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O nascimento de Ismael | Gênesis 16:1–6

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 2 de set.
  • 5 min de leitura
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O capítulo 16 de Gênesis relata o dramático desdobramento da esterilidade de Sarai (Sara) e do plano humano para assegurar a descendência de Abraão. De fato, após as alianças gloriosas em Gênesis 15, vemos Abraão cedendo à pressão doméstica, seguindo o conselho de Sarai em vez de aguardar a intervenção divina. A narrativa enfatiza que, embora o homem tropece, “o Senhor, em quem não pode existir variação”, vela especialmente pelos oprimidos (como Agar) e cumpre sua soberana vontade.


Sarai estéril e o recurso a Agar


Em Gênesis 16:1-2 o texto ressalta que “Sarai, esposa de Abrão, não lhe dera filhos; mas ela tinha uma serva egípcia, cujo nome era Agar”. A palavra hebraica shifchah (שִׁפְחָה) traduzida por “serva” ou “escrava pessoal” indica uma mulher escrava adquirida pela esposa rica para servi-la. Culturalmente, a narrativa supõe que Agar integrava o séqüito de riqueza de Abraão em Canaã (talvez trazida do Egito em 12:16). Sarai, então com cerca de 75 anos (vida fina e possivelmente pós-menopausa), reconhece que “o SENHOR a tem impedido de gerar filhos” e propõe: “faça de minha serva Agar o favor de conceber em meu lugar, para que eu tenha filhos por meio dela”


Linguisticamente, a expressão hebraica “entre na minha serva” (אֲמָתִי) em v.2 é literalmente “deite-se entre minha serva”, uma perífrase bíblica para cópula. Sarai diz “talvez [possa] ser edificada” através de Agar, uso incomum de בָּנִים (“ser construída”), hebraísmo que significa ter um filho (Cf. Gn 30:3). A narrativa deixa claro que esse plano não foi ordenado por Deus; Sarai age por falta de fé, tirando a iniciativa da providência divina (ato de “sinergismo” condenado por Mt 16:22).


Esse episódio reflete costumes do Oriente Médio antigo: usar a serva estéril para gerar descendência era socialmente aceito (como em Gn 30:3-12), e leis como o Código de Hamurabi tratavam do status dessas servas com filho. Ainda assim, o texto deixa implícita a crítica: “nem tudo o que é permitido pela lei ou parece dar certo é aprovado pela vontade de Deus”. Como Wiersbe nota, “Deus rejeitou todo o esquema, pois tinha algo muito melhor em mente para Abraão e Sara”. Em suma, Sarai reconhece a mão de Deus em sua esterilidade, mas se revolta (“toma a iniciativa das mãos dele”) ao tentar contornar o problema pela carne em vez de esperar no Senhor.


O cumprimento do plano e o conflito inicial


Sarai então “pegou Agar, sua serva egípcia, deu-a a Abraão por mulher, para que ele se chegasse a ela”. O verbo hebraico laqach (“tomou”, 16:3) ressalta a formalidade do ato: Agar é tratada como propriedade sem direitos pessoais. Notavelmente, essa tomada lembra a queda de Eva (Gn 3:6), sugerindo a loucura e repetição de erro.


Abraão obedece a Sarai, entra em Agar e ela concebe. Ao ver-se grávida, Agar “desprezou sua senhora perante os seus olhos”. O hebraico usa taxal (תָּקַל), literalmente “desprezou” ou “afrontou” (também traduzido por “menosprezou” em Gn 16:5). A atitude de Agar, de arrogar-se por ter cumprido o plano humano, frustra o esquema e agrava a tensão. Como comenta Wenham, “ela se volta arrogantemente contra aquela que solicitou seu auxílio”. As leis do período proibiam uma serva reclamar igualdade com a esposa (código de Hamurabi) – fato aludido indiretamente na narrativa.


Sobre a semântica, Agar “desprezou” (‘va‑tiqal’ em hebraico) reforça o rancor de sua posição. Wiersbe assinala que “[ela] se tornou orgulhosa e irritou sua senhora” (Pv 30:21-23). Kidner nota que cada personagem encarna um tipo de pecado: Hagar demonstra falso orgulho, Sarai falsa acusação e Abraão falsa neutralidade (Gn 16:4-6). A recusa de esperar em Deus leva, assim, ao primeiro conflito familiar de Gênesis. De um lado Agar, empoderada pela maternidade, de outro Sarai, humilhada. Deus não aprova essa escalada de orgulho e inveja (“tudo o que não provém de fé é pecado” – Rm 14:23 . Contudo, enquanto o homem se divide, o Senhor já prepara meios de executar sua promessa sobre ambos (como se verá com Ismael e depois Isaque).


O confronto doméstico e a resposta de Abraão


Em resposta ao desprezo de Agar, Sarai acusa Abraão: “ Que o mal caia sobre ti! Eu próprio pus minha serva em teu seio; e por ela ter visto que gerou, eu sou desprezada aos olhos dela. Que o Senhor julgue entre mim e ti!”. A palavra traduzida por “mal” (ḥamasî, 16:5) sugere “ofensa grave” ou “violação flagrante” segundo o hebraico. Sarai, sentindo-se traída, transfere a culpa a Abraão (à semelhança de Eva culpando Adão) e apela à justiça divina. Como observa Wenham, “Abraão é o único que tem autoridade para mudar isso, mas não agiu; Sarai espera confiantemente que o Senhor julgará a injustiça”.


Abraão, por sua vez, toma posição passiva: “Sua serva está em tuas mãos; faze-lhe o que bem te aprouver”. Com isso, ele abdica da liderança espiritual e permite que Sarai decida o destino de Agar. Segundo o direito babilônico, Sarai não podia vender a serva (Hagar), mas podia puní-la – e isso ela faz. O hebraico diz que “Sarai a maltratou” (16:6), usando va‑taʿnehâ (o mesmo verbo de “afligir” em Êx 1:12). A reação de Sarai é dura e transformadora: a vítima (decepção e esterilidade) torna-se algoz de sua serva. Nem Sarai nem Agar saem bem desse embate – o narrador equivale sua linguagem para mostrar que ambas são culpadas. Agar, humilhada, foge (como Israel foge do Egito), buscando voltar ao seu país.


Este conflito finaliza o episódio antes da intervenção divina (Gn 16:7-16). Teologicamente, ele ilustra que confiar nos próprios esquemas leva à discórdia familiar e entristece a Deus. Wiersbe aplica Tiago 4:1-7: a luta vem porque “obedecemos ao mundo, à carne e ao diabo”; paz só virá submetendo-se ao Senhor. Cada personagem tentou resolver o problema no altar do ego: Sarai culpando Abraão, Abraão cedendo passivamente e Agar fugindo. Paulo vangloria Abraão em Gl 3-4 justamente porque ele “começou no Espírito” (fé na promessa) e foi colocado em “obra da carne” com lisonjas de Sarai (Gn 16), algo que Paulo associa às duas alianças (Hagar=lei, Sara=graça). Em outras palavras, a descendência de Agar (Ismael) nasce “segundo a carne”, e a de Sara (Isaque) virá “segundo a promessa” (Gl 4:23-28).


Em suma, Gênesis 16:1-6 apresenta lexicalmente termos como laqach (“tomar”, a Agar), shifchah (“serva” – vínculo quase legal de Agar para Sarai) e va‑takkal (“desprezar”), carregando nuances de propriedade e desdém. Culturalmente, insere-se na prática do Oriente Próximo de utilização da serva para herdeiros, amparada por leis como as de Hamurabi. Teologicamente, contrapõe fé versus incredulidade (Abraão e Sarai trocaram a promessa divina por seu método humano) e destaca a providência de Deus: mesmo quando homens falham, Ele vê o sofredor (Agar) e dará andamento ao seu plano (como o próprio nome Ismael, “Deus ouve”, proclamará em Gn 16:11). Não há contradições no Senhor, e sua soberania age nos bastidores – abrindo caminho para a promessa de uma numerosa descendência de Abraão, seja por Agar, seja pela bênção futura em Isaque (Dt 7:9; 32:4).

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