra que a informação sempre se origina de uma mente inteligente. A alegação de que a vasta biblioteca de informações genéticas nos animais surgiu de processos materiais não guiados é uma extrapolação sem suporte empírico. A declaração "Produza a terra... conforme a sua espécie" pode ser vista como a implantação divina de pacotes de informação genética distintos e funcionais.   


  3. Ajuste Fino do Ecossistema: A criação dos animais terrestres não ocorre no vácuo. Ela acontece em um planeta já perfeitamente preparado com luz, água, terra seca e vegetação. A interdependência do ecossistema — a "perícia arquitetônica do joão-de-barro" ou a "sabedoria dos peixes" mencionada por Hernandes Dias Lopes  — aponta para um planejamento e uma previsão que transcendem o acaso.   


Filosoficamente, Gênesis 1:24-25 apresenta uma causa suficiente para o efeito que observamos. O naturalismo postula uma causa (acaso + necessidade) que parece inadequada para explicar a complexidade e a informação que vemos na vida animal. A Bíblia postula uma Causa — um Deus onisciente e onipotente — que é perfeitamente adequada para produzir tal efeito.


A Questão dos Dinossauros à Luz da Bíblia: A existência e a extinção dos dinossauros são frequentemente usadas por céticos como um desafio à narrativa bíblica. No entanto, dentro do quadro criacionista, os dinossauros não são um problema, mas uma parte fascinante da criação de Deus. A questão, frequentemente usada como uma arma contra a Bíblia, pode ser transformada em uma ferramenta apologética para ela, demonstrando a consistência e a capacidade explicativa da cosmovisão bíblica.


  1. Quando os Dinossauros Foram Criados? De uma perspectiva bíblica, os dinossauros, como animais terrestres, teriam sido criados no Sexto Dia da Criação, junto com os outros "répteis" (remeś) e "bestas-feras da terra" (ḥaytô-'ereṣ). Os grandes répteis marinhos, como o plesiossauro, teriam sido criados no Quinto Dia, como parte dos "grandes monstros marinhos" (Gênesis 1:21).   


  2. Os Dinossauros e os Seres Humanos Coexistiram? Sim. Se os dinossauros foram criados no Dia 6, e o homem também foi criado no Dia 6, eles necessariamente coexistiram. A visão criacionista sustenta que a separação de milhões de anos entre dinossauros e humanos, proposta pela coluna geológica convencional, é uma interpretação errônea do registro fóssil.


  3. A Bíblia Menciona os Dinossauros? A palavra "dinossauro" é um termo moderno, cunhado em 1841 por Sir Richard Owen. Portanto, não se esperaria encontrá-la em textos antigos. No entanto, muitos apologistas criacionistas, como Adauto Lourenço, argumentam que a Bíblia descreve criaturas que se encaixam perfeitamente na descrição de dinossauros. O exemplo mais forte é o "Beemote" (בְּהֵמוֹת) em Jó 40:15-24.


    • Deus diz a Jó: "Contempla agora o Beemote, que eu fiz contigo" (v. 15), indicando contemporaneidade.

    • Ele "come erva como o boi", indicando que era herbívoro.

    • Sua força está em seus lombos e nos músculos de seu ventre (v. 16).

    • O detalhe mais revelador: "Move a sua cauda como o cedro" (v. 17). A cauda de um cedro é maciça e forte. Esta descrição não se encaixa em nenhum animal vivo hoje, como o hipopótamo ou o elefante (cujas caudas são pequenas e finas), mas descreve perfeitamente a cauda de um grande dinossauro saurópode, como o Braquiossauro.   

    • Seus ossos são "como tubos de bronze" e seus membros "como barras de ferro" (v. 18), descrevendo a estrutura óssea maciça necessária para suportar um peso colossal.


  4. O que Aconteceu com os Dinossauros? (A Arca e a Extinção) O modelo criacionista propõe o seguinte cenário:


    • A Arca de Noé: Deus instruiu Noé a levar para a arca pares (ou sete pares de animais limpos) de "todo ser vivente" (Gênesis 6:19). Isso incluiria os "tipos" básicos de dinossauros. É provável que Noé tenha levado espécimes jovens ou de tamanho médio, não os maiores adultos, para a arca.   


    • O Dilúvio: O Dilúvio global descrito em Gênesis 6-9 teria sido um evento cataclísmico que enterrou rapidamente bilhões de criaturas, criando as condições ideais para a fossilização em massa que observamos hoje no registro fóssil. A maioria dos dinossauros teria perecido neste evento.   


    • Extinção Pós-Dilúvio: Os dinossauros que sobreviveram na arca enfrentaram um mundo drasticamente diferente após o Dilúvio. Mudanças climáticas severas, a perda de habitat e a competição por recursos teriam tornado sua sobrevivência difícil. A caça por seres humanos também pode ter contribuído para sua eventual extinção. Lendas de "dragões", encontradas em muitas culturas antigas ao redor do mundo, podem ser memórias históricas distorcidas de encontros humanos com os últimos dinossauros sobreviventes.   


Ao integrar os dinossauros na narrativa bíblica, a apologética cristã demonstra que a Bíblia oferece uma cosmovisão abrangente, capaz de explicar os dados do mundo natural de uma forma consistente com sua revelação. Em vez de ser um "problema", os dinossauros se tornam um testemunho da magnífica diversidade da criação original de Deus e da realidade de Seu juízo através do Dilúvio.


Conexões Intertextuais e Tipologia Teológica Bíblica


Os versículos de Gênesis 1:24-25 não são um ponto final na teologia bíblica sobre os animais, mas sim o ponto de partida. Eles inauguram uma trajetória teológica que se desdobra por toda a Escritura, revelando a relação contínua de Deus com Suas criaturas e o impacto do drama da redenção humana sobre todo o cosmos. A história do reino animal na Bíblia segue o grande arco narrativo da própria Escritura: Criação, Queda, Redenção e Consumação.


A Soberania do Criador Reafirmada em Jó e nos Salmos: Séculos após a criação, a soberania de Deus sobre os animais que Ele fez em Gênesis 1 é reafirmada de forma dramática.


  • Jó 38-41: No clímax do livro de Jó, Deus finalmente responde a Jó, não explicando o porquê de seu sofrimento, mas revelando Sua majestade como Criador e Sustentador do universo. De forma significativa, Deus aponta para o reino animal como prova de Sua sabedoria e poder inescrutáveis. Ele questiona Jó sobre os instintos da cabra montesa, a força do boi selvagem e a majestade do cavalo de guerra. Ele descreve Seu cuidado providencial até mesmo para com os filhotes do corvo. O discurso culmina com as descrições do Beemote e do Leviatã, criaturas de poder avassalador que estão totalmente sob o controle de Deus. A mensagem é clara: o mesmo Deus que "fez" (asah) os animais em Gênesis 1 continua a governá-los com soberania absoluta. Se Jó não pode compreender ou controlar as criaturas, como ele ousa questionar o Criador?


  • Salmo 104: Este salmo é amplamente reconhecido como um hino de louvor que segue a ordem dos dias da criação em Gênesis 1. É um comentário poético e de adoração sobre a obra do Criador. O salmista celebra não apenas o ato da criação, mas a providência contínua de Deus. Ele descreve como Deus "dá de beber a todos os animais do campo" (v. 11), provê um habitat para as aves (v. 12, 17) e o alimento para o leão (v. 21). O salmo culmina com uma celebração da dependência de todas as criaturas de Deus:    


    "Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo... se lhes tiras a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra" (vv. 27-30). O Salmo 104 conecta diretamente a criação dos animais em Gênesis 1 com a doutrina da sustentação contínua de Deus.


A Queda e o Gemido da Criação Animal: A harmonia e a bondade estabelecidas em Gênesis 1 foram tragicamente rompidas pela Queda do homem em Gênesis 3. O pecado humano teve consequências cósmicas, afetando a própria criação.


  • Gênesis 3:14-19 e 9:2: A maldição não se limita ao homem e à mulher. A serpente é amaldiçoada "mais que todos os animais domésticos e o gado selvagem" (3:14). A própria terra ('ădāmāh) é amaldiçoada por causa do homem (3:17). Após o dilúvio, Deus reconhece uma nova realidade na relação entre homem e animal: "Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais da terra" (9:2). A harmonia original é substituída por medo e conflito.


  • Romanos 8:19-22: O apóstolo Paulo oferece a interpretação teológica mais profunda deste estado pós-Queda. Ele personifica a criação, afirmando que ela "foi submetida à futilidade, não pela sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou" (v. 20). A criação, incluindo o reino animal, "geme e suporta angústias de parto" (v. 22), aguardando ansiosamente a "revelação dos filhos de Deus" (v. 19). A condição atual de sofrimento, predação e morte no mundo animal é um reflexo direto da desordem introduzida pelo pecado humano. A criação "boa" de Gênesis 1 agora anseia por libertação.   


A Consumação e a Paz Messiânica: A esperança bíblica não termina com o gemido da criação, mas aponta para uma restauração final que reverterá os efeitos da Queda e restaurará a paz edênica.


  • Isaías 11:6-9: Esta é a visão profética clássica da paz escatológica no reino do Messias. A inimizade e a predação no reino animal serão removidas: "O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito... e uma criança os guiará" (v. 6). O leão comerá palha como o boi, e a serpente não mais representará uma ameaça mortal (v. 8). Esta imagem poderosa não é meramente uma metáfora para a paz humana; ela descreve uma restauração real da harmonia na própria ordem criada. A razão para esta paz cósmica é que "a terra se encherá do conhecimento do SENHOR, como as águas cobrem o mar" (v. 9).   


Esta trajetória intertextual revela que a criação dos animais em Gênesis 1:24-25 é o "Ato I" de um drama cósmico. A bondade original da criação estabelece o padrão pelo qual a desordem da Queda é medida e a glória da restauração final é antecipada. A salvação realizada por Cristo, portanto, não é apenas antropocêntrica; ela é cósmica. A redenção dos filhos de Deus é o catalisador para a libertação de toda a criação, incluindo o reino animal, que um dia participará da "liberdade da glória dos filhos de Deus" (Romanos 8:21).


Exposição Devocional com Aplicação para a Vida Atual


As verdades contidas em Gênesis 1:24-25, embora antigas, ressoam com profunda relevância para o crente contemporâneo. Elas não são meros fatos de uma história passada, mas princípios vivos que devem moldar nossa adoração, nossa ética e nossa confiança em Deus. Extrair as aplicações devocionais deste texto é permitir que a majestade do Criador informe e transforme nossa vida diária.


Um Chamado à Adoração e ao Louvor: A primeira e mais natural resposta à contemplação da criação dos animais é a adoração. A "multiforme sabedoria do Criador", como expressa Matthew Henry, é exibida na estonteante diversidade do reino animal. Desde o poder do leão até a delicadeza da borboleta, desde a complexidade do menor inseto até a majestade da baleia, cada criatura é um testemunho eloquente da imaginação e do poder de Deus.   


  • Aplicação Prática: Devemos cultivar o hábito de observar a criação com olhos de fé. Em vez de ver os animais como meros componentes biológicos do nosso mundo, devemos vê-los como obras de arte do Mestre Artista. Isso transforma uma caminhada no parque, uma visita ao zoológico ou mesmo a observação de um pássaro na janela em um ato de adoração. Como o salmista, somos convidados a declarar: "Quão numerosas são as tuas obras, SENHOR! Fizeste-as todas com sabedoria; a terra está cheia das tuas riquezas" (Salmo 104:24). Nosso louvor a Deus é enriquecido quando reconhecemos Sua assinatura em cada ser vivente.


Uma Convocação à Mordomia Responsável: O domínio que a humanidade recebeu sobre os animais (Gênesis 1:26, 28) nunca foi uma licença para a tirania ou a exploração egoísta. É uma responsabilidade sagrada, um chamado para agir como vice-regentes de Deus, cuidando de Sua propriedade com sabedoria e compaixão.   


  • Aplicação Prática (Ética Ambiental Cristã): A verdade de que Deus "fez" cada animal e o declarou "bom" nos compele a uma ética de cuidado. Isso se manifesta em:


    • Oposição à crueldade animal: A Bíblia afirma que "o justo atenta para a vida dos seus animais" (Provérbios 12:10). Abusar de criaturas indefesas é uma afronta ao seu Criador.

    • Cuidado com o meio ambiente: A destruição de habitats, a poluição e a exploração insustentável dos recursos naturais não afetam apenas os seres humanos, mas também as criaturas que Deus colocou sob nosso cuidado. Uma mordomia fiel exige que trabalhemos pela preservação da biodiversidade e pela saúde dos ecossistemas.

    • Uso grato e responsável: Ao utilizarmos os animais para alimento, trabalho ou companhia, devemos fazê-lo com gratidão a Deus e com um senso de responsabilidade, garantindo um tratamento humano e evitando o desperdício.


Uma Lição de Humildade e Confiança: O texto nos lembra de nossa dupla natureza: somos formados do mesmo "pó" que os animais, mas também somos portadores da imagem de Deus. Esta verdade deve produzir em nós tanto humildade quanto uma profunda segurança.


  • Humildade: Reconhecer nossa conexão com a criação terrena nos guarda do orgulho e da arrogância. Nossa dignidade não reside em nossa biologia superior, mas no dom imerecido da imagem divina. Somos criaturas, dependentes do Criador para cada fôlego, assim como os animais que nos cercam.

  • Confiança na Providência: O mesmo Deus que soberanamente criou e que provê para as vastas multidões de animais terrestres é o nosso Pai celestial. Jesus usou este mesmo argumento para acalmar a ansiedade de Seus discípulos: "Observai as aves do céu... vosso Pai celestial as sustenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?" (Mateus 6:26). Se Deus cuida dos pardais e veste os lírios do campo, podemos confiar que Ele cuidará de nós, Seus filhos, em todas as nossas necessidades. A criação dos animais é um sermão diário sobre a fidelidade e a providência de Deus.   


Vivendo "Conforme a Nossa Espécie": Talvez a aplicação mais profunda de Gênesis 1:24-25 seja antropológica. O princípio divino de "conforme a sua espécie" estabelece que cada criatura foi projetada com uma natureza e um propósito específicos. Um leão cumpre seu propósito sendo um leão; uma águia, sendo uma águia. E a humanidade? Fomos criados "conforme a nossa espécie" — a espécie única dos portadores da imagem de Deus.


Nosso propósito criado é refletir o caráter de nosso Criador: Seu amor, justiça, misericórdia, santidade e sabedoria. Viver em pecado e rebelião contra Deus é, portanto, viver "contra a nossa espécie". É uma violação de nossa própria natureza criada, uma tentativa de funcionar de uma maneira para a qual não fomos projetados. A verdadeira alegria, paz e realização humana não são encontradas na autonomia rebelde, mas em nos alinharmos com o propósito para o qual fomos feitos: glorificar a Deus e desfrutar de Sua comunhão para sempre. O processo de santificação, pelo poder do Espírito Santo, é o processo de nos tornarmos mais plenamente aquilo que Deus nos criou para ser, restaurando a imagem divina que foi manchada pela Queda. Assim, a criação dos animais nos aponta, em última análise, para o nosso próprio chamado e propósito como seres humanos no mundo de Deus.



Comentários


bottom of page