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O chamado de Abraão | Gênesis 11:27–12:9

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 31 de ago.
  • 6 min de leitura
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O trecho de Gn 11:27–12:9 abre o grande ciclo narrativo da vida de Abraão (Gn 11:27–25:11), marcado pela fórmula introdutória “Esta é a história de Terá” (11:27a). Essa seção inicial amplia a genealogia de Sem, situando Abraão como filho de Terá e neto de Noé, e enfatiza que o mesmo Senhor criador e juiz do universo agora chama esse personagem para um novo papel cósmico. A introdução genealógica apresenta os protagonistas Abrão, Sarai e Ló, e já destaca os temas centrais: Sarai é estéril (Gn 11:29-30) e Ló é sobrinho de Abrão, adotado por ele após a morte do próprio pai (Gn 11:28). Em seguida, em 12:1-3 Deus chama Abrão para deixar sua terra natal (Ur dos Caldeus) e sua parentela, prometendo-lhe uma nova terra, numerosa descendência, proteção divina e bênção universal (Gn 12:1-3). Essas promessas – de terra, descendência, reputação e bênção – tornam-se o tema dominante de toda a narrativa patriarcal, ligando os eventos de Abraão aos acontecimentos da história primeva (palavras como “terra/ְאֶרֶץ”, “nação”, “maldição” e “bênção” já haviam sido usadas em Gn 1–11). Logo após o chamado, Abrão parte obedientemente de Harã (na Síria) para Canaã com Sarai e Ló (Gn 12:4-5), chegando até Siquém onde Deus lhe reaparece e reafirma a promessa da terra (12:6-7). O ciclo prossegue mostrando como, apesar de sua fé, Abrão enfrentaria provações (fome no Egito em 12:10-20, separação de Ló em Gn 13, batalhas em Gn 14, e sobretudo a questão de um herdeiro), enquanto Deus gradualmente confirma as promessas feitas (situações relembradas pelos patriarcas, aliança em Gn 15, nascimento de Isaque, etc.). Esses contextos demonstram que Gn 11:27–12:9 funciona como introdução e resumo do projeto divino com Abraão: ele é chamado a ser pai de nações, herdeiro de uma terra, protegido por Deus e fonte de bênção para o mundo.


Introdução genealógica e personagens principais


Gênesis 11:27 inicia o ciclo patriarcal com a tradicional fórmula introdutória (“história/família de Terá”), enfatizando que um novo estágio na história da salvação começa ali. O texto registra que “Terá gerou Abrão, Naor e Harã; e Harã gerou Ló” (Gn 11:27), e logo explica que Ló foi criado por Abrão após a morte de seu pai Harã (11:28; ver também 11:31). Abrão casa-se com Sarai e Naor com Milcá (filha de Harã), sendo que “Sarai era estéril; não gerou filhos” (11:29-30). Esses detalhes familiares são relevantes: Sarai e sua infertilidade são introduzidas já aqui como tema-chave dos capítulos seguintes, assim como Ló se torna figura central na separação de famílias e possessões (Gn 13–14, 18–19). Observa-se ainda que Terá sai de Ur dos Caldeus levando Abrão, Ló e Sarai em direção a Canaã, mas resolve parar em Harã, onde morre com 205 anos (Gn 11:31-32). O fato de a narrativa nomear o pai (Terá) mas em seguida focalizar os filhos ilustra o modo patriarcal de contar história: assim como nos ciclos de Isaac (introduzido por “história de Isaque”, Gn 25:19) e Jacó (“história de Jacó”, Gn 37:2), é revelado que Abraão era o primogênito e chefe da família, embora os eventos subsequentes girem em torno dele. Em suma, 11:27–32 introduz os personagens e seu status – Abrão, o filho herdeiro; Sarai, a esposa infértil; Ló, o jovem agregado – preparando o leitor para entender as promessas que lhes serão feitas.


Chamado de Abrão e promessas divinas


Em Gênesis 12:1-3, Deus chama Abrão a abandonar sua terra, sua parentela e a casa paterna, dirigindo-o para “a terra que eu lhe mostrarei” (12:1). Imediatamente recebem-se quatro promessas-chave:


(1) terra – Deus concede um território aos descendentes de Abrão; (2) descendência numerosa – Abrão se tornará “uma grande nação” (12:2); (3) proteção e prestígio – seu nome será engrandecido e ele será uma fonte de bênçãos; (4) bênção universal – “todas as famílias da terra serão abençoadas em ti” (12:3). Em palavras simples: apesar de Abrão sair pobre e sem filhos, Deus garante que ele terá uma herança (terra, 12:1,7) e um futuro glorioso para si e sua posteridade, tornando-o modelo de fé para as nações. Esse vocabulário de bênção ecoa bênçãos primordiais (Gn 1:28, 9:1) e alude às setenta nações de Gn 10: Assim como ali todas as nações recebem bênçãos diversas, aqui todas serão abençoadas por meio de Abrão. As promessas de 12:1-3 têm caráter covalêncial, pois são unilaterais e garantidas por Deus – como sinalizadas pelo uso repetido de “farei” e “abeniçoarei”. Em ênfase didática, pode-se resumir assim as promessas divinas em Gn 12:1-3:


  • Terra (12:1,7): Deus promete a Abrão a posse de Canaã, “a terra que Ele mostraria” (12:1) e que efetivamente lhe é anunciada em Gn 12:7.

  • Descendência (12:2): Abrão se tornará “uma grande nação”, apesar de Sarai ser estéril.

  • Proteção e prestígio (12:2): Deus fará o nome de Abrão grande e abençoará quem o abençoar (12:2-3), indicando cuidado divino especial sobre sua família.

  • Bênção universal (12:3): Sobre todos que o honrarem recairá bênção e em Abrão “todas as famílias da terra” serão abençoadas.


Essas promessas formam o núcleo teológico do ciclo patriarcal e são o motivo central da narrativa. Notadamente, a frase “Eu o abençoarei” aparece em 12:2-3 cinco vezes ( formas de “abençoar” e “ser bênção”), ressaltando o tema da bênção ligada a Abraão, que remete às grandes bênçãos criacionais de Gênesis e ao triunfo sobre a mágica busca babilônica por “um nome” (cf. Gn 11:4). Em suma, 12:1-3 estabelece o pacto tácito entre Deus e Abraão: ao passo que Abrão parte em obediência (“Abrão saiu, indo como o Senhor lhe ordenara”, 12:4), Deus lhe garante futuro glorioso, fazendo de Abraão o patriarca de um plano universal de redenção.


Viagem de Abrão e atos de culto em Canaã


O trecho 12:4-9 descreve de forma breve o início da jornada de fé de Abrão e seus primeiros atos de adoração na terra prometida. Abrão, então com 75 anos, “partiu como o Senhor lhe ordenara” de Harã, levando Sarai, Ló e todos os seus bens para Canaã. Pelo caminho, ele alcança Siquém (região central de Canaã) até o carvalho de Moré (12:6). Ali “o Senhor apareceu a Abrão” e repetiu a promessa: “A sua descendência darei a esta terra” (12:7). Em resposta imediata de fé, Abrão ergue um altar ao Senhor naquele local (12:7) – gesto simbólico de adoração e de posse espiritual da terra. Depois, ele desloca seu acampamento para as colinas a leste de Betel (outro lugar sagrado de Canaã), “armou a tenda com Betel ao oeste e Ai ao leste, e ali construiu um altar ao Senhor, invocando o nome do Senhor” (12:8). Ao fazer isso, Abrão está efetivamente tomando posse da terra pela fé e consagrando-a a Deus, estabelecendo pontos de culto que marcam o território prometido. Por fim, 12:9 informa que Abrão prossegue rumo ao Neguebe (sul de Canaã): simbolicamente percorre de ponta a ponta a terra prometida, “caminhando por todo aquele país até o Neguebe”. Essa breve jornada (Norte–Sul) ilustra que Abrão viu e habitou a terra prometida, mesmo antes de herdar legalmente, cumprindo assim de modo prototípico o chamado divino.


Tecnicamente, esse bloco (11:27–12:9) funciona como um itinerário expandido: contém dados genealógicos (11:27-30, 32), relatos de viagem (11:31; 12:4-6, 8-9), declarações de promessa divina (12:1-3, 7) e reações de Abrão (12:4, 7-8). Ele une a genealogia de Terá com o chamado de Abrão, mostrando que o Senhor, criador e redentor desde o Gênesis primevo, agora exige de Abraão obediência e oferece-lhe cumprimento universal. Como nota o comentário, “pela primeira vez o Senhor aparece a um patriarca” em Siquém, reforçando o caráter teofânico e solene dessa promessa (Gn 12:7). Os altares edificados em Siquém e em Betel simbolizam a continuidade da adoração verdadeira no novo contexto (à imagem de Adão e Noé, agora Abraão adora o mesmo Senhor do Éden). Em suma, 12:4-9 mostra Abrão respondendo em fé ao chamado (partindo de Harã) e cumprindo atos religiosos que legitimam sua ligação com a terra prometida.


Juntos, 11:27–12:9 formam a base programática do restante de Gênesis. Eles introduzem Abraão como figura paradigmática: um patriarca que, ao seguir o chamado divino em obediência, inaugura a bênção divina para todas as nações. Esse trecho destaca um novo tempo teológico: após as histórias de juízo (Queda, Dilúvio, Babel), agora vem a promessa de restauração e bênção através de um homem chamado Abrão. O comentário sublinha que “nenhuma outra seção de Gênesis é mais significativa” do que esta (11:27–12:9) porque ela resume toda a vocação de Abrão.


Além disso, o texto estabelece temas padrões que se repetirão em todo o Pentateuco: Deus chama e Abraão obedece, a herança da terra é antecipada por fé, e a bênção divina recai sobre os justos. Os detalhes genealógicos conectam Abraão à linhagem de Sem (Gn 11:10–26) e até a Adão, dando à sua história um contexto cosmológico. Já o “sermo de bênção” (Gn 12:2-3) evoca as grandes promessas do livro: terra prometida, povo numeroso, adoração verdadeira e renome para Deus.


Em termos narrativos, 11:27–12:9 configura o ponto de partida: Abram sai de Ur para entrar na terra de Canaã, e essa transição física simboliza a transição espiritual e histórica do povo de Deus. O fato de toda a carreira abraâmica ser introduzida pela vida de Terá (11:27) reforça que Abrão não é um fugitivo anônimo, mas o herdeiro de uma linhagem que Deus vinha conduzindo desde Noé. A morte de Terá em Harã (11:32) faz de Abrão o líder solitário à frente do “história de Terá”, motivando-o a prosseguir a jornada que o pai interrompeu.


Em conclusão, o bloco 11:27–12:9 funciona como um quadro inaugurativo de teologia abraâmica: ele estabelece Abrão como o protagonista da nova aliança de Deus, destaca as principais promessas divinas (terra, descendência, bênção) e mostra sua primeira resposta de fé (retirada de Ur, construção de altares). Esses versículos lançam as bases para toda a narrativa de Gênesis, conectando de forma orgânica a história primeva à futura nação de Israel e ao plano divino de redenção para “todas as famílias da terra”.

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