O Acordo de Jacó com Labão e o Casamento com Lia e Raquel | Gênesis 29:15–30
- João Pavão
- 10 de set.
- 15 min de leitura

Negociação e contrato de serviço (29:15-20). Após um mês de convívio, Labão toma a iniciativa de formalizar a situação de Jacó na família. Ele diz: “Por seres meu parente, irás servir-me de graça? Dize-me qual será o teu salário” (v.15). A princípio soa generoso: Labão não quer explorar o sobrinho; deseja remunerá-lo. Porém, dadas as intenções futuras de Labão, essa oferta revela astúcia. Labão conhece bem o contexto – sabe que Jacó veio em busca de esposa (pois Rebeca assim lhe informara, cf. 27:43; 28:2) e percebeu o afeto de Jacó por sua filha mais nova, Raquel. Ao “convidar Jacó a propor seu salário”, Labão está preparando o terreno para explorar o desejo do sobrinho. Em vez de ele mesmo sugerir um dote ou arranjo matrimonial, ele força Jacó a declarar o quanto valora Raquel.
O texto insere aqui um detalhe crucial: Labão tinha duas filhas – Lia (Leá), a primogênita, e Raquel, a mais nova (v.16). Ambas solteiras até então. O narrador nos dá uma breve caracterização contrastante (v.17): “Lia tinha os olhos tenros, mas Raquel era formosa de porte e de semblante.” A palavra hebraica para “tenros” (rakot) significa “macios, delicados”. As traduções variam: “olhos fracos” (ARC), “sem brilho” ou “delicados”. Provavelmente indica que os olhos de Lia não tinham o fulgor considerado atraente naquela cultura. Olhos expressivos e cintilantes eram muito apreciados no antigo Oriente Próximo, de modo que olhos “apagados” sugerem menor apelo estético. Alguns eruditos aventam que Lia pudesse ter algum problema de visão ou que seus olhos claros e suaves fossem até uma qualidade positiva, mas comparados ao impacto da beleza de Raquel, não se destacavam. De qualquer forma, a frase prepara a cena: Lia carecia de algo que Raquel possuía em abundância – graça física. Em contraste, Raquel é descrita como “bem proporcionada e bonita” (tradução literal de “formosa de porte e de semblante”). Ela tinha um belo corpo e lindo rosto; era atraente em todos os aspectos. Ou seja, Raquel reunia qualidades que chamavam atenção imediata, ao passo que Lia, embora possivelmente tivesse sua beleza, era ofuscada pela irmã mais nova. (Há também um possível jogo de significados nos nomes: Lia é associado por alguns ao termo “vaca selvagem” ou “vaca montesa” em línguas aparentadas, enquanto Raquel significa “ovelha”. Curiosamente, ambas acabam sendo mães de muitos filhos – quase como matriarcas de dois rebanhos – e, em consonância com seus nomes de animais domésticos, Labão chega a “dar” a Jacó não só as filhas, mas também rebanhos como parte de seus ganhos. No mínimo, os nomes reforçam a ambientação pastoril.)
Nesse contexto, “Jacó amava Raquel” (v.18). Seu coração já estava decidido. Assim, sem rodeios, Jacó responde à proposta de Labão com um oferecimento surpreendente: “Servir-te-ei sete anos por Raquel, tua filha mais moça” (v.18). Aqui Jacó estipula tanto o salário (serviço por tempo determinado) quanto deixa claro o objetivo: casar-se com Raquel, identificando-a explicitamente como a mais nova. Por que Jacó oferece sete anos? Esse período representava um dote altíssimo. Nos costumes da época, o noivo ou sua família pagavam um preço pela noiva (mohar em hebraico) à família da noiva – prática que, além de compensação financeira, também servia como prova do compromisso do noivo. Em casos onde o noivo não tinha dinheiro, podia-se oferecer trabalho (como veremos depois também em Gn 30:26). Sete anos de labor equivaleriam a um valor muito elevado. Para termos de comparação, séculos depois a lei fixaria em 50 siclos de prata a indenização devida a um pai por um homem que violasse e tomasse sua filha por esposa (Dt 22:29) – e 50 siclos era provavelmente o teto do dote comum. Se um trabalhador ganhasse cerca de 1 siclo por mês naqueles tempos (estimativa baseada em registros babilônicos), em sete anos acumularia ~84 siclos – muito além de 50. Ou seja, Jacó está oferecendo mais do que o máximo usual por Raquel. Ele mesmo, como parente, talvez pudesse negociar algo menor, mas “sete anos era uma bela oferta” e ele quis impressionar. Por quê? Primeiro, por amor sincero – o texto enfatiza que Jacó amava Raquel profundamente e estava disposto a um sacrifício extraordinário. Segundo, por prudência – Jacó possivelmente temia que uma oferta modesta pudesse ser recusada ou que Labão entregasse Raquel a outro pretendente. Ao estipular sete anos, Jacó deixa claro que não mediria esforços; ele praticamente impossibilita Labão de dizer não. “É evidente que Jacó não queria arriscar-se a uma recusa – fato que Labão não deixaria de notar e explorar, assim como Jacó explorara a fome de Esaú” anteriormente. A última parte da frase de Kidner alude a algo importante: outrora Jacó se aproveitara da fraqueza alheia (a impaciência faminta de Esaú, Gn 25:29-34); agora é ele quem se coloca na posição de ser explorado por amor. Labão, claro, percebe a paixão de Jacó e vê vantagem nisso.
A resposta de Labão no v.19 parece imediata e afirmativa: “É melhor dá-la a ti do que a outro; fica, pois, comigo.” Soa como um “sim” entusiástico – preferível casar Raquel com um sobrinho do que com um estranho. Entretanto, há sutilezas: Labão não menciona o nome Raquel nem repete expressamente “concordo em dá-la após sete anos”. Ele formula uma resposta vaga, embora favorável, e simplesmente propõe: “fica comigo” (continue trabalhando aqui). Essa falta de clareza abre brecha para o ardil futuro. Como destaca Derek Kidner, “a resposta de Labão foi conduzida de maneira a dar aparência de consentimento, sem seu conteúdo real. Dissimulou bem”. Em outras palavras, Labão parece aceitar, mas não firma explicitamente que Raquel será entregue após os sete anos – apenas diz implicitamente que não se opõe à união. É um “acordo” de boca, sujeito à interpretação dele. Conhecendo o caráter de Labão, percebemos que desde já ele planeja algo alternativo, mas mantém Jacó tranquilo e trabalhador.
Jacó, então, trabalhou sete anos por Raquel (v.20). A narrativa comprime esse longo período em uma frase e adiciona uma das declarações mais belas sobre o amor: “e foram, aos seus olhos, como poucos dias, pelo muito que a amava.” O amor de Jacó por Raquel era tão grande que todo o árduo labor (possivelmente pastoreando sob sol, frio, cuidando de rebanhos, enfrentando perdas, como ele próprio descreve depois em 31:40) pareceu-lhe insignificante e fugaz. Essa frase celebra o poder do amor genuíno de tornar leve o fardo e curta a espera. Em termos pastorais, “sete anos de serviço pareciam-lhe como alguns dias” antecipa a ideia de que o verdadeiro amor sabe esperar e se sacrifica alegremente (cf. 1Co 13:4,7). Jacó demonstra aqui uma qualidade diferente de sua astúcia: lealdade amorosa e perseverança. Há também uma ironia providencial: quando Jacó fugiu de Canaã, Rebeca havia dito que ele ficasse com Labão “alguns dias” até passar a ira de Esaú (27:44). O hebraico dessa expressão “alguns dias” (literalmente “dias poucos”) é o mesmo usado aqui em 29:20 – “foram como dias poucos” para Jacó. O que era para ser curto tornou-se longo (no total, serão 20 anos fora de casa), mas por amor aqueles anos pareceram curtos. Deus está claramente ensinando algo a Jacó no tempo de espera – assim como molda muitos de nós em períodos de demora.
O dia do casamento e o grande engano (29:21-27). Cumpridos os sete anos, Jacó não esconde sua impaciência em concretizar o matrimônio: ele diz a Labão, sem rodeios: “Dá-me minha mulher, pois meu tempo se cumpriu, e quero coabitar com ela” (v.21). A frase é direta – “para que eu me deite com ela” – e reflete os costumes: terminado o período de noivado/serviço, Jacó requer o reconhecimento legal do casamento e a consumação. Em resposta, Labão reúne gente do lugar e oferece uma grande festa de núpcias (v.22). As bodas, na cultura antiga, eram celebradas com um banquete coletivo. Havia protocolos: a noiva permanecia velada o tempo todo durante as festividades, e a celebração costumava durar uma semana inteira. No primeiro dia, havia comidas, bebidas e possivelmente a formalização do contrato nupcial perante testemunhas. Já à noite, os noivos eram conduzidos à tenda nupcial para enfim consumarem o casamento. Tudo indica que Labão fez exatamente isso – com uma intenção oculta em mente.
À noite, Labão executou seu plano ardiloso: em vez de enviar Raquel ao leito nupcial, envia Lia (v.23). “Ao chegar a noite, tomou Labão a Lia, sua filha, e a trouxe a Jacó, que a possuiu.” De maneira chocantemente brusca, a Bíblia relata a troca. Para garantir o engano, Labão certamente contou com vários fatores: (1) Lia, como irmã mais velha, poderia estar do mesmo tamanho e usando vestes semelhantes às de Raquel; além disso, a noiva estaria ricamente vestida e velada, talvez com véus cobrindo rosto e corpo inteiro. (2) Já era noite escura – sem luz elétrica, apenas lamparinas ou tochas externas; dentro da tenda, a escuridão seria grande. (3) Houve fartura de vinho e alegria no banquete; é bem provável que Jacó estivesse com a mente turvada pela celebração (o texto não afirma explicitamente que ele estava bêbado, mas a inferência é comum e plausível). (4) Jacó não tinha motivo para suspeitar de Labão – após sete anos de convivência, ele confiava no sogro. Somando-se tudo, Jacó não reconhece que a mulher entregue a ele é Lia, não Raquel. Labão ainda “providencia” um disfarce extra: ao enviar Lia, ele lhe dá sua serva Zilpa por dama de companhia (v.24). Essa doação de uma serva como parte do dote confirmava o status de Lia como noiva oficial (mesmo estranhando, o leitor percebe que Lia está sendo casada de fato). A manhã seguinte traria a verdade à tona.
“Ao amanhecer, eis que era Lia” (v.25). A laconicidade do texto amplifica o espanto. Imagine o momento: com a luz do dia, Jacó descobre que dormiu com a mulher errada – um golpe devastador em suas expectativas. Imediatamente, procura Labão para tirar satisfação. Sua pergunta é tanto de indignação pessoal quanto de acusação moral: “Que é isso que me fizeste? Não te servi eu por Raquel? Por que, pois, me enganaste?” (v.25). Jacó enfatiza que cumpriu sua parte (sete anos de serviço por Raquel) e acusa Labão de traição deliberada. O termo “enganaste” (ramita em hebraico) é forte – o mesmo radical de onde vem “Jacó” (suplantador) e que define atos de engano. Aqui, porém, Jacó está do lado da vítima. Ele, que enganara o pai e o irmão anos antes, sente na pele o sabor amargo de ser enganado. A cena é carregada de ironia providencial: Jacó, o mestre do engodo, é ludibriado de maneira semelhante a como enganou Isaaque. Quando jovem, ele se passou pelo irmão mais velho explorando a cegueira do pai; agora, o sogro troca as filhas explorando a escuridão da noite e a “cegueira” etílica de Jacó. Como observou um intérprete antigo, “o enganador é enganado, privado pela escuridão do sentido da visão, como seu pai o foi pela cegueira”. Trata-se de justiça poética servida no enredo. Certamente Jacó deve ter lembrado, com remorso, do ocorrido em Berseba: “Teu irmão veio com engano e tomou tua bênção” (Gn 27:35), dissera Isaaque a Esaú – e agora Jacó ouve de Labão algo análogo.
Labão, porém, não se desculpa; pelo contrário, responde friamente com um argumento cultural: “Não se faz assim em nossa terra, que a mais nova se case antes da primogênita” (v.26). Ele alega uma tradição local: a filha mais velha deve casar primeiro. Ainda que casar a caçula antes da primogênita pudesse ser socialmente incomum (e talvez fosse considerado impróprio mesmo), é quase certo que Labão usou isso apenas como racionalização após o fato. Em nenhum momento nos sete anos anteriores ele avisou Jacó dessa regra. Além disso, se esse costume fosse absoluto, Labão poderia ter negociado Lia com Jacó desde o início; mas ele astutamente nada disse, pois sabia que Jacó não trabalharia sete anos por Lia. Agora, coloca a “norma social” como fato consumado. Há aqui também um jogo de palavras mordaz: Labão fala de primogênita vs mais nova. Jacó tinha invertido essa ordem na sua família (usurpara o lugar do primogênito Esaú); agora é forçado a aceitar que na família de Labão o primogênito (no caso, primogênita) leva precedência. É difícil não ver nisso um recado implícito a Jacó. O próprio nome “Labão” em hebraico se relaciona a “branco”, mas seu comportamento é de um cinismo sombrio. Jacó, sem ter como desfazer o ocorrido – afinal, o casamento com Lia foi consumado e, legalmente, Lia agora é sua esposa –, ouve a proposta “conciliatória” de Labão no verso 27.
Labão orienta Jacó: “Cumpre a semana desta” (isto é, celebre os sete dias de bodas com Lia, não a rejeite publicamente agora) “então te daremos também a outra, pelo trabalho de mais sete anos que ainda me servirás.” Em resumo, Labão se dispõe a entregar Raquel uma semana depois, contanto que Jacó se comprometa a mais sete anos de serviço. Ele transforma a paixão de Jacó em vantagem duplicada para si: em vez de sete anos por uma filha, consegue quatorze anos por duas. Labão tinha certeza de que Jacó, amando intensamente Raquel, aceitaria qualquer condição para tê-la – e estava certo. Note-se que Labão fala “te daremos também a outra”: provavelmente ele mesmo e as pessoas da casa (incluindo Lia e Raquel) sabiam que essa seria a única forma de apaziguar Jacó. Deve ter havido forte tensão familiar nesses dias. Ainda assim, Labão mostra-se inescrupuloso. O acordo inicial foi quebrado por ele, mas Jacó, por amor a Raquel, praticamente não tem escolha senão concordar com o novo arranjo. Não podia devolver Lia – isso seria desonroso e impossível socialmente. E não queria perder Raquel. Assim, o enganador Labão subjuga Jacó: “Labão o havia logrado, mas Jacó não tinha o que fazer, pois o patriarca da casa exercia autoridade suprema”. Jacó estava preso por obrigações culturais e afetivas.
O v.28 relata de forma sucinta o desfecho do acordo: “Jacó assim o fez, e cumpriu a semana de Lia; então Labão lhe deu por mulher Raquel, sua filha.” Ou seja, Jacó acatou. Deve ter sido uma semana emocionalmente difícil – celebrando bodas com Lia, quando seu coração estava ferido e focado em Raquel. Mas Jacó terminou os festejos formais com Lia, honrando-a publicamente como esposa durante aqueles dias. Após isso, Labão cumpriu sua parte: entregou-lhe Raquel por esposa, antes dos sete anos adicionais (que seriam pagos depois). O texto reforça que Labão deu a Raquel sua serva Bilha como presente (v.29), assim como dera Zilpa a Lia – preparativos que indicam as duas como esposas estabelecidas. Jacó então “coabitou também com Raquel” (v.30). Em seguida vem uma frase crucial: “ele amava a Raquel mais do que a Lia; e serviu a Labão ainda outros sete anos.” Assim, Jacó finalmente tem a quem ama, mas agora em um contexto de poligamia e favoritismo que trará dores. A menção explícita do amor maior por Raquel prefigura o sofrimento de Lia. Também mostra que, embora Jacó tenha recebido Raquel após uma semana, seu compromisso de trabalho continuaria por mais sete anos. Jacó cumpriu fielmente esse segundo período, mostrando novamente sua resiliência. “Jacó serviu Labão durante sete anos difíceis... mas o amor de Jacó por Raquel tornou o fardo leve” – embora agora com Lia ao lado, o que tornaria a dinâmica familiar pesada.
Aqui vale destacar aspectos teológicos e culturais: (1) A poligamia – Jacó, diferentemente de seu pai e avô, torna-se polígamo, e justamente com irmãs. Embora casos de poligamia apareçam em Gênesis (como Lameque em 4:19, e posteriormente Esaú tomou várias esposas), até então o ideal monogâmico de Gn 2:24 (“tornar-se-ão uma só carne”) prevalecia nos casamentos principais dos patriarcas. O próprio relato nos deixa ver as consequências negativas: “Jacó amava mais a Raquel do que a Lia” (v.30), e no verso seguinte (29:31) ficamos sabendo que Lia era “odiada” (no hebraico, literalmente sane’ah, termo que aqui significa “não amada” ou amada muito menos em comparação a Raquel). Ou seja, a rivalidade e o desequilíbrio afetivo começam imediatamente. A Lei de Moisés mais tarde proibiria casar com duas irmãs ao mesmo tempo, exatamente para evitar esse tipo de aflição familiar (Lv 18:18). A Bíblia, portanto, narra a poligamia de Jacó, mas não a endossa; pelo contrário, expõe suas tensões – a tal ponto que “a presente narrativa ajuda a mostrar por que” Deus proibiu tal prática. Veremos nos versículos seguintes (29:31–30:24) que essa estrutura familiar gerará muita competição e sofrimento, embora também resulte na formação das doze tribos de Israel. (2) A justiça retributiva de Deus – Fica evidente que Jacó colheu o que plantou. Ele enganou seu pai e irmão; agora é enganado pelo sogro. “Tem sido claramente reconhecido desde a Antiguidade tardia que toda a história das noivas trocadas é uma aplicação de justiça poética a Jacó — o enganador enganado”. Deus permitiu que Jacó passasse pelo mesmo tipo de dolo que ele cometera, para quebrar seu orgulho e ensiná-lo. “Vemos aqui a disciplina divina moldando Jacó: embora escolhido por Deus, Jacó colhe o que plantou, para aprender que não poderia continuar sendo enganador no cumprimento de seu chamado santo”. Jacó não deixa de ser o eleito do Senhor, mas isso não o isenta da disciplina (Pv 3:12). Como um pai amoroso, Deus estava corrigindo Jacó não para destruí-lo, e sim para transformá-lo em um homem mais reto – adequado à grande missão portadora da promessa (cf. Hb 12:6-11). (3) A graça soberana de Deus – Apesar das falhas humanas, Deus estava operando Seu plano. “Deus, e não Labão, teve a última palavra” nos acontecimentos. Labão pensou estar simplesmente buscando vantagem própria, mas Deus utilizou até o engano de Labão para Seus propósitos maiores na história da redenção. Por exemplo, Lia, a esposa desprezada, acaba se tornando tremendamente importante: dela nascerão Levi (ancestral do sacerdócio de Israel) e Judá (ancestral da dinastia real davídica e, em última análise, do Messias Jesus). Como bem observa Derek Kidner, “o enganador Jacó foi enganado, e a desprezada Lia foi exaltada, vindo a ser a mãe das tribos sacerdotal e real de Levi e Judá”. Deus escolheu abençoar Lia de maneira especial – “quando o Senhor viu que Lia era odiada, abriu a sua madre” (29:31) – concedendo-lhe os primeiros filhos de Jacó e inscrevendo-a na linhagem do Cristo. Isso nos ensina que os critérios de Deus frequentemente subvertem as preferências humanas: o último pode ser o primeiro, o rejeitado pode ser o eleito de Deus (cf. 1Sm 16:7; Mt 20:16). Portanto, mesmo num relato tão cheio de falhas morais, vislumbramos a graça divina conduzindo a história rumo à promessa abraâmica – a multiplicação da descendência de Jacó e, em última instância, a benção de todas as famílias da terra através de seu descendente (Gn 28:14).
Aplicações e lições adicionais. A saga de Jacó, Lia e Raquel é rica em aplicações práticas e espirituais. Primeiro, ela nos fala sobre as consequências do engano e da desonestidade. O engano gera ciclos de dor: Jacó enganou e foi enganado; Labão enganou e acabou colhendo conflito em sua família; mais adiante, os próprios filhos de Jacó aprenderão a enganar (os irmãos enganam Jacó sobre José). A lei da semeadura e colheita é ilustrada vividamente: “aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6:7). Deus pode perdoar o pecado, mas frequentemente permite que sintamos em nossa vida o peso do erro para nosso aprendizado. Jacó certamente nunca mais esqueceu a lição daquela noite de núpcias. Segundo, vemos aqui um exemplo de esperar em Deus e trabalhar com diligência enquanto se espera. Jacó serviu sete anos com dedicação, e depois mais sete, para alcançar o que almejava. Seu amor o fez perseverar. Isso nos lembra que nem sempre as bênçãos de Deus vêm rápido; às vezes envolvem longos períodos de esforço e paciência. Jacó poderia ter desistido ou tentado um atalho pecaminoso, mas ele honrou o compromisso. A narrativa nos diz que, se algo vale realmente a pena (no caso, Raquel como esposa amada), vale a pena sacrificar e esperar. Esse princípio contrasta com a impaciência comum em nossos dias nos relacionamentos e objetivos pessoais. Terceiro, a história ressalta a presença de Deus nas adversidades. Quando Jacó saiu de Canaã, Deus lhe prometeu presença e cuidado (28:15). Em Harã, apesar de enfrentar enganos e dificuldades, essa promessa permanecia. Deus não impediu que Jacó enfrentasse problemas – pelo contrário, os problemas fizeram parte do plano de Deus para lapidá-lo –, mas não o abandonou. Jacó mais tarde reconheceria que Deus esteve com ele todo aquele tempo (Gn 31:42). Assim também, o crente pode passar por tribulações, até colhendo consequências de erros, mas se é filho do concerto de Deus, pode confiar que Deus está presente e agindo para o bem em meio a tudo (Rm 8:28). As palavras de Jesus, “Eis que estou convosco todos os dias” (Mt 28:20), e a promessa de Hebreus 13:5, “Nunca te deixarei”, são ecos da promessa feita a Jacó – e a fidelidade divina garantiu que Jacó não fosse destruído pelas provações, mas sim aperfeiçoado por elas. Quarto, somos levados a refletir sobre favoritismo e suas dores. Jacó amou Raquel e desprezou Lia – e essa preferência trouxe grande sofrimento a Lia (e mais tarde aos próprios filhos, pois o favoritismo continuará na próxima geração, com Jacó favorecendo José, filho de Raquel). A parcialidade no amor, seja em casamentos, seja entre filhos, fere profundamente os envolvidos e é fonte de amargas contendas. A Escritura nos adverte contra tal postura (Tg 2:1, quanto a favoritismo na comunidade; Ef 6:4, quanto a provocação de filhos, etc.), e a história de Jacó mostra os tristes frutos da falta de amor equilibrado. Em contraste, vemos em Deus um Pai que, embora escolha pessoas para propósitos específicos, ama Seus filhos com justiça e compaixão, atentando para os oprimidos – como fez com Lia. Aliás, a compaixão de Deus pelos “não amados” é uma última aplicação tocante: Lia, sentindo-se rejeitada, voltou-se ao Senhor (cf. os nomes que dá a seus filhos refletindo sua dor e esperança em Deus, 29:32-35). Deus a honrou ouvindo seu clamor. Isso nos consola a todos que já experimentamos desprezo ou solidão: Deus vê e cuida (Gn 29:31). Ele pode transformar situações dolorosas em canais de bênção inesperada. Afinal, foi do ventre da desprezada Lia que veio Judá, e séculos depois, Jesus Cristo – Aquele que pessoalmente demonstrou amor por todos, inclusive pelos marginalizados e rejeitados.
Em suma, a exposição de Gênesis 29:1-30 nos revela um Deus soberano que escreve certo por linhas tortas da humanidade. Jacó chegou a Harã com a promessa de Deus ecoando em seu coração, e essa promessa guiou cada acontecimento – os bons e os maus. Deus cumpriu Sua palavra: deu a Jacó família e prosperidade, mas juntamente trabalhou o caráter de Seu servo através de provações. Como comenta um estudioso, “Deus não foi frustrado pelo logro; ao contrário, usou-o para cumprir Seu plano”. O capítulo começa com Jacó exultante no amor e termina com Jacó submisso à disciplina, porém em ambos os casos, debaixo do olhar fiel do Senhor. Jacó entrou em Padã-Arã como um foragido enganador e sairá, anos depois, como um patriarca enriquecido e amadurecido – agora chamado Israel, aquele que luta com Deus e prevalece pela graça. Para nós, fica a certeza de que Deus está conosco em nossas jornadas; Ele pode nos conduzir por caminhos difíceis, mas ali forjará em nós paciência, fé e humildade. E mesmo quando falhamos, Ele permanece fiel, corrigindo-nos em amor e usando até nossos tropeços para cumprir propósitos maiores. Jacó, Lia e Raquel nos ensinam sobre amor, pecado, perdão e providência. E acima de tudo, esse relato prepara terreno para o crescimento do povo de Deus – das tribos de Israel virá a salvação ao mundo. Nas palavras de um sermão contemporâneo: “Deus estava desenvolvendo Sua família; a família de Jacó não era apenas dele, era primariamente de Deus – a família através da qual Deus traria salvação ao mundo”. Assim, mesmo em meio a enganos humanos, a mão divina tece a história da redenção, provando que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5:20).




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