top of page

Não é bom que o homem esteja só | Gênesis 2:16-18

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 22 de ago.
  • 8 min de leitura

ree

Aqui encontramos dois pronunciamentos divinos de grande importância. Nos versículos 16–17, Deus estabelece o primeiro mandamento/proibição da Bíblia, e no versículo 18 Deus faz a primeira declaração de que algo “não é bom”, introduzindo o propósito de criar a mulher. Esses versículos revelam aspectos centrais do caráter de Deus e da condição humana: Deus dá ao homem amplas bênçãos com uma restrição para seu bem, e Deus reconhece a necessidade relacional do ser humano.


No texto, depois de colocar Adão no jardim e lhe confiar a tarefa de cultivá-lo, “ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: ‘De toda árvore do jardim comerás livremente; mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que dela comerdes, certamente morrerás.’” (v.16–17). Veja que o mandamento inicia enfatizando a liberdade: “podes comer de todas as árvores” – Deus concede abundância de opções e liberdade para desfrutar. A proibição recai sobre apenas uma árvore específica. A forma da proibição em hebraico é enfática: “certamente morrerás” traduz uma construção (infinitivo absoluto + verbo) que literalmente seria “morrendo morrerás”, modo típico de expressar certeza e intensidade. Equivale a “com toda a certeza morrerás”. Essa linguagem aparece em contextos de juramento divino ou sentença real, indicando a seriedade solene da declaração. Assim, longe de ser uma ameaça vazia, Deus está estabelecendo um decreto: a morte entrará se o homem desobedecer. Note-se também a construção “no dia em que dela comeres” – alguns discutem se significa morte imediata naquele mesmo dia. A expressão hebraica beyôm às vezes pode ter sentido de “quando” (indefinido), mas geralmente reforça a ideia de consequência certa e breve. De fato, Adão e Eva não caíram mortos fisicamente no momento do pecado; porém, naquele dia algo essencial morreu – a comunhão plena com Deus, a inocência, e iniciou-se o processo de morrer (a entrada da mortalidade, Gn 3:19). Deus não estava enganando: a sentença da morte passou a valer desde o ato da desobediência. Podemos dizer que espiritualmente morreram na hora (separação de Deus) e fisicamente começaram a morrer, embora a execução final tenha sido adiada pela misericórdia (e Adão viveu muitos anos). Em todo caso, o aviso divino é claro em estabelecer o princípio de obediência = vida, desobediência = morte. Importante observar: o estilo do mandamento lembra a estrutura das futuras leis bíblicas – há um comando (“não comerás”) seguido de uma cláusula de motivo/pena (“pois... morrerás”), similar às formulações legais da Torá. Deus está, assim, agindo como Legislador e também Juiz, deixando Adão ciente das consequências.


Teologicamente, esse mandamento ressalta a bondade de Deus e a seriedade do pecado. Deus primeiro afirma: “coma livremente de tudo”. Não era necessário comer do único fruto proibido – era uma questão de confiar na provisão e na sabedoria de Deus. Ao proibir só aquela árvore, Deus estava ensinando a Adão submissão e : ele deveria reconhecer que nem tudo era apropriado ao homem e que a definição do bem e do mal cabia a Deus. A punição severa (morte) mostra que transgredir esse limite seria desafiar o próprio Autor da vida, resultando em separação fatal da fonte da vida. Em suma, a estrutura do Éden era aliança: Deus dá tudo generosamente, e o homem deve obedecer a uma condição específica. Infelizmente, sabemos que Adão falhou nesse teste, mas aqui, no estado original, fica estabelecido o princípio de que a vida humana floresce debaixo da obediência à palavra de Deus, e se definha sob a rebeldia.


Passando ao versículo 18, a cena muda da proibição para a provisão que Deus vai fazer. “Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea.” Esta frase é surpreendente e cheia de ternura divina. Até agora, em Gênesis 1, repetidamente Deus viu que tudo era “bom” e ao final “muito bom” (Gn 1:31). Agora, antes da Queda, Deus identifica algo “não bom”: a solidão do homem. Isso não significa que havia algum erro na criação, mas que o projeto divino ainda não estava completo – o homem, sozinho, não refletia plenamente a imagem de Deus nem podia cumprir totalmente os propósitos dados (como encher a terra e governá-la). O fato de Deus “dizer” isso (possivelmente como um solilóquio divino, como em “façamos o homem” de Gn 1:26) nos mostra seu cuidado: Deus se importa com o bem-estar emocional e relacional do ser humano. Adão não percebeu primeiro sua solidão; foi Deus quem tomou a iniciativa de supri-la. Isso revela Deus como um Pai amoroso que deseja a plenitude da alegria humana. A expressão “não é bom que o homem esteja só” tem ecoado através das eras, fundamentando a instituição do casamento e, de forma geral, a natureza social do ser humano. Fomos criados para o relacionamento – amizade, família, comunidade – e principalmente para a união conjugal, que é um reflexo único da parceria pretendida na criação.


Deus então anuncia: “Far-lhe-ei uma auxiliadora idônea.” Cada palavra aqui é digna de nota. “Auxiliadora” (heb. ʿēzer) não denota inferioridade; pelo contrário, ʿēzer é frequentemente usado para o auxílio vindo do próprio Deus (por exemplo, “Deus é o nosso auxílio”, Sl 33:20). Significa alguém que fornece ajuda onde o outro não consegue sozinho. Adão era insuficiente em si mesmo – precisava de ajuda correspondente. O texto adiciona “idônea” a essa auxiliadora. O hebraico diz literalmente ʿēzer kěnegdô, algo como “auxiliadora como diante dele” ou “à sua altura, que lhe corresponda”. A ideia é de uma ajudadora equivalente, adequada, complementar. Não se trata de um servo subordinado, mas de uma parceira que está face a face com ele, do mesmo nível, preenchendo o que lhe falta. Como bem observou um comentarista antigo, se Deus quisesse alguém inferior a Adão, teria tomado dos seus pés; se alguém superior, da cabeça – mas tomou da costela, do lado, para ser companheira ao lado dele (essa citação se alinha com a famosa reflexão de Matthew Henry; ver comentários do próximo bloco). Em outras palavras, auxiliadora idônea = parceira complementar. Isso estabelece a igualdade fundamental de homem e mulher em valor e humanidade, ao mesmo tempo reconhecendo que juntos eles formam um par melhor do que isoladamente. A mulher supriria a carência relacional de Adão e compartilharia com ele a tarefa de governar a criação (Gn 1:28 fala de domínio dado ao homem e à mulher). Nenhum animal poderia cumprir esse papel – apenas outro ser humano, feita da mesma “matéria” e essência.


É interessante que Deus não cria a mulher imediatamente após dizer isso. Em vez disso, os versículos seguintes (que serão comentados na próxima seção) mostram Deus formando animais e trazendo-os a Adão, quase como uma lição objetiva para que o homem conscientize-se de sua necessidade. Essa “demora” em dar a mulher aumenta a expectativa e destaca a preciosidade do presente que Deus está para conceder. Mas desde já o narrador nos deixa saber a intenção divina: a solidão do homem será resolvida pela instituição do casamento, e isso é algo planejado pelo Criador desde o princípio.


Esses versículos nos oferecem aplicação em duas áreas: nossa relação com Deus em obediência e nossas relações humanas em busca de companhia.


Primeiramente, consideremos o mandamento de Deus e a advertência sobre a árvore proibida. Aqui vemos que obedecer à palavra de Deus é questão de vida ou morte. Embora hoje não tenhamos um “fruto proibido” literal para evitar, Deus nos dá mandamentos claros nas Escrituras que requerem nossa submissão. A essência do teste do Éden foi: O homem confiaria no caráter de Deus e se contentaria com tudo que Deus lhe deu, abstendo-se do único mal? Infelizmente Adão duvidou e transgrediu. Agora, cada um de nós enfrenta escolhas semelhantes diariamente – confiamos que os caminhos de Deus conduzem à vida? Ou acreditamos na mentira de que desobedecer nos trará algum ganho? A Palavra diz: “há caminho que ao homem parece direito, mas ao cabo dá em morte” (Pv 14:12). Portanto, cada mandamento do Senhor visa nosso bem. Ele nos cerca de “árvores permitidas” – tantas bênçãos e liberdades – e aponta “não toques” em certas coisas que nos feririam (mesmo que pareçam agradáveis ao paladar!). Hoje, por exemplo, Deus nos diz que sexo é bom no casamento, mas fora dele é destrutivo; diz que dinheiro é bênção se usado com honestidade, mas ganho desonesto traz ruína; orienta-nos a falar a verdade em amor, e proíbe mentira, maledicência, etc. Creremos que violar essas ordens traz morte? Ou cairemos na conversa da serpente que sussurra “Certamente não morrerás”? Que possamos levar a sério a santidade de Deus e a seriedade do pecado. A boa notícia é que, se por um lado “o salário do pecado é a morte”, “o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus” (Rm 6:23). Adão falhou, e nós também falhamos muitas vezes – mas Jesus cumpriu perfeitamente a vontade do Pai e depois tomou sobre si a “morte” que merecíamos por nossas desobediências. Agora, em Cristo, obedecemos não para ganhar vida (pois Ele já nos deu vida), mas obedecemos por amor e gratidão, sabendo que seus mandamentos não são pesados e resultam em bênção. Confie em Deus o suficiente para obedecê-lo mesmo quando você não entende completamente o “porquê” de alguma proibição. A fé genuína se prova na submissão. Lembremos: a verdadeira liberdade existe dentro dos limites seguros que Deus estabelece.


Em segundo lugar, o versículo 18 nos ensina sobre a importância dos relacionamentos. Deus nos fez para a comunhão. Nenhum de nós foi projetado para viver isolado ou solitário. Isso se aplica de forma especial ao casamento – instituído pelo próprio Deus para ser a união complementar de um homem e uma mulher, suprindo companhia íntima, ajuda mútua e formando base para a família. Se você é casado, valorize seu cônjuge como presente de Deus para que você não esteja só. Esforce-se por cultivar amizade, parceria e apoio mútuo em seu casamento, pois essa era a intenção do Criador desde o princípio. Lembre-se de que “auxiliadora idônea” implica caminhar lado a lado – marido e esposa trabalhando juntos, cada um contribuindo com seus dons, respeitando-se como iguais diante de Deus. O homem não deve enxergar a esposa como serva inferior, nem a esposa desprezar o marido; um foi feito para o outro, em amor e honra recíprocos.


Para os solteiros, esse texto também traz lições: embora nem todos se casem (Jesus e Paulo, por exemplo, foram solteiros realizando plenamente o plano de Deus em suas vidas), ninguém deve viver em isolamento completo. Todos precisamos de comunidade – amigos chegados, família da fé, irmãos e irmãs com quem compartilhar a jornada. Se você sente solidão, saiba que Deus se importa com isso – “não é bom que o homem esteja só”. Peça a Ele graça para desenvolver relacionamentos significativos. A igreja é um lugar onde Deus coloca solitários em família (Sl 68:6). Esteja aberto a conectar-se com pessoas piedosas, servir e ser servido em amor. E lembre-se de que, mesmo com amigos ou cônjuge, a companheirismo humano tem limites – somente uma relação viva com Deus preenche nosso vazio mais profundo. Adão tinha Deus e mesmo assim precisava de Eva; hoje nós precisamos de Deus e de pessoas. Cultive ambos os níveis de relacionamento: vertical com o Senhor e horizontal com o próximo.


Por fim, ao olhar para a iniciativa de Deus em prover uma esposa para Adão, vemos que Deus supre nossas necessidades de maneiras perfeitas e no tempo devido. Talvez você esteja aguardando em oração por um(a) companheiro(a) ou por amigos verdadeiros. Confie no Senhor – Ele sabe do que você precisa e se importa com seu “não é bom”. Enquanto espera, permita que Deus trabalhe em você e através de você na vida de outros que também possam estar se sentindo sós. Muitas vezes, a resposta de Deus para a solidão de alguém pode ser você. Seja intencional em estender amizade, incluir pessoas, exercitar hospitalidade. Dessa forma, vivemos o propósito divino de que ninguém caminhe sozinho. Em suma: Valorize e invista nos relacionamentos que Deus lhe deu, obedecendo a Deus em amor – assim experimentaremos a “vida” abundante que Ele planejou, evitando a “morte” do isolamento e do pecado.

Comentários


bottom of page