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Moisés fala novamente a Faraó | Êxodo 6:28-7:13

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 30 de set.
  • 27 min de leitura
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I - Introdução e Contextualização


Ponto de Partida: O Impasse Narrativo


A narrativa do livro de Êxodo atinge um ponto de profunda crise e desânimo nos capítulos 5 e 6. Após a teofania na sarça ardente e o comissionamento divino, Moisés e Arão se apresentam diante de Faraó com a ousada ordem de YHWH: "Deixa ir o meu povo" (Êx 5:1). A resposta do monarca egípcio não é apenas uma recusa, mas um escárnio que questiona a própria identidade e autoridade do Deus de Israel: "Quem é o SENHOR, para que eu ouça a sua voz e deixe ir Israel? Não conheço o SENHOR, nem tampouco deixarei ir Israel" (Êx 5:2). O resultado imediato dessa primeira confrontação é desastroso. Longe de iniciar a libertação, a intervenção de Moisés provoca uma intensificação brutal da opressão. Os capatazes egípcios passam a exigir a mesma cota de tijolos, mas sem fornecer a palha necessária, forçando os hebreus a um trabalho exaustivo e desesperador (Êx 5:7-11).   


Esse agravamento da servidão leva a uma fratura na liderança de Moisés. Os próprios oficiais israelitas, açoitados e humilhados, confrontam Moisés e Arão, acusando-os de serem a causa de seu sofrimento intensificado: "O SENHOR olhe para vós outros e vos julgue, porquanto nos fizestes odiosos aos olhos de Faraó e aos olhos de seus servos, dando-lhes a espada na mão para nos matar" (Êx 5:21). Rejeitado pelo poder opressor e agora culpabilizado por seu próprio povo, Moisés experimenta uma profunda crise de fé e vocação. Ele se volta para Deus não com uma oração de súplica, mas com uma queixa angustiada que beira a acusação: "Senhor, por que afligiste este povo? Por que me enviaste? Pois, desde que me apresentei a Faraó, para falar-lhe em teu nome, ele tem maltratado este povo; e tu, de nenhuma sorte, livraste o teu povo" (Êx 5:22-23). Este momento de aparente fracasso, dúvida e desolação constitui o pano de fundo indispensável para a compreensão da poderosa intervenção divina que se segue.   


A Resposta Divina e a Reafirmação da Aliança


É em resposta direta a essa crise que Deus se revela de maneira ainda mais profunda. O início de Êxodo 6 funciona como uma resposta teológica abrangente à angústia de Moisés. Deus não oferece uma simples palavra de conforto, mas uma reafirmação solene de Sua identidade pactual e de Seu propósito soberano. Ele começa com uma promessa de ação iminente: "Agora verás o que hei de fazer a Faraó; pois, por mão poderosa, os deixará ir" (Êx 6:1).   


Em seguida, Deus ancora Sua promessa na profundidade de Seu nome pactual, YHWH. Ele explica que, embora tenha se manifestado aos patriarcas como El-Shaddai (Deus Todo-Poderoso), a plena implicação de Seu nome YHWH – o Deus que É, que cumpre Suas promessas na história – seria agora revelada através da redenção de Israel (Êx 6:2-3). Esta revelação não é meramente informativa; é a base da certeza da libertação. Deus reafirma a aliança patriarcal e declara Seu plano redentor em uma série de verbos poderosos: "vos tirarei", "vos livrarei", "vos resgatarei com braço estendido e com grandes juízos" (Êx 6:6). Essa reafirmação não é apenas um consolo para a fé vacilante de Moisés, mas o fundamento teológico para toda a sequência de eventos que está prestes a se desenrolar.   


Apresentação da Perícope (Êxodo 6:28-7:13)


É neste contexto de crise, reafirmação e promessa que a perícope de Êxodo 6:28-7:13 se insere. Este bloco textual funciona como uma dobradiça literária e teológica na macroestrutura do livro. Ele serve como a conclusão formal da longa seção sobre a vocação e o comissionamento de Moisés (Êxodo 3-6), uma seção marcada pela relutância e pelo sentimento de inadequação do profeta. Ao mesmo tempo, a perícope inaugura de forma decisiva a épica narrativa do confronto direto com Faraó, a sequência dos "atos poderosos" de Deus, comumente conhecidos como as Dez Pragas (Êxodo 7-12).   


Esta passagem, portanto, não é uma mera repetição. Ela é a recomissão final de Moisés e Arão, agora solidamente fundamentada na revelação do nome YHWH e na promessa explícita de juízo. Funciona como um prólogo estruturado que estabelece a hierarquia de autoridade, declara o propósito teológico do confronto e antecipa, em um confronto em miniatura, o padrão que se repetirá ao longo das pragas. É o momento em que a narrativa pivota da promessa para a execução, da palavra de Deus para a ação de Deus na história.


II - Estrutura Literária e Análise Narrativa


A Estrutura de Inclusão e a Função da Genealogia


Uma análise atenta da estrutura literária de Êxodo 6 revela um arranjo sofisticado e intencional, conhecido como inclusão ou estrutura de moldura, que serve a um propósito teológico crucial. A narrativa da recomissão de Moisés é interrompida por uma genealogia, e essa interrupção é emoldurada pela repetição quase idêntica da objeção de Moisés. A estrutura pode ser delineada da seguinte forma:


  • A: Nova Comissão e Objeção de Moisés (Êx 6:10-12): O SENHOR ordena a Moisés que fale a Faraó. Moisés responde com uma objeção baseada em sua ineficácia: "Eis que os filhos de Israel não me têm ouvido; como, pois, me ouvirá Faraó? Também eu sou incircunciso de lábios".   


  • B: A Genealogia de Moisés e Arão (Êx 6:14-27): A narrativa é pausada para a inserção de uma lista genealógica que traça a linhagem dos filhos de Jacó, com foco especial na tribo de Levi, culminando na identificação formal de Moisés e Arão como filhos de Anrão e Joquebede.   


  • A': Repetição da Comissão e Objeção de Moisés (Êx 6:28-30): A narrativa principal é retomada, recapitulando a ordem de Deus para Moisés falar a Faraó. A seção termina com a mesma objeção de Moisés: "Eis que eu sou incircunciso de lábios; como, pois, me ouvirá Faraó?".   


Longe de ser uma redundância resultante de uma edição desajeitada de múltiplas fontes, essa estrutura de inclusão é um dispositivo literário deliberado. O fracasso da primeira missão em Êxodo 5 e a subsequente rejeição pelos israelitas (Êx 6:9) colocaram em xeque não apenas a confiança de Moisés, mas sua própria autoridade como líder. A genealogia, portanto, funciona como um recredenciamento formal e público de Moisés e Arão. Ela interrompe a ação para estabelecer, de forma documental e incontestável, sua linhagem levítica e, por conseguinte, sua legitimidade como os agentes escolhidos por YHWH.   


Ao posicionar a repetição da objeção de Moisés imediatamente após essa legitimação genealógica, o narrador constrói um poderoso argumento teológico. A fraqueza e a inadequação de Moisés ("incircunciso de lábios") persistem. Sua capacidade de liderar não foi magicamente alterada pela confirmação de sua linhagem. No entanto, a narrativa prossegue. A estrutura literária, portanto, serve para dissociar a autoridade da missão da competência humana. A legitimidade de Moisés e Arão não reside em sua eloquência ou autoconfiança, mas unicamente na eleição soberana de Deus, agora formalmente atestada através de sua descendência divinamente ordenada. A estrutura literária sublinha que a autoridade para a redenção emana da vocação divina, não da habilidade humana.


Êxodo 6:28-7:13 como Prólogo da Confrontação


Esta perícope funciona como uma unidade de transição cuidadosamente elaborada, um prólogo em duas partes que prepara o leitor para a longa e dramática sequência das pragas.


A primeira parte, Êxodo 6:28-7:7, funciona como uma "prévia da sequência da prova da presença". Esta seção estabelece o protocolo divino para o confronto. Primeiro, ela resolve definitivamente a objeção de Moisés ao estabelecer uma clara hierarquia de autoridade: Deus falará a Moisés, que atuará com autoridade divina ("como Deus") perante Faraó, e Arão servirá como o porta-voz ("profeta") de Moisés (7:1-2). Segundo, ela declara o propósito teológico central de toda a empreitada: a manifestação do poder de Deus através de "grandes juízos" para que "os egípcios saberão que eu sou o SENHOR" (7:4-5).


A segunda parte, Êxodo 7:8-13, atua como um "prólogo aos dez atos poderosos". Este episódio é um confronto em miniatura, um microcosmo que antecipa o padrão rítmico de todo o ciclo das pragas. Esse padrão consiste em cinco etapas:   


  1. O Comando Divino: Deus instrui Moisés e Arão sobre como responder ao desafio de Faraó por um milagre.


  2. A Execução do Sinal: Arão lança sua vara, que se torna uma serpente.


  3. A Imitação Pagã: Os magos egípcios replicam o feito com suas artes ocultas.


  4. A Demonstração de Superioridade Divina: A vara de Arão engole as varas dos magos, provando o poder superior de YHWH.


  5. O Endurecimento do Coração: Apesar da evidência, o coração de Faraó se endurece, e ele se recusa a ouvir.


Essa estrutura narrativa prepara o leitor para a lógica teológica e dramática dos capítulos seguintes. A questão não será se o poder sobrenatural existe, mas qual poder é supremo. Cada praga seguirá um padrão semelhante de confronto, demonstração de poder e endurecimento, escalando a intensidade até o clímax da libertação de Israel.


III - Análise Exegética e Hermenêutica Detalhada


Êxodo 6:28-30: A Persistência da Inadequação Humana


Nesta breve retomada da narrativa, o autor bíblico reitera a comissão divina e, crucialmente, a objeção de Moisés. A repetição da frase "eu sou incircunciso de lábios" é de suma importância exegética. Esta metáfora transcende a simples noção de um defeito de fala. No léxico bíblico, o conceito de "incircuncisão" é frequentemente aplicado metaforicamente para descrever um estado de fechamento, incapacidade ou impureza espiritual. As Escrituras falam de um "coração incircunciso", que é teimoso e insensível à vontade de Deus (Dt 10:16; Jr 9:26), e de "ouvidos incircuncisos", que são incapazes de ouvir a palavra divina (Jr 6:10).   


Ao aplicar esta metáfora a si mesmo, Moisés expressa um sentimento de inadequação muito mais profundo do que sua queixa anterior em Êxodo 4:10, onde se descreveu como "pesado de boca e pesado de língua". A primeira expressão aponta para uma dificuldade funcional, uma falta de eloquência. A segunda, "incircunciso de lábios", sugere uma inaptidão quase ritual para a tarefa sagrada de ser o porta-voz do Deus Santo. Seus lábios estão "fechados", "cobertos", impróprios para transmitir a palavra divina pura.   


O contexto narrativo intensifica o peso dessa autoavaliação. A objeção é repetida após o fracasso de sua primeira audiência com Faraó e, mais dolorosamente, após a rejeição de seu próprio povo, que "não ouviram a Moisés, por causa da angústia de espírito e da dura servidão" (Êx 6:9). Moisés se encontra em um ciclo de aparente ineficácia: se seu próprio povo, desesperado por libertação, não o escuta, que chance ele teria com o monarca mais poderoso do mundo?. Sua objeção é um lamento de impotência, nascido da experiência amarga do fracasso.   


Êxodo 7:1-2: A Solução Divina – Uma Hierarquia de Autoridade


A resposta de Deus à persistente objeção de Moisés é uma obra-prima de estratégia teológica e narrativa. Deus não remove a fraqueza de Moisés, mas a contorna, estabelecendo uma estrutura de autoridade que a torna irrelevante.


A declaração central é: "Eis que te tenho posto por Deus sobre Faraó" (Êx 7:1). A exegese desta frase deve afastar qualquer noção de uma deificação literal de Moisés. A palavra hebraica ’ĕlōhîm, embora seja o termo mais comum para o Deus de Israel, possui um campo semântico mais amplo. No Antigo Testamento, ela pode designar seres celestiais (anjos) ou, crucialmente, figuras humanas investidas de autoridade divina suprema, como juízes ou governantes que representam a vontade e o juízo de Deus na terra (cf. Êx 21:6; Sl 82:1, 6). Ao constituir Moisés como ’ĕlōhîm para Faraó, YHWH o estabelece como Seu embaixador plenipotenciário. Moisés não falará com sua própria autoridade, mas com a autoridade delegada do próprio Deus, decretando juízo e salvação. Diante de Faraó, que se considerava uma divindade, Moisés personificaria um poder divino superior e irresistível.   


A segunda parte da solução divina é: "e Arão, teu irmão, será o teu profeta (naˉḇı^’, נָבִיא)". O papel fundamental de um nabi’ no Antigo Testamento é ser um porta-voz, alguém que recebe uma mensagem de uma autoridade superior e a transmite fielmente. A estrutura hierárquica é, portanto, perfeitamente clara: YHWH entrega Sua palavra a Moisés (o’ĕlōhîm), que a transmite a Arão (o nabi’), que, por sua vez, a proclama a Faraó. Esta cadeia de comando divina resolve de forma elegante e definitiva a questão dos "lábios incircuncisos" de Moisés, ao mesmo tempo que estabelece uma linha de autoridade inquestionável para o confronto que se avizinha.   


Êxodo 7:3-5: A Declaração do Propósito Soberano


Nestes versículos, Deus revela a dinâmica do confronto iminente e seu propósito último. A declaração "Eu, porém, endurecerei (’aqsˇeh, אַקְשֶׁה) o coração de Faraó" (Êx 7:3) é teologicamente densa. O verbo hebraico é qāšāh (קָשָׁה), "ser duro, obstinado", aqui no Hifil, a haste causativa, significando "farei ser duro". Esta é a primeira de três palavras distintas que a narrativa empregará para descrever o endurecimento do coração de Faraó. Como será detalhado na Seção V, a ação divina não ocorre em um vácuo moral, mas interage com a própria obstinação de Faraó, num processo judicial progressivo.   


O propósito desse endurecimento não é arbitrário. Ele serve a um objetivo maior: "e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas" (Êx 7:3). Esses atos de poder permitirão que Deus execute "grandes juízos" e liberte Seu povo (Êx 7:4). O objetivo, portanto, não é meramente punitivo, mas revelatório.


O clímax teológico e o propósito final de todo o drama são explicitados no versículo 5: "Então, os egípcios saberão que eu sou o SENHOR (YHWH), quando estender eu a mão sobre o Egito e tirar do meio deles os filhos de Israel". A libertação de Israel, embora central, é o meio para um fim ainda maior: a manifestação universal da identidade, soberania e poder incomparável de YHWH, não apenas para Israel, mas para a maior superpotência mundial da época. Este tema, o conhecimento experiencial de YHWH, ecoa e cumpre a revelação de Seu nome nos capítulos 3 e 6.   


Êxodo 7:6-7: A Resposta da Obediência e a Cronologia da Missão


A declaração concisa e poderosa do versículo 6 – "Assim fizeram Moisés e Arão; como o SENHOR lhes ordenara, assim fizeram" – marca um ponto de virada decisivo na narrativa. A longa fase de questionamentos, desculpas e relutância de Moisés, que dominou os capítulos 3, 4 e 6, chega ao fim. A partir deste ponto, a narrativa se desloca para a fase de ação e obediência resoluta. Esta simples frase encerra o arco de desenvolvimento do caráter de Moisés, de um pastor hesitante a um líder obediente, pronto para executar a comissão divina.   


Imediatamente a seguir, o texto insere uma nota cronológica precisa: "Era Moisés da idade de oitenta anos, e Arão, da de oitenta e três, quando falaram a Faraó" (Êx 7:7). Este detalhe não é trivial. No contexto cultural do Antigo Oriente Próximo, onde a expectativa de vida era significativamente menor, a idade avançada era frequentemente associada à sabedoria, dignidade e autoridade. Teologicamente, a menção de suas idades avançadas serve a um propósito profundo: sublinhar que a monumental tarefa da libertação não seria realizada pela força, vigor ou ambição da juventude, mas unicamente pelo poder de Deus operando através de instrumentos humanos que, pelos padrões do mundo, já haviam passado do seu auge. A força para a missão não viria da vitalidade humana, mas da soberania divina.   


Êxodo 7:8-13: O Confronto Inaugural de Poderes


Este episódio serve como o prelúdio direto para as pragas, estabelecendo o tema central do conflito: uma batalha de poderes. Quando Faraó exige um milagre, a vara de Arão se transforma em uma serpente. A escolha da palavra hebraica tannin (תַּנִּין) é deliberada e carregada de simbolismo. Diferente de nāḥāš, a palavra para uma serpente comum (usada no sinal para os israelitas em Êxodo 4:3), tannin denota um grande réptil, um monstro marinho ou do rio, frequentemente associado nas cosmologias do Antigo Oriente Próximo a forças primordiais do caos ou a grandes poderes imperiais. Notavelmente, o próprio Faraó é metaforicamente chamado de "o grande monstro marinho" que jaz em seus rios em Ezequiel 29:3. Além disso, o símbolo da realeza e do poder de Faraó era o Uraeus, a imagem de uma cobra Naja em sua coroa. Portanto, a transformação da vara em um tannin é um desafio direto e simbólico à soberania e ao poder do próprio Faraó.


A capacidade dos magos egípcios de replicar o sinal é crucial para a narrativa. Isso estabelece que o conflito não é entre o natural e o sobrenatural, mas entre diferentes fontes de poder sobrenatural. A questão não é se a magia existe, mas qual divindade detém o poder supremo. A resolução é inequívoca e visualmente poderosa: "mas a vara de Arão devorou as varas deles" (Êx 7:12). Este ato não é uma simples superação; é uma aniquilação simbólica. O poder de YHWH não apenas se mostra superior, mas consome e anula completamente o poder dos deuses e das artes ocultas do Egito. Este confronto inicial estabelece o precedente para as pragas: YHWH demonstrará Sua soberania não apenas por meio de milagres, mas pela subjugação sistemática dos domínios controlados pelos deuses egípcios.   


IV - Contexto Histórico-Cultural e Aspectos Arqueológicos


A Corte Real do Novo Império Egípcio


A narrativa do Êxodo se desenrola no cenário do Novo Império Egípcio (c. 1550-1070 a.C.), um período de poder, riqueza e influência imperial sem precedentes para o Egito. As capitais, como Mênfis e a recém-construída Pi-Ramsés no delta do Nilo, eram centros administrativos e religiosos monumentais. A corte do Faraó era um ambiente altamente estruturado, regido por um protocolo rígido e uma etiqueta complexa que visavam exaltar a figura divina do rei. O acesso ao Faraó era extremamente restrito, e qualquer audiência seguia rituais precisos. A audácia de Moisés e Arão, dois representantes de um povo escravizado, exigindo uma audiência e fazendo demandas diretas ao monarca, teria sido vista como uma violação chocante de toda a ordem estabelecida.   


A Teologia da Divindade do Faraó


O conceito central que sustentava o poder faraônico era sua divindade. O Faraó não era meramente um rei por direito divino; ele era considerado a encarnação terrena do deus Hórus, o filho de Osíris, e, por extensão, o filho do deus-sol Rá, a principal divindade do panteão egípcio. Como tal, ele era o mediador entre os deuses e os homens, o garantidor do Ma'at (a ordem cósmica, a verdade e a justiça) e o sustentáculo da própria vida no Egito.


Esta teologia real contextualiza a profundidade do conflito em Êxodo. A pergunta de Faraó, "Quem é YHWH?", não é uma expressão de ignorância, mas uma declaração de supremacia teológica: nenhum deus desconhecido poderia ter autoridade sobre ele, a manifestação viva de Hórus. A declaração de Deus em Êxodo 7:1, "te tenho posto por Deus sobre Faraó", é, portanto, um ataque direto e subversivo a essa ideologia. YHWH estabelece uma nova hierarquia de poder na qual Moisés, Seu representante, ocupa a posição de autoridade divina sobre o próprio Faraó.   


Os Hartummim (Magos) e a Magia Egípcia


Os "sábios e encantadores" mencionados em Êxodo 7:11 são identificados pelo termo hebraico hartummîm (חַרְטֻמִּים), que se refere a uma classe de sacerdotes-escribas de elite na corte egípcia. Eles eram conselheiros do rei, intérpretes de sonhos (como visto na história de José em Gênesis 41) e praticantes de heka, a palavra egípcia para magia, que era entendida como o poder criativo e coercitivo que os deuses usavam para governar o universo. A magia não era vista como uma superstição marginal, mas como uma ciência sagrada e uma ferramenta essencial do estado.   


Evidências textuais, como o famoso Papiro Westcar (datado do período Hicso, mas contendo histórias ambientadas no Império Antigo), fornecem paralelos culturais notáveis para o confronto em Êxodo. Este papiro narra contos de magos da corte realizando feitos extraordinários, como dar vida a um crocodilo de cera para devorar um adúltero, dividir as águas de um lago e reatar uma cabeça decapitada. Esses relatos demonstram que a ideia de magos realizando atos que manipulavam a natureza e a vida não era estranha à mentalidade egípcia. O confronto em Êxodo 7, portanto, não era visto como uma disputa entre ciência e superstição, mas como uma competição entre a heka egípcia, praticada pelos hartummim, e o poder do Deus dos hebreus.


O Simbolismo Ambivalente da Serpente


A serpente possuía um simbolismo poderoso e dualista no Antigo Egito, o que torna o sinal da vara de Arão ainda mais significativo.


  • O Uraeus e a Soberania: A imagem de uma cobra Naja ereta, conhecida como Uraeus, era o símbolo proeminente da realeza, divindade e poder soberano. Adornava a coroa do Faraó, representando a deusa Wadjet, protetora do rei, pronta para cuspir fogo contra seus inimigos. O Uraeus era o emblema da autoridade legítima e do poder de ataque do monarca.   


  • Apófis e o Caos: Em contraste, a serpente cósmica Apófis (ou Apep) era a personificação das trevas, do caos e da desordem. Era o inimigo eterno do deus-sol Rá, atacando sua barca solar todas as noites durante sua jornada pelo submundo, em uma tentativa de mergulhar a criação de volta no caos primordial.   


O milagre da vara de Arão, que se torna um tannin (um monstro serpentino) e devora as serpentes dos magos, opera em ambos os níveis simbólicos. É uma declaração visual de que o poder de YHWH subjuga e anula tanto o poder real e legítimo do Faraó (simbolizado pelo Uraeus) quanto as forças caóticas que os deuses egípcios alegavam controlar (simbolizadas por Apófis). O Deus de Israel demonstra domínio sobre toda a ordem cósmica e política do Egito.


V - Questões Polêmicas, Discussões Teológicas e Teorias


O Problema Teológico do Endurecimento do Coração


A afirmação de que Deus endurece o coração de Faraó é uma das questões teológicas mais complexas do Antigo Testamento, levantando profundas questões sobre a soberania divina, o livre-arbítrio e a justiça de Deus. Uma análise cuidadosa do texto hebraico e do padrão narrativo revela uma teologia mais nuançada do que uma simples determinação divina.


Análise dos Verbos Hebraicos


A narrativa do Êxodo utiliza três verbos distintos para descrever o endurecimento, e a escolha de cada um é significativa:


  1. qāšāh (קָשָׁה): Significa "tornar duro, obstinado, teimoso". É usado por Deus em Êxodo 7:3 ("Eu... endurecerei [’aqsˇeh] o coração de Faraó"), indicando uma ação divina que causa obstinação.


  2. kāḇēḏ (כָּבֵד): Significa "tornar pesado, insensível, obtuso". Este verbo é usado predominantemente para descrever a ação do próprio Faraó sobre seu coração (p. ex., Êx 8:15, 32; 9:34), indicando uma auto-insensibilização moral e espiritual.


  3. ḥāzaq (חָזַק): Significa "tornar forte, firme, corajoso". Este verbo é o mais ambivalente, sendo usado tanto para descrever Deus fortalecendo o coração de Faraó (p. ex., Êx 9:12) quanto para o coração de Faraó se fortalecendo por si mesmo (p. ex., Êx 7:13, 22).   


O Padrão Narrativo: Um Processo Judicial Progressivo


A distribuição desses verbos ao longo da narrativa das pragas não é aleatória. Revela um padrão teológico claro. Nas primeiras cinco pragas, o texto consistentemente atribui a ação de endurecimento ao próprio Faraó ou descreve seu coração como se endurecendo (usando kāḇēḏ ou ḥāzaq de forma reflexiva). É Faraó quem inicia o processo de resistência. Ele "torna pesado" seu coração, recusando-se a ouvir.   


A partir da sexta praga (úlceras), o texto começa a afirmar explicitamente que "o SENHOR endureceu [wayəḥazzeˉq] o coração de Faraó" (Êx 9:12). Esta mudança de agente é crucial. A ação de Deus não cria a rebelião no coração de Faraó a partir do nada. Em vez disso, ela funciona como um ato judicial. Depois que Faraó repetidamente e por sua própria vontade escolheu o caminho da obstinação, Deus intervém para "fortalecer" ou "confirmar" essa decisão, selando-o em seu caminho de rebelião para que o propósito maior de Deus – a plena manifestação de Seu poder e glória – pudesse ser cumprido. O endurecimento divino não é a causa do pecado de Faraó, mas a consequência judicial de sua persistente impenitência.

A tabela abaixo ilustra essa progressão narrativa:


Referência

Praga/Evento

Verbo Hebraico

Agente da Ação

Tradução Literal da Ação

Êx 7:13

Vara vira Serpente

ḥāzaq

Coração de Faraó

O coração de Faraó se fortaleceu/ficou firme.

Êx 7:22

1ª Praga (Sangue)

ḥāzaq

Coração de Faraó

O coração de Faraó se fortaleceu/ficou firme.

Êx 8:15

2ª Praga (Rãs)

kāḇēḏ

Faraó

Faraó tornou seu coração pesado.

Êx 8:19

3ª Praga (Piolhos)

ḥāzaq

Coração de Faraó

O coração de Faraó se fortaleceu/ficou firme.

Êx 8:32

4ª Praga (Moscas)

kāḇēḏ

Faraó

Faraó tornou seu coração pesado.

Êx 9:7

5ª Praga (Peste nos Animais)

kāḇēḏ

Coração de Faraó

O coração de Faraó se tornou pesado.

Êx 9:12

6ª Praga (Úlceras)

ḥāzaq

YHWH

YHWH fortaleceu o coração de Faraó.

Êx 9:34-35

7ª Praga (Saraiva)

kāḇēḏ / ḥāzaq

Faraó / Coração de Faraó

Faraó tornou seu coração pesado... e seu coração se fortaleceu.

Êx 10:1

8ª Praga (Gafanhotos)

kāḇēḏ

YHWH

Eu tornei pesado o seu coração.

Êx 10:20

8ª Praga (Gafanhotos)

ḥāzaq

YHWH

YHWH fortaleceu o coração de Faraó.

Êx 10:27

9ª Praga (Trevas)

ḥāzaq

YHWH

YHWH fortaleceu o coração de Faraó.

Êx 11:10

Anúncio da 10ª Praga

ḥāzaq

YHWH

YHWH fortaleceu o coração de Faraó.

A Natureza dos "Milagres" dos Magos


O confronto em Êxodo 7:11-12, onde os magos egípcios replicam a transformação da vara em serpente, levanta a questão sobre a natureza de seu poder. Duas teorias principais são propostas:


  1. Teoria da Prestidigitação ou Habilidade Natural: Esta visão sugere que os magos utilizaram truques sofisticados ou conhecimento natural. O "encantamento de serpentes" era uma arte praticada no Egito, onde os encantadores podiam induzir um estado de rigidez cataléptica em uma cobra, fazendo-a parecer uma vara, e depois despertá-la. O que Arão fez foi um milagre genuíno; o que os magos fizeram foi uma imitação habilidosa.   


  2. Teoria do Poder Demoníaco: Esta perspectiva, comum em círculos teológicos, argumenta que os magos operaram através de poder sobrenatural real, mas de origem satânica ou demoníaca. As Escrituras reconhecem a existência de "sinais e prodígios da mentira" (2 Ts 2:9) e de falsos profetas capazes de realizar grandes sinais para enganar (Mt 24:24). Nesse caso, o confronto é uma batalha espiritual direta entre o poder de Deus e as forças das trevas que sustentavam o sistema idolátrico do Egito.   


Independentemente da fonte exata do poder dos magos, o ponto teológico da narrativa permanece o mesmo: a demonstração inequívoca da superioridade absoluta do poder de YHWH. A vara de Arão engolindo as outras não é apenas uma vitória, mas um ato de aniquilação simbólica, provando que qualquer poder que o Egito possuía era insignificante diante do Deus de Israel.


VI - Doutrina Teológica (Sistemática) e Visões de Correntes Denominacionais


A passagem de Êxodo 6:28-7:13 é um locus classicus para debates teológicos fundamentais, particularmente sobre a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana, e sobre a natureza dos dons espirituais. Diferentes tradições denominacionais interpretam essas questões através de suas respectivas lentes teológicas.


Soberania Divina vs. Responsabilidade Humana


O endurecimento do coração de Faraó é o ponto central deste debate.


  • Visão Reformada/Calvinista: Para a teologia reformada, este episódio é um exemplo paradigmático da soberania absoluta de Deus. A ação de Deus em endurecer o coração de Faraó é vista como um ato de seu decreto soberano, executado para cumprir Seu propósito de glorificar a Si mesmo através de poderosos atos de juízo e redenção. O apóstolo Paulo utiliza Faraó como o principal exemplo em Romanos 9:17-18 para argumentar que Deus tem misericórdia de quem quer e endurece a quem quer. Nesta visão, a responsabilidade de Faraó por seu pecado coexiste com a soberania de Deus em decretar o evento, uma doutrina conhecida como compatibilismo.   


  • Visão Arminiana/Metodista: A teologia arminiana enfatiza o livre-arbítrio e a graça preveniente (a graça que precede a salvação e capacita uma resposta). Nesta perspectiva, Deus, em Sua presciência, sabia que Faraó resistiria livremente a todos os apelos. As repetidas oportunidades dadas a Faraó através dos sinais e advertências de Moisés eram manifestações da graça de Deus, oferecendo-lhe a chance de se arrepender. O endurecimento por parte de Deus é visto como um ato judicial permissivo: Deus retira Sua graça restritiva e entrega Faraó à dureza de seu próprio coração, que ele mesmo escolheu.   


  • Visão Luterana: A teologia luterana foca na eficácia da Palavra de Deus como meio de graça. A Palavra e os atos de Deus confrontam o ser humano, exigindo uma resposta. A mesma revelação divina pode produzir resultados opostos, dependendo da disposição do coração. A analogia clássica é a do sol, cujo mesmo calor derrete a cera (um coração receptivo e crente) e endurece o barro (um coração rebelde e incrédulo). O endurecimento de Faraó, portanto, não é um ato arbitrário de Deus, mas o resultado de sua contínua e obstinada rejeição da Palavra e dos sinais divinos.   


Sinais e Maravilhas (Dons Espirituais)


O confronto entre a vara de Arão e as dos magos serve como um ponto de partida para a discussão sobre a natureza e o propósito dos milagres.


  • Perspectiva Pentecostal/Carismática: Esta tradição vê o confronto em Êxodo 7 como um modelo de batalha espiritual ou "encontro de poderes" (power encounter). Os milagres de Moisés e Arão são manifestações diretas do poder do Espírito Santo, destinadas a confrontar os poderes demoníacos que sustentavam a idolatria egípcia e a validar a mensagem divina. Para os continuístas, este padrão de sinais e maravilhas como ferramentas para o evangelismo e a confrontação espiritual continua ativo na Igreja hoje.   


  • Perspectiva Cessacionista: O cessacionismo interpreta os milagres espetaculares, como os do Êxodo, como sinais de autenticação ligados a períodos fundacionais da história da redenção. Moisés, como Elias e os apóstolos, recebeu a capacidade de realizar tais milagres para validar sua autoridade como um mensageiro de nova revelação divina. A visão cessacionista argumenta que, com o fechamento do cânon do Novo Testamento e o fim da era apostólica, a necessidade desses dons de sinais cessou, pois a Palavra de Deus já estava completa e autenticada.   


VII - Análise Apologética de Temas e Situações Específicas


A passagem em análise apresenta desafios significativos que exigem uma defesa racional da fé cristã, particularmente no que diz respeito à justiça de Deus e à plausibilidade dos milagres.


A Teodiceia do Endurecimento: Defendendo a Justiça de Deus


A acusação de que Deus é injusto por endurecer o coração de Faraó e depois puni-lo por essa dureza é uma objeção antiga. Uma defesa apologética robusta pode ser construída sobre vários pilares filosóficos e teológicos.


  • O Argumento do Compatibilismo: A defesa começa com o argumento filosófico do compatibilismo, que sustenta que a soberania divina e a responsabilidade moral humana não são mutuamente exclusivas, mas compatíveis. Deus pode decretar soberanamente um resultado (a resistência de Faraó) e, ao mesmo tempo, Faraó pode buscar esse resultado por meio de suas próprias escolhas livres e pecaminosas, pelas quais ele é moralmente responsável. A ação de Deus não coage a vontade de Faraó contra seus próprios desejos; ao contrário, Deus opera através dos desejos e da natureza já rebelde de Faraó para cumprir Seu plano.   


  • A Lógica da Defesa do Livre-Arbítrio: A lógica da "Defesa do Livre-Arbítrio", popularizada pelo filósofo Alvin Plantinga, pode ser aplicada aqui. Embora sua defesa se concentre no problema geral do mal, seu princípio central é relevante. A onipotência de Deus não implica a capacidade de realizar o logicamente impossível, como criar seres com livre-arbítrio genuíno e, ao mesmo tempo, garantir que eles nunca escolham o mal. Uma vez que Faraó escolhe livremente o mal, Deus é justo ao permitir essa escolha e até mesmo ao usá-la para um bem maior (a revelação de Sua glória e a redenção de Seu povo), sem ser o autor do mal de Faraó.   


  • O Paralelo com Romanos 1: O endurecimento de Faraó pode ser entendido como um exemplo histórico e dramático do princípio de endurecimento judicial que o apóstolo Paulo articula em Romanos 1:24-28. Paulo descreve um processo em que, devido à persistente idolatria e rejeição da verdade, Deus "entrega" (paradidoˉmi) os pecadores às paixões de seus próprios corações como uma forma de juízo. A ação de Deus em Êxodo não é uma imposição arbitrária de maldade, mas o ato judicial de confirmar Faraó em sua rebelião auto-escolhida, permitindo que seu pecado siga seu curso natural até o juízo final.   


A Racionalidade dos Milagres em um Confronto de Cosmovisões


A defesa dos milagres nesta passagem não reside em tentar prová-los cientificamente, mas em demonstrar sua racionalidade dentro da cosmovisão teísta e do contexto narrativo.


O confronto com os magos é a chave apologética. A narrativa não apresenta um conflito entre um evento sobrenatural (a vara de Arão) e um evento natural (as varas dos magos). Pelo contrário, ela descreve um confronto entre diferentes reivindicações de poder sobrenatural. No mundo antigo, a realidade da magia e da intervenção divina era amplamente aceita. A questão crucial para a audiência da época não era "Será que milagres podem acontecer?", mas sim "Qual deus ou poder é supremo?".   


A narrativa do Êxodo responde a essa pergunta de forma decisiva. Ao permitir que os magos repliquem os primeiros sinais, o texto estabelece um campo de batalha nivelado. A subsequente superioridade do poder de YHWH – simbolizada pela vara de Arão engolindo as outras – torna-se, então, uma prova irrefutável de Sua soberania. O milagre, neste contexto, funciona como um ato de comunicação divinamente racional, projetado para responder à pergunta mais premente daquela cosmovisão: Quem está no controle?


VIII - Conexões Intertextuais Bíblicas e Tipologia Teológica


A perícope de Êxodo 6:28-7:13 é rica em temas e imagens que ressoam por toda a Escritura, estabelecendo padrões tipológicos que encontram seu cumprimento final no Novo Testamento.


A Vara-Serpente e Outras Serpentes Bíblicas


O sinal da vara que se torna uma serpente (tannin) em Êxodo 7 estabelece um poderoso precedente. Este símbolo de juízo e poder sobre os inimigos de Deus encontra um contraponto fascinante em Números 21:4-9. Ali, quando os israelitas pecam no deserto e são picados por serpentes ardentes, Deus instrui Moisés a erguer uma serpente de bronze em uma haste. Aqueles que olhassem para a serpente seriam curados. O símbolo que em Êxodo representava o poder de Deus contra o Egito torna-se em Números o meio de salvação para o povo de Deus. Jesus Cristo identifica explicitamente este evento como um tipo de Sua própria crucificação: "E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna" (João 3:14-15).   


Os Magos no Novo Testamento: Janes e Jambres


Embora os magos que se opuseram a Moisés não sejam nomeados no livro de Êxodo, a tradição judaica posterior lhes atribuiu os nomes de Janes e Jambres. O apóstolo Paulo recorre a essa tradição em 2 Timóteo 3:8: "E, do modo por que Janes e Jambres resistiram a Moisés, assim também estes resistem à verdade, sendo homens de entendimento corrompido e réprobos quanto à fé". Paulo utiliza esses magos como um tipo ou arquétipo daqueles que, nos últimos dias, se oporiam ativamente à verdade do evangelho. O confronto no Êxodo, portanto, torna-se um padrão para toda a oposição futura à revelação de Deus, caracterizada por uma imitação enganosa do poder divino, mas destinada ao fracasso final ("não irão, porém, avante", 2 Tm 3:9).   


Faraó como Arquétipo em Romanos 9


O apóstolo Paulo, em sua profunda explanação sobre a soberania de Deus na eleição, eleva a figura de Faraó a um arquétipo teológico. Em Romanos 9:17, ele cita diretamente a mensagem de Deus a Faraó (baseada em Êxodo 9:16): "Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra". Para Paulo, Faraó é o exemplo supremo de como Deus, em Sua soberania, pode usar a rebelião e a dureza de um "vaso de ira, preparado para a perdição" para demonstrar Seu poder, Sua paciência e, em última análise, para cumprir Seus propósitos redentores para com os "vasos de misericórdia".   


Tipologia Cristológica


A passagem aponta de várias maneiras para a pessoa e obra de Jesus Cristo.


  • Moisés como Tipo de Cristo Mediador: A estrutura de autoridade estabelecida em Êxodo 7:1-2, onde Moisés funciona como o representante de Deus (’elohim) e o mediador de Sua palavra, prefigura o papel de Cristo como o mediador supremo da Nova Aliança (Hb 9:15). Moisés é o protótipo do "profeta semelhante a mim" que Deus levantaria (Dt 18:15), uma profecia que o Novo Testamento aplica diretamente a Jesus (Atos 3:22).   


  • O Confronto como Tipo do Conflito Espiritual: A batalha de YHWH contra Faraó e os deuses do Egito é um tipo da libertação muito maior que Cristo opera. Cristo não resgata Seu povo de uma escravidão física, mas da escravidão ao pecado, à morte e ao poder de Satanás. Faraó, em sua tirania e resistência a Deus, funciona como um tipo do "deus deste século" que cega o entendimento dos incrédulos (2 Co 4:4), e o Êxodo prefigura a vitória de Cristo na cruz, onde Ele "despojou os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz" (Cl 2:15).   


IX - Exposição Devocional com Aplicação para a Vida Atual


A narrativa de Êxodo 6:28-7:13, embora antiga, ressoa com verdades profundas e atemporais para a jornada de fé do crente contemporâneo. Ela oferece lições práticas sobre a inadequação humana, a soberania divina, a natureza da obediência e o confronto com os poderes deste mundo.


A Força na Fraqueza: Lidando com o Sentimento de Inadequação


A repetida queixa de Moisés, "eu sou incircunciso de lábios" (Êx 6:30), é um espelho para os sentimentos de inadequação que frequentemente assaltam aqueles que são chamados por Deus. Diante de tarefas que parecem esmagadoras, é comum focarmos em nossas limitações: falta de eloquência, de recursos, de coragem ou de experiência. A resposta de Deus a Moisés é profundamente instrutiva. Ele não "cura" instantaneamente a dificuldade de Moisés, nem o repreende por sua falta de fé. Em vez disso, Deus provê uma estrutura que contorna a fraqueza de Moisés, designando Arão como seu porta-voz. A lição devocional é clara: Deus não chama os capacitados, mas capacita os chamados. Muitas vezes, essa capacitação não vem através da remoção de nossas fraquezas, mas através da provisão de outros membros do corpo de Cristo que complementam nossas deficiências. A obra de Deus é realizada não por indivíduos autossuficientes, mas por uma comunidade interdependente, onde a força de um supre a fraqueza do outro, para que toda a glória seja de Deus.   


Obediência em Idade Avançada: Um Chamado Sem Prazo de Validade


A menção específica de que Moisés tinha 80 anos e Arão 83 quando iniciaram a confrontação com Faraó (Êx 7:7) é um poderoso antídoto contra a mentalidade cultural que associa valor e utilidade exclusivamente à juventude. Em uma sociedade que muitas vezes marginaliza os idosos, esta passagem nos lembra que o chamado de Deus não tem prazo de validade. Moisés e Arão embarcaram na maior e mais desafiadora missão de suas vidas em uma idade em que a maioria das pessoas consideraria o fim de sua vida produtiva. A aplicação para nós é um chamado a rejeitar a noção de "aposentadoria" do serviço do Reino. A sabedoria, a experiência e a maturidade acumuladas ao longo de uma vida podem ser os ativos mais valiosos que oferecemos a Deus. Nunca é tarde demais para que Deus nos use de maneiras extraordinárias, e nossa disposição em obedecer, independentemente da idade, é o que realmente importa.   


Confiança na Soberania de Deus em Meio ao Conflito


O plano de Deus, revelado em Êxodo 7:3-5, incluía explicitamente a resistência de Faraó. O endurecimento de seu coração não foi um obstáculo inesperado ou um sinal de fracasso do plano divino; foi o próprio meio pelo qual Deus pretendia manifestar Sua glória de forma inegável. Esta perspectiva transforma nossa maneira de encarar as adversidades. Muitas vezes, interpretamos a oposição, os contratempos e as portas fechadas como evidências de que estamos no caminho errado ou de que Deus nos abandonou. A lição do Êxodo é que os obstáculos que enfrentamos em nossa caminhada de fé podem ser o palco divinamente preparado para a demonstração do poder e da soberania de Deus. Nossa tarefa não é evitar o conflito a todo custo, mas permanecer fiéis e obedientes no meio dele, confiando que Deus está no controle e que Ele usará até mesmo a resistência do inimigo para cumprir Seus propósitos redentores.   


A Batalha Espiritual Hoje


O confronto entre a vara de Arão e as dos magos egípcios é um lembrete sóbrio de que a batalha espiritual é real. O poder de Deus não opera em um vácuo; ele confronta poderes e ideologias concorrentes que buscam imitar, falsificar e se opor à verdade. No mundo de hoje, somos bombardeados por "magias" modernas – filosofias, ideologias e espiritualidades que oferecem poder, sabedoria e libertação apartados de Deus. A capacidade dos magos de replicar o sinal de Arão nos adverte que o engano pode ser sutil e poderoso. A aplicação para o crente é a necessidade de discernimento espiritual. Não devemos nos impressionar meramente com o sobrenatural ou o espetacular, mas devemos testar os espíritos e as fontes de poder. A lição final do confronto, no entanto, é de grande encorajamento: o poder de Deus é supremo. A verdade de Deus, em última análise, sempre "engolirá" as falsificações. Nossa confiança não deve estar em nossa capacidade de vencer a batalha, mas na certeza de que o Deus a quem servimos já a venceu.   


X - Apêndice: A Função da Genealogia de Êxodo 6:14-27


A inserção da genealogia em Êxodo 6:14-27, à primeira vista, parece uma interrupção abrupta na fluidez da narrativa. No entanto, sua posição estratégica e seu conteúdo seletivo revelam uma função literária e teológica de extrema importância para o desenrolar da história da redenção.


Contexto Estrutural e Propósito Legitimador


A genealogia está cuidadosamente posicionada entre a dupla comissão de Deus e a dupla objeção de Moisés sobre ser "incircunciso de lábios" (Êx 6:12 e 6:30). Esta estrutura de sanduíche não é acidental. Como analisado anteriormente, o primeiro encontro com Faraó resultou em fracasso e na rejeição da liderança de Moisés e Arão pelo próprio povo. Antes de relançar a missão que culminará nas pragas, o texto bíblico pausa para estabelecer formalmente as credenciais de seus protagonistas.   


A genealogia não é exaustiva. Ela começa com os três primeiros filhos de Jacó – Rúben, Simeão e Levi – e, em seguida, foca exclusivamente na descendência de Levi, detalhando suas famílias até chegar a Anrão, que se casou com Joquebede, gerando Arão e Moisés. Este registro funciona como um documento oficial que legitima a autoridade de Moisés e Arão. Eles não são líderes autoproclamados, mas descendentes diretos da linhagem que Deus separaria para o serviço sagrado. Esta confirmação era crucial para solidificar sua posição perante o povo de Israel e para fundamentar a autoridade com a qual se apresentariam novamente diante de Faraó.


Fundamento Sacerdotal


Além de sua função legitimadora imediata, a genealogia de Êxodo 6 lança as bases para uma das instituições mais importantes da vida de Israel pós-Êxodo: o sacerdócio levítico e aarônico. Ao detalhar a linhagem de Levi e destacar a família de Arão e seus filhos – Nadabe, Abiú, Eleazar e Itamar (Êx 6:23) –, o texto já antecipa a futura designação desta família para o ofício sacerdotal. A narrativa não está apenas preocupada com a libertação do Egito, mas também com a constituição de Israel como uma nação santa, com um sistema de adoração ordenado por Deus. A genealogia, portanto, serve como a pedra fundamental, mostrando que os líderes da libertação política (Moisés) e da futura liderança espiritual (Arão) foram divinamente escolhidos e preparados desde suas origens. Ela integra a história pessoal de Moisés e Arão na história pactual mais ampla da tribo de Levi e da nação de Israel.

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