top of page

O Ser Humano Ă  Imagem de Deus (Sexto Dia - Parte 2) | GĂȘnesis 1.26–28

  • Foto do escritor: JoĂŁo PavĂŁo
    JoĂŁo PavĂŁo
  • 3 de ago.
  • 26 min de leitura

Atualizado: 16 de set.


ree

Introdução e Contextualização: Estabelecendo o Palco Cósmico


A passagem de GĂȘnesis 1:26-28 representa nĂŁo apenas o clĂ­max da narrativa da criação, mas tambĂ©m o fundamento de toda a antropologia bĂ­blica. Para compreender a profundidade e o alcance radical destas palavras, Ă© imperativo situĂĄ-las em seu devido contexto literĂĄrio, histĂłrico e teolĂłgico. Este texto nĂŁo Ă© um fragmento isolado de um mito antigo, mas uma declaração teolĂłgica cuidadosamente elaborada, com um propĂłsito especĂ­fico para uma audiĂȘncia especĂ­fica, servindo como a abertura majestosa para a grande sinfonia da histĂłria da salvação.


O Ápice do Sexto Dia: A Posição Privilegiada de GĂȘnesis 1:26-28 no Relato da Criação: A estrutura narrativa de GĂȘnesis 1 posiciona deliberadamente a criação da humanidade como o clĂ­max e a coroa da criação. ApĂłs cinco dias de atos criativos majestosos, mas formulados de maneira semelhante, o ritmo da narrativa muda drasticamente no versĂ­culo 26. A fĂłrmula impessoal e imperativa "Haja..." (yehi) Ă© substituĂ­da por uma declaração volitiva e pessoal: "Façamos..." (na'aseh). Esta mudança assinala um momento de deliberação divina, uma espĂ©cie de conselho celestial que precede o ato criativo final e mais significativo. Esta pausa dramĂĄtica e a mudança na linguagem divina elevam a criação da humanidade, separando-a de tudo o que veio antes e sinalizando sua posição Ășnica e seu propĂłsito no cosmos recĂ©m-formado.


O Clímax Narrativo: Deliberação e Solenidade na Criação da Humanidade: Como mencionado anteriormente, a quebra deliberada do padrão literårio estabelecido no versículo 26 é um dispositivo narrativo de imensa importùncia. O uso do plural cohortativo "Façamos o homem..." desacelera a narrativa, convidando o leitor a se inclinar e prestar atenção. Este não é apenas mais um item na lista da criação; é o seu åpice, o momento para o qual toda a atividade criativa anterior estava se movendo. A solenidade deste momento destaca a singularidade da humanidade e a relação especial que ela terå com o Criador.   


AnĂĄlise ExegĂ©tica e HermenĂȘutica


Uma compreensĂŁo profunda de GĂȘnesis 1:26-28 exige um mergulho cuidadoso no texto hebraico original. As escolhas lexicais e gramaticais do autor nĂŁo sĂŁo arbitrĂĄrias; elas carregam um peso teolĂłgico imenso e revelam camadas de significado que muitas vezes se perdem na tradução. Esta seção fornecerĂĄ uma anĂĄlise detalhada dos termos e estruturas chave que formam o alicerce da doutrina da Imago Dei.


VersĂ­culo 26: O Conselho Divino e o PropĂłsito Humano


  • "E disse Deus: 'Façamos' (Ś Ö·ŚąÖČŚ©Ö¶Ś‚Ś” - na'aseh) o homem (ŚÖžŚ“ÖžŚ - *'adam')...": A declaração começa com o verbo Ś Ö·ŚąÖČŚ©Ö¶Ś‚Ś” (na'aseh), uma forma verbal hebraica conhecida como coortativo na primeira pessoa do plural. Esta forma expressa auto-deliberação ou uma intenção resoluta. O uso do plural aqui ("nĂłs") tem sido uma fonte de intenso debate teolĂłgico ao longo da histĂłria (abordado em detalhe na Seção V). O substantivo ŚÖžŚ“ÖžŚ ('adam) é crucial. Neste contexto, nĂŁo Ă© um nome prĂłprio (AdĂŁo), mas um termo genĂ©rico que significa "humanidade" ou "gĂȘnero humano". Sua raiz estĂĄ ligada Ă  palavra para "solo" ou "terra" (ڐÖČŚ“ÖžŚžÖžŚ” -'adamah), prenunciando a narrativa de GĂȘnesis 2:7, onde o homem Ă© formado "do pĂł da terra", e estabelecendo a conexĂŁo intrĂ­nseca da humanidade com o mundo criado.


  • "...Ă  nossa imagem (Ś‘Ö°ÖŒŚŠÖ·ŚœÖ°ŚžÖ”Ś Ś•ÖŒ - b'tsalmenu), conforme a nossa semelhança (Ś›ÖŽÖŒŚ“Ö°ŚžŚ•ÖŒŚȘÖ”Ś Ś•ÖŒ - kidmutenu)...": Aqui encontramos o coração da passagem, a doutrina da Imago Dei. Os dois termos hebraicos usados sĂŁo complementares e devem ser entendidos juntos.


    • (tselem - imagem): Esta palavra geralmente se refere a algo concreto e fĂ­sico. No AOP, era usada para descrever um Ă­dolo que representava uma divindade ou uma estela real que representava a presença e autoridade do rei em uma provĂ­ncia distante. Portanto, tselem sugere que a humanidade Ă© a representação visĂ­vel e tangĂ­vel de Deus no mundo criado.


    • (demuth - semelhança): Este termo Ă© mais abstrato e qualificador. Ele significa "semelhança", "correspondĂȘncia" ou "padrĂŁo". Ao adicionar demuth, o texto evita uma interpretação excessivamente literal ou fĂ­sica. A humanidade nĂŁo Ă© uma cĂłpia fĂ­sica de Deus (que Ă© espĂ­rito, conforme JoĂŁo 4:24), mas Ă© como Deus, refletindo Seus atributos e carĂĄter. Juntos, tselem e demuth comunicam que a humanidade Ă© a representação autorizada de Deus na terra, possuindo capacidades mentais, morais, sociais e espirituais que a distinguem de toda a criação animal e a capacitam para a comunhĂŁo com seu Criador.   


  • "...e que eles dominem (Ś•Ö°Ś™ÖŽŚšÖ°Ś“ÖŒŚ•ÖŒ - v'yirdu)...": A consequĂȘncia imediata e a expressĂŁo funcional da Imago Dei é o domĂ­nio. O verbo ŚšÖžŚ“ÖžŚ” (radah) significa "reinar, governar, ter domĂ­nio". É um termo de realeza, frequentemente usado para descrever o governo de um rei sobre seus sĂșditos. Este nĂŁo Ă© um mandato para tirania ou exploração irresponsĂĄvel, mas para um governo de mordomia benevolente. Como imagem do Rei celestial, a humanidade deve governar a criação da maneira como Deus governa: com sabedoria, cuidado e justiça, promovendo o florescimento. Ser a imagem de Deus Ă© funcionar como vice-regente de Deus na terra.   


VersĂ­culo 27: O Ato Criativo e a Dualidade Humana


  • A ĂȘnfase trĂ­plice em "Criou" (Ś‘ÖžÖŒŚšÖžŚ - bara): Este versĂ­culo tem uma estrutura poĂ©tica poderosa, construĂ­da em torno da repetição do verbo Ś‘ÖžÖŒŚšÖžŚ (bara). Este verbo Ă© teologicamente significativo, pois no Antigo Testamento, ele Ă© usado exclusivamente com Deus como sujeito. Ele denota um ato de criação que somente Deus pode realizar, seja criando algo do nada (ex nihilo) ou transformando a matĂ©ria existente em algo radicalmente novo e sem precedentes. A repetição trĂ­plice do verbo neste Ășnico versĂ­culo ("Criou Deus... Ă  imagem de Deus o criou... homem e mulher os criou") funciona como um crescendo poĂ©tico, sublinhando a singularidade, a importĂąncia e a origem puramente divina da humanidade.   


  • "...Ă  imagem de Deus o criou; homem e mulher (Ś–ÖžŚ›ÖžŚš Ś•ÖŒŚ Ö°Ś§Ö”Ś‘ÖžŚ” - zakar u'neqevah) os criou": A estrutura da frase Ă© reveladora. O texto passa do singular ("o criou") para o plural ("os criou"), definindo imediatamente a humanidade unificada ('adam) como uma dualidade de homem e mulher. Os termos Ś–ÖžŚ›ÖžŚš (zakar) e Ś Ö°Ś§Ö”Ś‘ÖžŚ” (neqevah) sĂŁo as palavras hebraicas bĂĄsicas para "macho" e "fĂȘmea", enraizadas em distinçÔes biolĂłgicas e anatĂŽmicas. Esta declaração Ă© teologicamente revolucionĂĄria por vĂĄrias razĂ”es:   


    1. Igualdade OntolĂłgica: Afirma que tanto o homem quanto a mulher sĂŁo, igualmente e plenamente, criados Ă  imagem de Deus. NĂŁo hĂĄ hierarquia na essĂȘncia do ser; a Imago Dei nĂŁo Ă© mais proeminente no homem do que na mulher.   


    2. Plenitude na Complementaridade: Sugere que a imagem de Deus na humanidade Ă© refletida de forma mais completa na comunhĂŁo e complementaridade entre homem e mulher. A humanidade como um todo, em sua diversidade de gĂȘnero, Ă© o portador da imagem divina.


VersĂ­culo 28: A BĂȘnção Divina e o Mandato Cultural


  • "E Deus os abençoou...": A bĂȘnção no contexto bĂ­blico nĂŁo Ă© um mero desejo de bem-estar. É uma transmissĂŁo de poder e favor divinos para a fertilidade, o sucesso e o cumprimento de um propĂłsito. A bĂȘnção de Deus capacita a humanidade a realizar o mandato que Ele lhe confia.


  • "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a (Ś•Ö°Ś›ÖŽŚ‘Ö°Ś©Ö»ŚŚ”Öž)": Este conjunto de imperativos Ă© frequentemente chamado de "Mandato Cultural". É a comissĂŁo divina para que a humanidade desenvolva o potencial latente do mundo criado.


    • "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra": Este Ă© o mandato procriativo, a tarefa de expandir a presença da humanidade, a portadora da imagem de Deus, por todo o globo.


    • "e sujeitai-a": O verbo Ś›ÖžÖŒŚ‘Ö·Ś©Ś (kabash) é um termo forte, que pode significar "submeter, subjugar, trazer Ă  servidĂŁo". Embora possa soar ĂĄspero, no contexto de uma criação prĂ©-queda declarada "muito boa", ele deve ser entendido como a tarefa de dominar e desenvolver os recursos brutos da terra para o florescimento humano. Isso inclui a agricultura, a mineração, a construção de cidades, a arte, a ciĂȘncia e a tecnologia — em suma, a construção da civilização. Longe de ser uma maldição, o trabalho e o desenvolvimento sĂŁo parte intrĂ­nseca do bom desĂ­gnio de Deus para a humanidade, tornando os seres humanos Seus co-criadores no contĂ­nuo desdobramento do potencial da criação. O mandato Ă© reiterado e expandido com o verbo radah ("dominai"), ligando o Mandato Cultural diretamente Ă  função de vice-regĂȘncia da humanidade.


A seguir, uma tabela resume os termos hebraicos chave para facilitar a compreensão técnica.


Termo Hebraico

Transliteração

Significado BĂĄsico

Amplitude SemĂąntica e Contexto

Significado TeolĂłgico em Gn 1:26-28

ŚÖžŚ“ÖžŚ

'adam

Humanidade, gĂȘnero humano

Termo genérico para seres humanos; ligado a 'adamah (solo).

Refere-se a toda a humanidade, nĂŁo apenas a um indivĂ­duo masculino, estabelecendo a dignidade universal.

ŚŠÖ¶ŚœÖ¶Ś

tselem

Imagem, estĂĄtua

Frequentemente uma representação física, um ídolo concreto ou imagem real.

A humanidade Ă© a representante fĂ­sica e viva de Deus no reino criado.

Ś“Ö°ÖŒŚžŚ•ÖŒŚȘ

demuth

Semelhança, similaridade

Mais abstrato que tselem, denotando correspondĂȘncia ou parecença.

Qualifica tselem, evitando um fisicalismo grosseiro; a humanidade reflete o carĂĄter de Deus.

ŚšÖžŚ“ÖžŚ”

radah

Reinar, ter domĂ­nio

Um termo de realeza; governar, liderar.

O aspecto funcional da Imago Dei; o papel da humanidade como vice-regente de Deus.

Ś›ÖžÖŒŚ‘Ö·Ś©Ś

kabash

Subjugar, trazer sob controle

Um termo forte para subjugação, mas aqui em um contexto pré-queda.

O "Mandato Cultural" para desenvolver o potencial da criação e construir a civilização.

Ś‘ÖžÖŒŚšÖžŚ

bara

Criar

Um verbo usado exclusivamente para a ação criativa de Deus.

Enfatiza a singularidade e a origem divina da humanidade.

Contexto HistĂłrico-Cultural e ArqueolĂłgico: GĂȘnesis em DiĂĄlogo com o Antigo Oriente PrĂłximo


A narrativa da criação em GĂȘnesis 1 nĂŁo surgiu em um vĂĄcuo cultural. Pelo contrĂĄrio, ela Ă© uma obra profundamente engajada com o ambiente intelectual e religioso do Antigo Oriente PrĂłximo (AOP). Compreender este contexto Ă© essencial para apreciar a natureza radical e polĂȘmica da mensagem bĂ­blica. O texto de GĂȘnesis estĂĄ em um diĂĄlogo dinĂąmico com as culturas vizinhas, adotando certas formas conceituais comuns, mas preenchendo-as com um conteĂșdo teolĂłgico revolucionĂĄrio.   


Mitos de Criação da MesopotĂąmia e do Egito: Paralelos e PolĂȘmicas: EscavaçÔes arqueolĂłgicas e o deciframento de textos cuneiformes trouxeram Ă  luz uma rica tapeçaria de mitos de criação de civilizaçÔes como a SumĂ©ria, a AcĂĄdia, a BabilĂŽnia e o Egito. Ao comparar estes relatos com GĂȘnesis 1, observamos tanto paralelos surpreendentes quanto divergĂȘncias profundas.


  • Paralelos: Muitos mitos do AOP começam com um estado de caos aquoso primordial, muito semelhante Ă  descrição da terra como "sem forma e vazia" com "trevas sobre a face do abismo" (ŚȘÖ°ÖŒŚ”Ś•Ö覝 - tehom) em GĂȘnesis 1:2. De fato, a palavra hebraica tehom é etimologicamente cognata com Tiamat, a deusa dragĂŁo do caos aquoso no Ă©pico babilĂŽnico Enuma Elish. A sequĂȘncia da criação em GĂȘnesis (separação da luz e das trevas, criação de um firmamento para separar as ĂĄguas, surgimento da terra seca, criação dos luminares e, finalmente, da humanidade) tambĂ©m encontra ecos em vĂĄrias narrativas do AOP. Estes paralelos indicam que os autores bĂ­blicos compartilhavam um universo conceitual comum com seus vizinhos; eles estavam usando um vocabulĂĄrio culturalmente inteligĂ­vel para contar sua histĂłria.   


  • PolĂȘmicas: As diferenças, no entanto, sĂŁo teologicamente sĂ­smicas e revelam o propĂłsito polĂȘmico de GĂȘnesis.


    1. MonoteĂ­smo vs. PoliteĂ­smo: Enquanto os mitos do AOP descrevem um panteĂŁo de deuses que frequentemente estĂŁo em conflito, GĂȘnesis apresenta um Ășnico Deus soberano e transcendente.

    2. Criação por Palavra vs. Criação por Conflito: No Enuma Elish, o cosmos Ă© criado a partir do cadĂĄver da deusa Tiamat apĂłs uma batalha celestial brutal. Em GĂȘnesis, a criação ocorre sem esforço, pela palavra soberana de Deus. O sol, a lua e as estrelas, adorados como divindades poderosas em todo o AOP, sĂŁo em GĂȘnesis rebaixados ao status de meros "luminares" criados por Deus para marcar o tempo.

    3. Mundo Bom vs. Mundo AmbĂ­guo: A criação em GĂȘnesis Ă© declarada repetidamente "boa", refletindo a natureza de seu Criador. Nos mitos pagĂŁos, o mundo material Ă© frequentemente visto como moralmente ambĂ­guo, nascido da violĂȘncia e do caos.


O Conceito de "Imagem" na Ideologia Real do Antigo Oriente PrĂłximo: O pano de fundo mais crucial para entender a Imago Dei vem da ideologia real do AOP. Textos e monumentos da MesopotĂąmia e do Egito revelam um conceito muito especĂ­fico: apenas o rei era considerado a "imagem do deus" (em acadiano, áčŁalam ilim). O faraĂł ou o rei mesopotĂąmico era visto como o filho da divindade principal, seu representante escolhido na terra. Ele era o mediador entre o reino divino e o humano, responsĂĄvel por manter a ordem cĂłsmica (maat no Egito) e executar a vontade dos deuses. A estĂĄtua do rei, colocada em partes distantes do impĂ©rio, servia como uma extensĂŁo de sua presença e autoridade.


A Singularidade da Antropologia de GĂȘnesis: A Dignidade Universal da Humanidade: É neste contexto que a declaração de GĂȘnesis 1:26 se torna explosiva. O texto bĂ­blico realiza uma democratização radical do status real. Ele toma o privilĂ©gio exclusivo e elitista do rei e o aplica a toda a humanidade. Cada ser humano, homem e mulher, israelita e gentio, nobre e plebeu, Ă© criado Ă  imagem de Deus e investido com a dignidade e a responsabilidade real que outras culturas reservavam apenas para seu monarca.   


Esta visĂŁo contrasta fortemente com a antropologia da maioria dos mitos do AOP. No Enuma Elish e no mito de Atrahasis, a humanidade Ă© criada a partir do sangue de um deus menor e rebelde com um propĂłsito servil: realizar o trabalho pesado que os deuses nĂŁo queriam fazer, para que pudessem descansar. Os humanos sĂŁo, em essĂȘncia, escravos dos deuses. GĂȘnesis inverte completamente essa noção. A humanidade nĂŁo Ă© uma reflexĂŁo tardia e servil, mas o ĂĄpice da obra criativa de Deus, criada no final para governar como Seus parceiros e vice-regentes.


AlĂ©m disso, a afirmação "homem e mulher os criou" Ă  imagem de Deus funciona como uma polĂȘmica direta contra os cultos de fertilidade do AOP. As religiĂ”es cananeias, por exemplo, eram centradas em panteĂ”es de deuses e deusas (como Baal e AserĂĄ) cujas uniĂ”es sexuais eram consideradas essenciais para a fertilidade da terra e do povo. GĂȘnesis 1 desmitologiza radicalmente a sexualidade. Deus cria sem uma consorte feminina; Ele estĂĄ acima e alĂ©m da sexualidade. Ao colocar a distinção "macho e fĂȘmea" dentro da ordem criada, como portadores da imagem divina, mas nĂŁo como seres divinos em si, o texto afirma a bondade da sexualidade humana e da procriação como um dom abençoado do Criador, ao mesmo tempo que mantĂ©m uma distinção absoluta entre o Criador e a criatura.


QuestĂ”es PolĂȘmicas e DiscussĂ”es TeolĂłgicas


A densidade teolĂłgica de GĂȘnesis 1:26-28 inevitavelmente gerou sĂ©culos de debates e interpretaçÔes divergentes. A passagem estĂĄ no centro de algumas das questĂ”es mais complexas e controversas da teologia, da ciĂȘncia e da Ă©tica. Esta seção abordarĂĄ as principais ĂĄreas de discussĂŁo, apresentando as diversas teorias e perspectivas.


O Plural "Façamos": Um Vislumbre da Trindade? A frase "Façamos o homem Ă  nossa imagem, conforme a nossa semelhança" tem intrigado intĂ©rpretes judeus e cristĂŁos por milĂȘnios. A questĂŁo central Ă©: com quem Deus estĂĄ falando? VĂĄrias teorias principais foram propostas para explicar este plural enigmĂĄtico.   


  1. A VisĂŁo TrinitĂĄria: Esta Ă© a interpretação cristĂŁ tradicional, defendida por muitos Pais da Igreja e Reformadores. Ela vĂȘ o plural como um diĂĄlogo intratrinitĂĄrio entre as Pessoas da Divindade: o Pai, o Filho e o EspĂ­rito Santo. Embora a doutrina da Trindade nĂŁo seja explicitamente formulada no Antigo Testamento, esta visĂŁo argumenta que GĂȘnesis 1:26 contĂ©m uma "revelação progressiva", uma semente ou prenĂșncio da natureza plural-una de Deus que seria plenamente revelada no Novo Testamento.   


  2. A Visão do Conselho Celestial: Muitos estudiosos do Antigo Testamento, focando no contexto histórico-cultural, argumentam que Deus estå se dirigindo ao seu conselho celestial de seres angélicos (cf. 1 Reis 22:19-22; Jó 1:6; Salmo 82:1). No pensamento do AOP, era comum a ideia de um deus principal presidindo uma assembleia de divindades menores. Nesta visão, o autor bíblico adapta esta imagem, retratando YHWH como o Rei soberano consultando sua corte celestial. No entanto, a objeção a esta visão é que a humanidade é criada à imagem "nossa", e as Escrituras em nenhum outro lugar afirmam que os anjos compartilham a imagem e semelhança de Deus da mesma forma que os humanos.   


  3. O Plural de Majestade (ou "NĂłs Real"): Esta teoria sugere que o plural Ă© uma forma de discurso real, semelhante a um monarca que diz "NĂłs decretamos..." ao falar de si mesmo. Embora seja uma possibilidade, esta visĂŁo Ă© geralmente considerada a mais fraca, pois hĂĄ poucos, ou nenhuns, exemplos inequĂ­vocos deste uso por um Ășnico falante no hebraico bĂ­blico.


  4. O Plural de Deliberação: Uma variação da visĂŁo anterior, que sugere que o plural indica uma auto-deliberação ou auto-encorajamento. Deus estaria, em essĂȘncia, "falando consigo mesmo" para enfatizar a importĂąncia do ato que estĂĄ prestes a realizar.


AnĂĄlise Conclusiva: É provĂĄvel que a audiĂȘncia original israelita, familiarizada com os conceitos do AOP, tenha entendido a frase no sentido de Deus se dirigindo ao seu conselho celestial. Contudo, do ponto de vista da teologia canĂŽnica cristĂŁ, que lĂȘ o Antigo Testamento Ă  luz do Novo, a interpretação trinitĂĄria Ă© uma evolução teolĂłgica legĂ­tima e rica. Ela reconhece que o texto pode conter uma profundidade de significado que sĂł se tornou plenamente aparente com a revelação posterior de Cristo.   


Imago Dei: SubstĂąncia, Função ou Relação? Uma AnĂĄlise Integrada: O que exatamente constitui a "imagem de Deus" na humanidade? A teologia histĂłrica desenvolveu trĂȘs modelos principais para responder a esta pergunta, e a compreensĂŁo moderna tende a integrĂĄ-los.   


  1. A VisĂŁo Substancial (ou Estrutural): Esta Ă© a visĂŁo mais antiga e tradicional. Ela localiza a Imago Dei em certas capacidades ou qualidades inerentes à natureza humana que refletem os atributos de Deus. TeĂłlogos como Agostinho e os Reformadores apontaram para a racionalidade, a vontade livre, a consciĂȘncia moral e a natureza espiritual (alma) como os componentes da imagem. Ser Ă  imagem de Deus Ă© ser um certo tipo de criatura.


  2. A Visão Funcional: Esta perspectiva, mais proeminente na erudição do século XX, argumenta que a imagem não é o que a humanidade é, mas o que a humanidade faz. A Imago Dei é encontrada na vocação para reinar e ter domínio sobre a criação como representante de Deus (Gn 1:26b, 28). Ser à imagem de Deus é funcionar como Seu vice-regente.   


  3. A VisĂŁo Relacional: Popularizada por teĂłlogos como Karl Barth, esta visĂŁo enfatiza que a imagem de Deus se manifesta na capacidade humana para o relacionamento — primariamente com Deus e, secundariamente, com outros seres humanos. O texto imediatamente define o 'adam criado como "homem e mulher", sugerindo que a imagem Ă© refletida na comunhĂŁo interpessoal, que por sua vez espelha a comunhĂŁo intratrinitĂĄria do Deus relacional.   


Em vez de ver estas visÔes como mutuamente exclusivas, a abordagem mais robusta é considerå-las complementares e interdependentes. A humanidade precisa de certas capacidades substanciais (como razão e vontade) para poder funcionar adequadamente como governante da criação, e tanto a substùncia quanto a função encontram seu propósito e expressão mais elevados no contexto de um relacionamento de amor com Deus e com o próximo.


Criação e CiĂȘncia: GĂȘnesis 1:26-28 e o DiĂĄlogo com a Evolução Humana: O aparente conflito entre o relato bĂ­blico da criação imediata da humanidade e a teoria cientĂ­fica da evolução humana Ă© uma das questĂ”es mais polĂȘmicas da era moderna. Uma abordagem apologĂ©tica e teologicamente informada requer a distinção entre os propĂłsitos da Escritura e da ciĂȘncia.   


GĂȘnesis 1 nĂŁo Ă© um texto cientĂ­fico e nĂŁo pretende descrever os mecanismos biolĂłgicos da origem humana. Seu foco Ă© teolĂłgico: afirmar que a humanidade, independentemente do processo, Ă© uma     criação especial de Deus, intencionalmente feita para ter uma relação Ășnica com Ele e um papel distinto no mundo.


Muitos teĂłlogos e cientistas cristĂŁos adotam uma forma de evolução teĂ­sta, que propĂ”e que Deus usou o processo evolutivo, guiando-o para produzir o Homo sapiens. Nesta visĂŁo, a "criação Ă  imagem de Deus" nĂŁo seria necessariamente um ato fĂ­sico instantĂąneo, mas um momento crucial em que Deus dotou uma ou mais criaturas hominĂ­deas com as qualidades espirituais, morais e relacionais que constituem a Imago Dei — um "toque pessoal" divino que transcende a mera biologia. Esta abordagem busca harmonizar os dados cientĂ­ficos com as verdades teolĂłgicas centrais do texto: a origem divina da humanidade, sua distinção do reino animal e seu propĂłsito dado por Deus.   


GĂȘnero e Hierarquia: ImplicaçÔes para Teologias IgualitĂĄrias e Complementaristas: GĂȘnesis 1:27 — "homem e mulher os criou" — Ă© um texto fundamental no debate sobre os papĂ©is de gĂȘnero na igreja e na famĂ­lia.


  • Perspectivas IgualitĂĄrias: Enfatizam que o homem e a mulher foram criados simultaneamente Ă  imagem de Deus e receberam juntos, sem distinção, o mandato para dominar a terra. Argumentam que isto estabelece uma igualdade fundamental de essĂȘncia, autoridade e vocação desde o inĂ­cio da criação.   


  • Perspectivas Complementaristas: Embora concordem com a igualdade ontolĂłgica (igual valor e dignidade), os complementaristas geralmente apontam para a narrativa de GĂȘnesis 2 (onde AdĂŁo Ă© criado primeiro e Eva Ă© formada a partir dele para ser sua "auxiliadora") para argumentar a favor de uma diferenciação de papĂ©is e uma hierarquia funcional ordenada por Deus, com a liderança masculina.


É importante notar que a passagem de GĂȘnesis 1:26-28, considerada isoladamente, oferece um forte apoio Ă  igualdade fundamental e Ă  parceria compartilhada entre os sexos. O debate surge principalmente quando se tenta harmonizar esta passagem com a narrativa de GĂȘnesis 2.


Doutrina Teológica (Sistemåtica) e VisÔes de Correntes Denominacionais


A passagem de GĂȘnesis 1:26-28 nĂŁo Ă© apenas um texto para exegese histĂłrica; Ă© uma fonte primĂĄria para doutrinas centrais da teologia cristĂŁ sistemĂĄtica. Sua interpretação moldou a forma como a Igreja compreende a Deus, a humanidade e a salvação. AlĂ©m disso, diferentes tradiçÔes denominacionais desenvolveram ĂȘnfases distintas ao interpretar a Imago Dei e suas implicaçÔes.


A Doutrina da Humanidade (Antropologia TeolĂłgica): Este texto Ă© o locus classicus, ou a passagem fundamental, para a doutrina cristĂŁ da humanidade. Ele estabelece vĂĄrias verdades antropolĂłgicas cruciais:


  • Origem Divina: A humanidade nĂŁo Ă© um produto do acaso ou de forças materiais cegas, mas o resultado de um ato deliberado e especial de Deus.


  • Dignidade IntrĂ­nseca: O valor humano nĂŁo Ă© derivado de utilidade, capacidade, raça, gĂȘnero ou status social. Ele Ă© intrĂ­nseco e inalienĂĄvel porque cada pessoa Ă© criada Ă  imagem de Deus. Esta Ă© a base teolĂłgica para a santidade da vida humana.   


  • PropĂłsito e Vocação: A vida humana tem um propĂłsito transcendente. Fomos criados para um relacionamento com Deus (a dimensĂŁo vertical) e para uma vocação no mundo — refletir o carĂĄter de Deus e administrar Sua criação (a dimensĂŁo horizontal).


  • Natureza Dual: A humanidade Ă© paradoxalmente terrena ("do pĂł da terra") e celestial (Ă  imagem de Deus). Somos criaturas finitas, mas com uma vocação transcendente, unindo em nĂłs mesmos os reinos material e espiritual.


A Doutrina de Deus (Teologia Propriamente Dita): A criação da humanidade também revela aspectos importantes sobre a natureza do próprio Criador.


  • Deus Ă© Pessoal e Relacional: O Deus de GĂȘnesis 1 nĂŁo Ă© uma força impessoal ou um princĂ­pio abstrato. Ele delibera, fala e se relaciona. O ato de criar a humanidade "Ă  sua imagem" revela um Deus que deseja comunhĂŁo e auto-revelação.


  • Deus Ă© Soberano e Benevolente: Ele cria com autoridade absoluta, mas Sua criação Ă© "muito boa". Seu governo nĂŁo Ă© tirĂąnico.


  • Deus Compartilha Sua Autoridade: Em um ato de graça surpreendente, o Deus soberano escolhe compartilhar Seu governo com Suas criaturas, comissionando a humanidade para ser Sua vice-regente. Isso revela um Deus que nĂŁo acumula poder, mas o delega.


Levantamento de Perspectivas Denominacionais sobre a Imago Dei: Embora todas as principais denominaçÔes cristĂŁs afirmem a doutrina da Imago Dei, elas a interpretam com nuances e ĂȘnfases distintas, especialmente em relação aos efeitos da Queda e Ă  natureza da restauração.


  • VisĂŁo CatĂłlica Romana: A teologia catĂłlica enfatiza a unidade ontolĂłgica de corpo e alma como portadora da Imago Dei. A imagem Ă© fundamentalmente relacional, refletindo a comunhĂŁo da Trindade, e Ă© expressa de forma Ășnica na comunhĂŁo entre homem e mulher no matrimĂŽnio. O pecado fere e obscurece a imagem, resultando na concupiscĂȘncia (a inclinação para o pecado), mas nĂŁo a destrĂłi completamente. A restauração e elevação da imagem ocorrem atravĂ©s da graça, primariamente mediada pelos sacramentos da Igreja.   


  • VisĂŁo Luterana: A teologia luterana, seguindo Martinho Lutero, tende a identificar a Imago Dei original primariamente com a justiça original — o perfeito conhecimento de Deus, a confiança Nele e a santidade de AdĂŁo. Esta imagem foi completamente perdida na Queda. O que resta no homem caĂ­do sĂŁo apenas vestĂ­gios ou ruĂ­nas. A imagem Ă© restaurada nĂŁo por um processo de melhoria moral, mas forensemente, atravĂ©s da justificação pela fĂ©, onde o crente Ă© declarado justo e revestido com a justiça de Cristo. A santificação Ă© uma consequĂȘncia, nĂŁo a essĂȘncia, desta imagem restaurada.   


  • VisĂŁo Reformada (Calvinista): A teologia reformada tradicionalmente faz uma distinção. A imagem em sentido estrito (ou estreito), que consiste em "verdadeiro conhecimento, justiça e santidade" (baseado em EfĂ©sios 4:24 e Colossenses 3:10), foi perdida ou totalmente corrompida na Queda. No entanto, a imagem em sentido amplo (ou largo), que inclui a racionalidade, a personalidade e o domĂ­nio sobre a criação, foi desfigurada, mas nĂŁo aniquilada. A restauração da imagem em sentido estrito Ă© um processo gradual de santificação na vida do crente, realizado pelo EspĂ­rito Santo, conformando-o progressivamente Ă  imagem de Cristo.   


  • VisĂŁo Batista: As confissĂ”es de fĂ© batistas afirmam fortemente que a humanidade Ă© uma criação especial Ă  imagem de Deus, o que fundamenta a dignidade humana e inclui a distinção de gĂȘnero como parte do bom desĂ­gnio de Deus. A Queda corrompeu esta imagem e trouxe o pecado e a condenação a toda a raça humana. A restauração da imagem Ă© um aspecto da salvação atravĂ©s da graça de Deus, recebida pela fĂ© pessoal em Jesus Cristo, e Ă© evidenciada em uma vida transformada.   


  • VisĂŁo Pentecostal: A teologia pentecostal compartilha muitas das visĂ”es evangĂ©licas, mas com uma ĂȘnfase distintiva no papel ativo e experiencial do EspĂ­rito Santo. Ela destaca a dimensĂŁo relacional da Imago Dei. A restauração da imagem, embora iniciada na regeneração (novo nascimento), Ă© dinamicamente impulsionada e capacitada pela experiĂȘncia do batismo no EspĂ­rito Santo, que capacita o crente para uma vida de santidade e testemunho, refletindo o carĂĄter de Cristo de forma poderosa.


A tabela a seguir oferece uma comparação sistemåtica destas perspectivas.


Aspecto TeolĂłgico

CatĂłlica Romana

Luterana

Reformada (Calvinista)

Batista

Pentecostal

Natureza da Imagem Original

OntolĂłgica (unidade corpo/alma), relacional, racional.

Justiça original, perfeito conhecimento e confiança em Deus.

Estrito: Conhecimento, justiça, santidade. Amplo: Racionalidade, domínio.

Criação especial, coroada com gĂȘnero, possuindo livre arbĂ­trio.

Relacional, com capacidades para comunhĂŁo com Deus.

Efeito da Queda

Ferida e obscurecida, mas nĂŁo destruĂ­da. Inclinação ao pecado (concupiscĂȘncia).

A imagem da justiça original foi completamente perdida.

A imagem estrita foi perdida/corrompida. A imagem ampla foi desfigurada.

Queda da santidade, trazendo pecado e condenação à raça.

Imagem profundamente distorcida, quebrando a relação com Deus.

Restauração da Imagem

Através de Cristo e dos sacramentos, um processo de cura e elevação.

Restaurada através da fé no Evangelho; justiça imputada de Cristo.

Restaurada progressivamente nos crentes através da santificação pelo Espírito.

Através da graça de Deus na regeneração e salvação em Cristo.

Iniciada na regeneração, capacitada pela obra do Espírito Santo.

Ênfase Principal

ComunhĂŁo, sacramentalidade, unidade corpo-alma.

Justificação pela fé, justiça imputada.

Soberania de Deus, santificação, conhecimento.

Criação especial, salvação individual, dignidade.

Papel do Espírito Santo, restauração relacional, dons espirituais.


Anålise Apologética e Diålogo Filosófico


A doutrina da criação humana Ă  imagem de Deus nĂŁo Ă© apenas uma afirmação teolĂłgica interna; ela se projeta para a arena pĂșblica do pensamento, oferecendo uma base robusta para a compreensĂŁo da realidade, da pessoa humana e da Ă©tica. A apologĂ©tica, definida como a "defesa fundamentada da fĂ© cristĂŁ" , busca demonstrar a coerĂȘncia e o poder explicativo da cosmovisĂŁo bĂ­blica em diĂĄlogo com a filosofia e a cultura.   


A Racionalidade da Criação: Respondendo ao Naturalismo FilosĂłfico: O naturalismo filosĂłfico, a visĂŁo de que a realidade material Ă© tudo o que existe, enfrenta desafios significativos para explicar fenĂŽmenos centrais da experiĂȘncia humana. A existĂȘncia da consciĂȘncia subjetiva, da razĂŁo abstrata, de leis lĂłgicas universais e de valores morais objetivos é difĂ­cil de acomodar em um universo puramente material e nĂŁo-guiado. A cosmovisĂŁo bĂ­blica, por outro lado, oferece uma base metafĂ­sica coerente para estas realidades. A afirmação de que um Deus pessoal, racional e moral criou seres humanos Ă  Sua imagem fornece uma explicação plausĂ­vel para por que os humanos possuem mentes racionais capazes de compreender um universo inteligĂ­vel e consciĂȘncias morais que ressoam com uma lei moral objetiva. A Imago Dei fundamenta a ideia de que nĂŁo somos meros acidentes bioquĂ­micos, mas criaturas com um propĂłsito e uma natureza que transcende o material.


Da Imago Dei à Pessoa Humana: Uma Jornada Filosófica: O conceito de "pessoa", tão central para o pensamento ocidental, tem suas raízes diretas nos debates teológicos cristãos sobre a Trindade e a Cristologia, que por sua vez se baseiam na Imago Dei.   


  1. Origens TeolĂłgicas: A necessidade de articular como Deus pode ser um em essĂȘncia e trĂȘs em Pessoa (Pai, Filho, EspĂ­rito Santo) e como Cristo pode ser uma Pessoa com duas naturezas (divina e humana) forçou a Igreja primitiva a desenvolver um conceito metafisicamente robusto de "pessoa".   


  2. Definição de Boécio: No século VI, o filósofo cristão Boécio formulou a definição clåssica que influenciaria todo o pensamento ocidental: uma pessoa é uma "substùncia individual de natureza racional". Esta definição captura a singularidade, a unidade e a natureza racional que a teologia via como reflexos da Imago Dei.


  3. Desenvolvimento Tomista: Tomås de Aquino, no século XIII, aprofundou esta anålise, enfatizando a natureza espiritual e imortal da alma humana como o fundamento da personalidade e da dignidade.   


  4. Eco Secular em Kant: SĂ©culos mais tarde, a filosofia de Immanuel Kant, embora secular em sua abordagem, ecoa este legado teolĂłgico. A sua famosa formulação do Imperativo CategĂłrico — tratar a humanidade, em si mesmo e nos outros, sempre como um fim em si mesma e nunca como um mero meio — fundamenta-se na ideia de que as pessoas possuem uma dignidade intrĂ­nseca, nĂŁo um preço. Esta noção de dignidade incondicional, embora Kant a baseie na racionalidade autĂŽnoma, Ă© historicamente um herdeiro direto da afirmação bĂ­blica de que os seres humanos sĂŁo valiosos porque carregam a imagem de seu Criador.   


A apologĂ©tica pode, portanto, argumentar que o conceito moderno e secular de "direitos humanos universais" Ă© historicamente e filosoficamente parasitĂĄrio da doutrina judaico-cristĂŁ da Imago Dei. Sem a base teolĂłgica de um valor outorgado pelo Criador, torna-se extremamente difĂ­cil para o naturalismo filosĂłfico fundamentar por que a dignidade humana Ă© inviolĂĄvel e universal, em vez de ser uma convenção social ou uma questĂŁo de capacidade. A Imago Dei oferece a Ășnica base verdadeiramente robusta para a dignidade que o prĂłprio secularismo preza.


A Harmonia dos Relatos da Criação (GĂȘnesis 1 e 2): Uma Apologia da ConsistĂȘncia BĂ­blica: Uma crĂ­tica comum levantada contra a BĂ­blia Ă© que GĂȘnesis 1 e 2 apresentam relatos de criação contraditĂłrios. Uma anĂĄlise cuidadosa, no entanto, revela que eles sĂŁo complementares, nĂŁo contraditĂłrios.   


  • Perspectivas Diferentes: GĂȘnesis 1 oferece uma visĂŁo panorĂąmica, cĂłsmica e majestosa da criação em seis dias — Ă© a visĂŁo de "lente grande angular". GĂȘnesis 2, por outro lado, funciona como uma "lente de zoom", focando especificamente no sexto dia e recontando a criação da humanidade de uma perspectiva mais pessoal, relacional e antropocĂȘntrica.   


  • PropĂłsitos Diferentes: GĂȘnesis 1 estabelece o lugar da humanidade no cosmos. GĂȘnesis 2 estabelece a natureza das relaçÔes humanas (com Deus, com o trabalho, entre os sexos).


  • Resolução de Aparentes DiscrepĂąncias: As supostas contradiçÔes, como a ordem da criação de plantas e animais, podem ser resolvidas por uma exegese cuidadosa do hebraico. Por exemplo, GĂȘnesis 1:11 descreve a criação da vegetação em geral no terceiro dia. GĂȘnesis 2:5 afirma que "nenhuma planta do campo havia ainda brotado", usando um termo hebraico mais especĂ­fico que se refere a plantas que requerem cultivo humano. NĂŁo hĂĄ contradição: a vegetação geral foi criada no dia 3, mas as plantas cultivĂĄveis nĂŁo brotaram atĂ© que o homem fosse criado para lavrar o solo. Da mesma forma, GĂȘnesis 2 descreve a criação dos animais em relação Ă  busca de uma auxiliadora para AdĂŁo, nĂŁo necessariamente reordenando a cronologia, mas recontando o evento com um propĂłsito narrativo diferente.   


ConexÔes Intertextuais e Tipologia Teológica Bíblica


O tema da Imago Dei, introduzido de forma tĂŁo poderosa em GĂȘnesis 1, nĂŁo Ă© um conceito isolado. Ele funciona como um fio dourado tecido em toda a tapeçaria das Escrituras, desde GĂȘnesis atĂ© o Apocalipse, encontrando seu significado Ășltimo e sua realização na pessoa de Jesus Cristo.


A TrajetĂłria da Imago Dei na Escritura: De GĂȘnesis ao Apocalipse: ApĂłs sua introdução em GĂȘnesis 1, o conceito da imagem de Deus ressurge em momentos cruciais da narrativa bĂ­blica.


  • ApĂłs o DilĂșvio (GĂȘnesis 9:6): Deus reafirma a santidade da vida humana, baseando a proibição do assassinato explicitamente no fato de que "Deus fez o homem Ă  sua imagem". Isso indica que, mesmo apĂłs a Queda e a corrupção do pecado, a Imago Dei na humanidade, embora desfigurada, nĂŁo foi aniquilada. Ela permanece como o fundamento da dignidade e do valor humano.


  • Nos Salmos (Salmo 8:4-6): O salmista reflete com admiração sobre o status exaltado da humanidade na criação: "Que Ă© o homem, para que te lembres dele?... Contudo, pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glĂłria e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domĂ­nio sobre as obras das tuas mĂŁos; tudo puseste debaixo de seus pĂ©s". Este salmo Ă© um comentĂĄrio poĂ©tico sobre o mandato de domĂ­nio de GĂȘnesis 1, celebrando a posição real da humanidade como vice-regente de Deus.


  • No Novo Testamento: O conceito Ă© retomado e aprofundado, como veremos a seguir, focando em Cristo como a imagem perfeita e na salvação como a restauração dessa imagem nos crentes.


Cristo, a Imagem Perfeita do Deus InvisĂ­vel: O Novo Testamento faz uma afirmação impressionante: Jesus Cristo Ă© a imagem de Deus por excelĂȘncia.


  • Colossenses 1:15: Paulo declara que Cristo "Ă© a imagem (ΔጰÎșώΜ - eikƍn) do Deus invisĂ­vel, o primogĂȘnito de toda a criação".   


  • 2 CorĂ­ntios 4:4: Paulo fala do "evangelho da glĂłria de Cristo, que Ă© a imagem de Deus".


  • Hebreus 1:3: O autor descreve o Filho como "o resplendor da sua glĂłria e a expressĂŁo exata do seu ser".


Cristo Ă© a Imago Dei em um sentido Ășnico e supremo. Enquanto AdĂŁo foi criado à imagem de Deus, Cristo é a imagem eterna e incriada de Deus. Ele revela perfeitamente o carĂĄter e a natureza do Pai invisĂ­vel ("Quem me vĂȘ a mim, vĂȘ o Pai", JoĂŁo 14:9). Ele Ă© o cumprimento de tudo o que a Imago Dei em AdĂŁo deveria ser. Nele, a imagem divina nĂŁo estĂĄ desfigurada pelo pecado, mas Ă© exibida em sua plenitude e perfeição.   


A Restauração da Imagem: A Soteriologia e Santificação do Crente: Se Cristo é a imagem perfeita, então o objetivo da salvação é a restauração da imagem desfigurada nos seres humanos, conformando-os à imagem de Cristo.


  • Romanos 8:29: Deus predestinou os crentes "para serem conformes Ă  imagem de seu Filho".


  • 2 CorĂ­ntios 3:18: Pela obra do EspĂ­rito, "somos transformados de glĂłria em glĂłria na mesma imagem".


  • EfĂ©sios 4:24 e Colossenses 3:10: A vida cristĂŁ envolve "revestir-se do novo homem, que segundo Deus Ă© criado em verdadeira justiça e santidade" e que "se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou".   


A salvação, portanto, não é meramente um perdão forense, mas um processo transformador de re-criação. O Espírito Santo trabalha na vida do crente para restaurar as qualidades morais, relacionais e espirituais da Imago Dei que foram corrompidas pelo pecado.   


A Tipologia de AdĂŁo e Cristo: O Primeiro e o Último AdĂŁo: O apĂłstolo Paulo, especialmente em Romanos 5 e 1 CorĂ­ntios 15, desenvolve uma profunda tipologia na qual AdĂŁo funciona como um "tipo" (Ï„ÏÏ€ÎżÏ‚ - typos), ou um padrĂŁo prefigurativo, de Cristo, que Ă© o "antĂ­tipo" correspondente.   


  • AdĂŁo, o Primeiro Homem: Ele Ă© o cabeça federal da antiga humanidade. Seu Ășnico ato de desobediĂȘncia no jardim resultou em pecado, condenação e morte para toda a raça humana que ele representava ("em AdĂŁo todos morrem").   


  • Cristo, o Último AdĂŁo: Ele Ă© o cabeça federal da nova humanidade. Seu Ășnico ato de obediĂȘncia na cruz resultou em justiça, justificação e vida para todos os que estĂŁo unidos a Ele pela fĂ© ("em Cristo todos serĂŁo vivificados").   


Este paralelo tipolĂłgico de contraste Ă© uma das estruturas teolĂłgicas mais importantes da BĂ­blia. Ele demonstra que a histĂłria que começou com a criação da humanidade Ă  imagem de Deus em GĂȘnesis 1, e que tragicamente deu errado em GĂȘnesis 3, encontra sua resolução, redenção e glorioso cumprimento na pessoa e obra do "Ășltimo AdĂŁo", Jesus Cristo. A criação original encontra sua re-criação Nele.


Exposição Devocional: AplicaçÔes para a Vida Contemporùnea


A anĂĄlise tĂ©cnica, histĂłrica e teolĂłgica de GĂȘnesis 1:26-28 nĂŁo Ă© um mero exercĂ­cio acadĂȘmico. As verdades contidas nestes versĂ­culos sĂŁo profundamente prĂĄticas e tĂȘm o poder de transformar radicalmente a forma como nos vemos, como nos relacionamos com os outros e como vivemos no mundo. Extrair as aplicaçÔes devocionais deste texto Ă© permitir que suas verdades fundamentais moldem nossa identidade, propĂłsito, relacionamentos e esperança.


Identidade: Encontrando Nosso Valor como Portadores da Imagem de Deus: Em um mundo que frequentemente mede o valor humano com base em desempenho, aparĂȘncia, riqueza, popularidade ou poder, a doutrina da Imago Dei oferece uma base para a identidade que Ă© ao mesmo tempo humilhante e exaltadora.


  • Nosso valor Ă© outorgado, nĂŁo conquistado. NĂŁo somos valiosos por causa do que fazemos, mas por causa de quem somos: criaturas feitas Ă  imagem do Deus vivo. Este fato indelĂ©vel confere uma dignidade e um valor intrĂ­nsecos a cada ser humano, desde o nascituro atĂ© o idoso, independentemente de suas capacidades ou contribuiçÔes para a sociedade. Refletir sobre isso Ă© encontrar um antĂ­doto poderoso para a insegurança, a inveja e a cultura da comparação que permeia a sociedade moderna. Somos singulares nĂŁo porque somos autĂŽnomos, mas porque fomos criados para a glĂłria e satisfação de Deus.   


PropĂłsito: Vivendo a MissĂŁo de Representar Deus e Administrar a Criação: A vida nĂŁo Ă© sem sentido. GĂȘnesis 1:26-28 revela que temos uma vocação divina, um propĂłsito que dĂĄ significado a todas as nossas atividades.


  • Somos embaixadores de Deus. Como Seus portadores de imagem, nossa principal tarefa Ă© refletir Seu carĂĄter — Seu amor, justiça, misericĂłrdia, sabedoria e criatividade — em todas as nossas esferas de influĂȘncia.


  • Somos mordomos da criação. O Mandato Cultural nos chama a participar da obra contĂ­nua de Deus, cuidando do meio ambiente, cultivando a terra, construindo sociedades justas, criando beleza atravĂ©s das artes e buscando o conhecimento atravĂ©s da ciĂȘncia. Nosso trabalho, seja ele qual for, pode ser visto como uma forma de adoração, uma maneira de cumprir o comissionamento original de Deus. Isso eleva o mundano ao sagrado e nos chama a uma responsabilidade ecolĂłgica e social.   



Relacionamento - Refletindo a ComunhĂŁo Divina em Nossas ConexĂ”es Humanas: Fomos criados Ă  imagem de um Deus que existe em eterna comunhĂŁo — Pai, Filho e EspĂ­rito Santo. Portanto, fomos feitos para o relacionamento.


  • A solidĂŁo nĂŁo Ă© nosso estado original. A afirmação "homem e mulher os criou" aponta para nossa necessidade fundamental de comunidade. Nossos relacionamentos em famĂ­lias, amizades, igrejas e na sociedade sĂŁo arenas onde a imagem de Deus pode ser vivida e refletida. O casamento, em particular, Ă© projetado para ser um modelo da glĂłria relacional de Deus.   


  • Somos chamados a amar o prĂłximo. Porque cada pessoa que encontramos, sem exceção, Ă© um portador da imagem de Deus, somos chamados a tratĂĄ-los com dignidade, respeito e amor. A Imago Dei destrĂłi todas as bases para o racismo, o sexismo e qualquer outra forma de preconceito, chamando-nos a ver o reflexo do Criador no rosto do outro.


Esperança: A Promessa da Restauração Plena da Imago Dei na Glória: Vivemos em um mundo onde a imagem de Deus está tragicamente desfigurada pelo pecado — em nós mesmos, nos outros e nas estruturas quebradas da sociedade. Vemos egoísmo em vez de amor, opressão em vez de domínio justo, e divisão em vez de comunhão.


  • O Evangelho Ă© a promessa de re-criação. A boa nova de Jesus Cristo Ă© que Deus nĂŁo abandonou Seu projeto original. Em Cristo, a imagem perfeita, Deus iniciou a obra de restaurar Sua imagem em nĂłs. AtravĂ©s da fĂ© Nele, somos feitos novas criaturas (2 CorĂ­ntios 5:17).   


  • Nossa esperança final Ă© a conformidade com Cristo. A jornada cristĂŁ Ă© um processo de ser progressivamente transformado Ă  semelhança de Jesus. Nossa esperança nĂŁo estĂĄ em nossa prĂłpria capacidade de nos aperfeiçoar, mas na promessa de que um dia, na nova criação, esta transformação serĂĄ completa. "Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda nĂŁo se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele Ă©" (1 JoĂŁo 3:2). Esta esperança nos sustenta em meio Ă s lutas presentes e nos motiva a cooperar com a obra do EspĂ­rito Santo, enquanto aguardamos o dia em que a Imago Dei brilharĂĄ em nĂłs, plena e sem mĂĄcula, para a glĂłria de Deus. 

bottom of page