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Noé e a esperança profética | Gênesis 5:25–32

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 26 de ago.
  • 7 min de leitura
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A genealogia antediluviana chega agora à sua conclusão, apresentando os personagens que farão a transição para a próxima grande narrativa bíblica: Noé e o Dilúvio. Os versos 25–31 descrevem Matusalém e Lameque (pai de Noé), e o verso 32 menciona os filhos de Noé. Vemos também, de maneira especial, a primeira “profecia” humana registrada desde Adão – as palavras proferidas por Lameque ao dar nome a Noé, no versículo 29. Vamos por partes:


Matusalém (Metusalá) – Filho de Enoque, Matusalém é conhecido por ser o homem com o registro de vida mais longo na Bíblia: 969 anos (v.27). Seu nome provavelmente significa "Homem do dardo" ou "Homem de Selá". Há discussões quanto à etimologia; uma sugestão é que se componha de mátu (homem, em acádico) + shalach (enviar, em hebraico), dando ideia de “homem enviado” ou até “quando ele morrer, será enviado” (embora esta última interpretação seja mais homilética do que filológica). De qualquer forma, a Escritura não destaca nada sobre Matusalém exceto sua idade impressionante. Curiosamente, fazendo as contas das cronologias, percebemos que Matusalém morreu no ano do Dilúvio. Se Noé tinha 600 anos quando veio o Dilúvio (Gn 7:6), e Noé nasceu quando Lameque tinha 182 (v.28) e Lameque nasceu quando Matusalém tinha 187 (v.25), então no ano do Dilúvio Matusalém teria precisamente 969 anos – a mesma idade informada de sua morte. Isso levou muitos a conjecturar que Matusalém morreu pouco antes do Dilúvio ou até mesmo pereceu nele. De todo modo, podemos enxergar a longa vida de Matusalém como um sinal da longanimidade de Deus – Ele adiou o juízo enquanto aquela geração, filho de Enoque, estivesse viva, talvez honrando a fé de Enoque. Após quase um milênio de extensão de graça, o juízo veio logo depois da partida de Matusalém.


Lameque (filho de Matusalém) – Com Lameque (da linhagem de Sete) voltamos a um nome que também apareceu na linhagem de Caim. Para evitar confusão, a Bíblia nos dá informações adicionais sobre cada Lameque: o Lameque de Caim tinha esposas chamadas Ada e Zilá e proferiu uma poesia de vingança (Gn 4:19-24); já o Lameque setita tem uma esposa não mencionada pelo nome aqui, mas sabemos que ele vive 777 anos e pronuncia palavras de esperança quanto ao seu filho. Essas diferenças evitam que sejam confundidos. Lameque gerou seu filho Noé aos 182 anos (v.28) e depois viveu mais 595 anos, totalizando 777 anos de vida (v.31). O número 777 é notável – talvez uma marca de completude ou graça perfeita (em contraste com o 777% de vingança que Lameque cainita alegou para si em Gn 4:24). De qualquer forma, é poético que o pai de Noé tenha vivido exatamente esse número “tri-perfeito”, sugerindo que sua vida fechou um ciclo ordenado antes do caos do Dilúvio.


Noé (Noach) – Aqui somos introduzidos a Noé, cujo nome é explicado por seu pai Lameque. Diz o versículo 29: "e chamou o seu nome Noé, dizendo: Este nos consolará acerca de nossas obras e do trabalho de nossas mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou." Esta é uma declaração profética de Lameque. Ele olha para seu filho recém-nascido e, inspirado (talvez pelo Espírito Santo, embora o texto não o diga explicitamente), declara uma palavra de esperança. Vamos analisar os elementos dessa profecia e nome:


  • O nome Noé (Noach em hebraico) soa como a palavra para “descanso/repouso” e está também relacionado ao verbo “consolar/aliviar” (nacham, parecido em som com Noach). Lameque faz um jogo de palavras ao dizer "Este nos consolará...". Em hebraico, a frase “nos consolará” é yenachamenu, que tem a raiz nacham (consolar) e faz eco ao nome Noach. É como se ele dissesse: “Este nos trará noach (descanso) de nosso trabalho...”. O nome e a frase poética estão ligados por aliteração e rima, como o comentarista observa: Noach (Noé) rima com noachamenu (“nos consolará”) e com partes da expressão “nosso trabalho” (heb. ma’aseinu). Essa construção poética indica que Lameque deliberadamente nomeou o filho como presságio de alívio.

  • Lameque menciona o “trabalho pesado de nossas mãos, causado pela terra que o Senhor amaldiçoou”. Isso claramente faz referência à maldição que Deus lançou sobre a terra após o pecado de Adão: “maldita é a terra por causa de ti; em fadigas obterás dela o sustento... No suor do rosto comerás o teu pão” (Gn 3:17-19). Ou seja, Lameque – como agricultor e trabalhador do solo, assim como toda a humanidade – sentia no dia-a-dia o peso do pecado original: solo pouco cooperativo, cardos e espinhos, suor e cansaço. Ao ver o nascimento de Noé, ele expressa uma esperança ardente de reversão ou alívio dessa maldição. É comovente notar que, dentre todos os males possíveis, Lameque destaca o sofrimento do trabalho na terra amaldiçoada. Isso sugere que a humanidade daqueles dias, mesmo a piedosa, sentia intensamente a frustração de viver num mundo quebrado, ansiando por restauração.

  • O que Lameque esperava de Noé? A expressão “nos consolará/acerca de nossas obras e do trabalho...” implica que Noé traria algum tipo de alívio, descanso ou conforto em meio ao labor penoso. Em parte, a expectativa de Lameque cumpriu-se: Noé seria usado por Deus para inaugurar uma nova era após o Dilúvio. Após o Dilúvio, em Gênesis 8:21, o Senhor declara: "Nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do homem..." e em 9:20 Noé é descrito como “lavrador” que planta uma vinha, sinalizando a continuidade da vida agrícola. Assim, de certo modo, Noé trouxe alívio: ele salvou a raça humana e os demais seres do completo extermínio, e através dele Deus efetivamente renovou a bênção à terra (Gn 9:1-3) mitigando a maldição original (apesar de não a remover totalmente). A terra pós-diluviana ainda era a terra caída, mas havia a promessa divina de estabilidade (Gn 8:21-22) – um consolo para os que labutavam.

  • Por outro lado, há também um tom profético-messiânico nessa esperança. É como se Lameque anelasse pelo descendente prometido em Gn 3:15 que finalmente reverteria as maldições. Não sabemos quão clara era a compreensão dele, mas suas palavras certamente apontam para além de Noé. Noé foi um tipo de “salvador” temporário, mas não eliminou o pecado (logo após o Dilúvio, Noé mesmo cai em embriaguez, e a humanidade volta a pecar). O verdadeiro descanso e consolação para a maldição da terra e para o labor humano viria séculos depois, em Cristo, o descendente final que triunfaria sobre o pecado e a morte. Jesus é aquele que convida: “Vinde a mim... e eu vos aliviarei ... e encontrareis descanso (anapausis, equivalente a noach) para as vossas almas” (Mateus 11:28-29). Em Cristo, temos consolo e descanso do fardo do pecado e das maldições, antevendo os “novos céus e nova terra” onde “já não haverá maldição” (Ap 22:3). Assim, as palavras de Lameque reverberam através da história bíblica como uma profecia de esperança que alcança seu clímax em Jesus, o qual nos dá alívio do trabalho inútil (1Co 15:58) e do cansaço de viver em um mundo caído.


Voltando ao texto, Gênesis 5:30-31 registra que Lameque teve outros filhos e filhas (portanto Noé tinha irmãos, embora nenhum se juntou a ele na arca, pelo visto já poderiam ter falecido ou descrido) e morreu aos 777 anos. Aqui se encerra a genealogia vertical de Adão até Noé. O versículo 32 serve como transição: “Era Noé da idade de 500 anos, e gerou a Sem, Cam e Jafé.” Diferente dos antecessores, Noé não é dito ter gerado filhos aos 30, 100 ou 180 anos – somente aos 500 nos é informado de seus três filhos. Isso pode indicar que apenas por volta dos 500 anos Noé veio a ter sua prole (o que é tardio comparado aos outros), ou apenas ressalta que quando ele tinha 500 anos sua família nuclear estava completa com três filhos homens. De fato, em Gênesis 6:10 e 7:6 vemos que Noé tinha seus três filhos já adultos (provavelmente na faixa dos 100 anos) quando veio o Dilúvio. É possível que Sem, Cam e Jafé sejam mencionados fora de ordem de nascimento (Sem é citado primeiro por ser o ancestral do povo de Deus, Israel; cf. Gn 10:21 onde há discussão sobre Sem ou Jafé ser o mais velho). Em todo caso, Gênesis 5:32 apresenta Noé como pai de três filhos, ecoando um padrão que vimos com Adão (que teve três filhos nomeados: Caim, Abel, Sete) e que veremos com Terá (pai de Abraão, Naor e Harã). Este arranjo literário indica que um novo capítulo da história começará envolvendo esses filhos – no caso, o capítulo do Dilúvio e, posteriormente, das nações originadas dos três filhos de Noé.


É interessante notar que o capítulo 5 começa com “este é o livro das gerações de Adão” e, tecnicamente, deveria terminar antes de introduzir a próxima toledot. Alguns estudiosos, como Cassuto, argumentam que o trecho de Gênesis 6:1-8 (sobre a corrupção da humanidade e a decisão divina de enviar o Dilúvio) faz parte da seção iniciada em 5:1. Isso significa que, narrativamente, Noé e seus filhos são o fecho da era antediluviana e a ponte para a nova era pós-diluviana. O fato de termos três filhos nomeados sinaliza que a história deixará de ser simplesmente genealógica e passará a ser histórica/narrativa (como ocorreu em Gênesis 4 com os descendentes de Caim). De fato, Gênesis 6–9 focará em Noé e seus filhos atravessando o Dilúvio. Assim, a genealogia de Adão cumpre seu papel: ela liga o primeiro homem, Adão, ao novo “cabeça” da humanidade, Noé. Adam foi o fundador da humanidade pré-dilúvio; Noé será como que o “fundador” da humanidade pós-dilúvio, o pai de todos os povos atuais. Essa conexão reforça que há continuidade no plano de Deus: o mundo será julgado, mas a linhagem da promessa (a semente da mulher) será preservada em Noé para dar seguimento ao propósito divino de redenção.


Aliás, havia uma certa expectativa otimista implícita nessa linhagem: os justos esperavam dias melhores, talvez até uma restauração completa (como se nota no anseio de Lameque). Gênesis 5, com toda a sua solenidade, quase passa um tom de “calma antes da tempestade” – longas vidas, aparentemente prosperidade e fé preservada. Porém, como o capítulo 6 revelará, a maioria da humanidade se corrompia, e o próprio Lameque, ao morrer, não viu seus ideais realizados plenamente. O consolo veio apenas parcial e dolorosamente (via Dilúvio). Lameque disse “este nos consolará”, mas em vez de confortar a todos, Noé salvou apenas a si e sua família. Isso nos lembra que os planos de Deus podem se cumprir de forma diferente de nossas expectativas humanas, porém cumprem-se perfeitamente dentro do propósito maior que Ele tem.

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