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Linhagem de Sem até Terá | Gênesis 11:10–26

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 31 de ago.
  • 7 min de leitura
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A passagem de Gênesis 11:10–26 inicia-se com a fórmula editorial hebraica “Estas são as gerações de Sem” (toledot Sem), marcando o início de uma nova seção genealógica distinta dos relatos precedentes. Esse mesmo modelo de introdução (toledot), repetido em 11:27 (“história da família de Terá”) e em outros pontos (Ishmael, Isaac etc.), indica um padrão literário em Gênesis de listas breves de genealogia alternadas com narrativas extensas dos patriarcas. Notavelmente, a genealogia de Sem aqui serve como prólogo para a história de Abraão, dentro da estrutura geral de Gênesis. Assim como em Gênesis 5 (linhagem de Adão a Noé), cada lista genealógica introduz e conecta dois grandes ciclos da história: em Gênesis 11 ela liga a era pós-Babel à era patriarcal. O trecho refere-se explicitamente às gerações de Sem e conclui em 11:26 com Terá e seus três filhos (Abrão, Naor e Harã). O fato de Terá, como Adão e Noé, ter três filhos nomeados indica que ele inaugura outra fase importante na história humana.


Gramaticalmente, a genealogia segue um padrão formulaico hébraico típico: quase sempre cada indivíduo é apresentado em duas sentenças paralelas. A primeira declara sua idade ao ter o filho indicado; a segunda informa quanto tempo viveu depois desse nascimento e acrescenta que “gerou filhos e filhas”. Por exemplo, “Shelach viveu 30 anos e gerou Éber; e viveu depois que gerou Éber mais 403 anos, gerando filhos e filhas” (11:14-15). Esse esquema telegráfico – que prescinde de detalhes biográficos e só põe datas – difere de Gênesis 5, onde cada vida ainda aparece com seu total de anos (“viveu ao todo X e morreu”). Em 11:10–26 o único dado extra é o marco de dois anos após o dilúvio no nascimento de Arfaxade, e a lista termina abruptamente em Terá (não há relato de morte de cada um). Do ponto de vista literário, nota-se que a Brevidade desta genealogia (“história de família de Sem”) enfatiza sua função introdutória: ela traça sucintamente a linhagem escolhida de Sem a Abraão, sem ramificações ou episódios paralelos, preparando o caminho para a história patriarcal.


Tecnicamente, a forma do texto conserva vestígios do hebraico antigo: ocorre o uso do vav consecutivo que sinaliza a sequência narrativa (por exemplo, vayechi “e viveu” etc.). As fórmulas “viveu X anos” e “gerou Y” são escritas com imperfeito prefixado por vav, e a falta de verbo explícito em “gerou filhos e filhas” indica a construção construtiva típica do hebraico genealógico. Não há intervenções editoriais claras no texto além da fórmula introdutória e da menção final dos três filhos de Terá; tudo sugere que temos aqui um texto muito antigo e relativamente estável. A própria concisão da narrativa – sem os “e viveu ao todo…” de Gênesis 5 – foi vista como possivelmente uma versão abreviada de um texto mais longo, ou como sinal de que o editor já considerava esses números de modo diferente. De qualquer forma, o padrão está bem estabelecido: genealogias como essa são comuns em Gênesis (veja 5:1–32, 25:12–18, 36:1–43), e sempre têm esse tom “telegráfico” de registro, com apenas nomes, idades e relações familiares essenciais.


No plano histórico e cronológico, alguns detalhes chamam a atenção. O versículo 10 começa: “Shem tinha 100 anos quando gerou Arfaxade dois anos após o dilúvio.” Essa referência final ao dilúvio (9:28; 10:1) e a expressão “dois anos após o dilúvio” sinalizam que o texto se inicia logo depois dos eventos cósmicos de Gênesis 6–9, entrando agora numa nova fase humana. Há um contraste interessante de cronologias: de um lado, em 5:32 lemos que Noé tinha 500 anos ao gerar Sem, Ham e Jafé e 600 ao dilúvio; isto faria Sem ter 100 anos ao tempo do dilúvio. Mas aqui a narração diz que ele tinha 100 apenas dois anos depois do dilúvio. Várias explicações foram propostas (escrituras antigas aproximadas, glosas, ou mesmo interpretação de Cassuto de que Jafé nasceu aos 500 de Noé e Sem 2 anos depois). O fato é que, segundo o texto massorético, a contagem oficial começa a valer após o dilúvio, e daí em diante a passagem passa a detalhar novas gerações. Arfaxade, nascido dois anos depois, é o primeiro descendente direto de Sem que surge após o dilúvio, simbolizando a renovação da humanidade sob a bênção de frutificação dada no pós-diluvio (Gn 9:1,7). Wenham nota que esse nascimento preenche o mandado divino (“crescei e multiplicai-vos”), e assim mesmo a bênção sobre Sem é reafirmada (implícita em 9:26‑27). O cronograma do texto associa 365 anos entre o nascimento de Arfaxade e a chegada de Abraão a Canaã (cap. 12), indicando que, em apenas nove gerações, a narrativa transita do mundo primevo para o mundo quase contemporâneo dos patriarcas.


Observa-se também na genealogia uma diminuição geral da longevidade comparada aos antediluvianos de Gênesis 5. Embora Arfaxade, Xalá (Shelach), Éber etc. ainda vivam centenas de anos, são bem menos que os cinco dígitos de antes do dilúvio. Por exemplo, todos os patriarcas pós-diluvianos têm idades de geração entre 29 e 35 anos, e vidas restantes entre cerca de 100 e 430 anos (o que já é comparável aos patriarcas históricos, como Abraão viver 175 anos ou mesmo a regra dos 120 anos de Gn 6:3). Esse quadro de curtos reinados pós-diluvianos lembra a lista real da Suméria, em que reis antediluvianos (Gilgamesh, etc.) governam milhares de anos antes da inundação, mas após o dilúvio reinam muito menos tempo – um padrão similar de “enxugamento” das eras. De fato, ao comentar Arfaxade, Wenham observa que “os pós-diluvianos ainda vivem séculos, mas muito menos que seus ancestrais pré‑diluvianos, e suas idades de paternidade são próximas às dos tempos históricos. Essa redução da longevidade após o dilúvio pode ser comparada às sucessivas listas sumérias e à decretação de que a vida se limitaria a 120 anos (6:3)”. Note-se que Shem em si é figura de transição: tendo gerado Arfaxade aos 100 anos (como os patriarcas pré‑diluvianos faziam), mas morrendo aos 600 (bem abaixo da média antediluviana), ele iguala-se à média entre o velho e o novo regime.


Por outro lado, há variantes textuais curiosas preservadas em manuscritos. A Septuaginta acrescenta um nome Cainan entre Arfaxade e Xalá, estendendo artificialmente a lista para dez gerações (como em Gn 5). Porém, trata-se provavelmente de acréscimo posterior, pois as idades dadas para Cainan ali são idênticas às de Xalá na tradição massorética – sugerindo que alguém duplicou em vez de criar dado novo. O cânon samaritano e outras versões, de resto, apresentam discrepâncias sistemáticas de 100 anos nas idades iniciais, como já visto em Gn 5; a maioria dos exegetas entende que os números massoréticos originais (apesar de grandes) são preferíveis, ainda que difíceis de harmonizar em termos históricos. Em última análise, é possível que tanto a linhagem de Gn 5 quanto a de Gn 11 tenham origem numa mesma tradição sacerdotal antiga de genealogias (Toledot de Gênesis), apenas redigida de forma mais sucinta em Gn 11.


No aspecto histórico e geográfico, as gerações registradas exibem laços com a Mesopotâmia. Vários desses nomes aparecem em contextos antigos da região: Serug é ligado ao topônimo assírio Sarugi próximo a Harrã; o nome Nahor (v.26) figura em textos do período de Ur III e possivelmente vem de raiz aramaica nahar “bufar”; Terá, patriarca final aqui, dá nome a um sítio (Tell Terah) na Araméia assíria por volta de 900 a.C.. Os comentaristas observam que muitos dessas figuras são mais plausivelmente camponeses ou tribais (não reis) naquele cenário, mas o resgate de tais nomes sugere uma autêntica memória cultural mesopotâmica. Um exemplo notável é Éber: embora o texto trate Éber apenas como o bisavô de Abraão, dele deriva o gentílico ivri (hebreu), e mais tarde é visto como ancestral de Abraão. Outro caso é Peleg, cujo nome significa “divisão” – um lembrete de que “nos dias de Peleg a terra foi dividida” (Gn 10:25), aludindo cronologicamente ao episódio de Babel. Esse detalhe antecipa a Torre de Babel e serve de ponte entre a genealogia e o folclore de Gênesis 11:1-9. No entanto, o próprio autor bíblico trata tais informações de forma periférica: ele não descreve a etimologia ou atividades de Serug, Xalá etc., simplesmente os insere na linhagem para manter a linhagem “eleita” de Sem até Abraão. Conforme observa Wenham, o objetivo do narrador não é dar biografias, mas “rastrear a linha de eleição de Sem até Abrão”, mostrando que a humanidade continuou fecunda e vivendo sob o limite decretado em 6:3, até que o cenário do patriarcado se estabeleça.


No plano teológico, essa genealogia resuma a esperança que se segue à condenação de Babel. Em apenas cinco gerações após Peleg (que viu a confusão das línguas), surge Abraão – aquele por meio de quem “todas as famílias da terra” seriam abençoadas. O texto remete expressamente à promessa de Gênesis 12:3 de bênção universal, apontando que a salvação para a humanidade virá desse tronco específico de Sem. A brevidade do registro genealógico enfatiza que, apesar do juízo divino (Dilúvio, Babel), prevalece a graça de Deus, pois Ele escolheu salvar uma linha escolhida para levar avante seus propósitos. Wenham até nota que o registo conciso lembra que Deus “castiga até a terceira e quarta geração, mas manifesta misericórdia até mil gerações” (Deuteronômio 5:9; 7:9), e que, embora nomes como Serug e Reu soem hoje irrelevantes, eles eram essenciais – eram os antepassados do homem que haveria de trazer salvação (tanto para Israel quanto para todas as nações). Em outras palavras, cada nome nessa linhagem ganha significado pela conexão com Abraão e, mais tarde, com Cristo. Por isso, Lucas intitui a genealogia de Jesus mencionando esses mesmos indivíduos (Lucas 3:34-36), ligando a promessa messiânica a essa genealogia de Sem.


Em suma, Gênesis 11:10–26 funciona como um elegante elo entre a narrativa primeva e o ciclo patriarcal. Ela conclui os relatos de juízo e dispersão iniciados em Babel e põe o palco para a história de Abraão. Oferece um retrato sucinto de continuidade — a humanidade prossegue multiplicando-se, embora agora com vidas mais curtas — e, ao mesmo tempo, destaca a inevitabilidade do plano divino: a descendência de Sem permanece preservada, caminhando velozmente até Abraão, o ponto de partida para a aliança que resultará na formação de Israel e na promessa de bênçãos a todos os povos. Em apenas nove gerações (365 anos), Gênesis nos transporta do mundo mítico e diluviano para o mundo histórico e monoteísta dos patriarcas. A genealogia de Sem, embora breve e enigmática em seus detalhes humanos, é abundante em significado teológico: ela celebra a fidelidade de Deus em manter um “remanescente” bom (como mencionado na bênção de Noé) e prepara o leitor para a história da aliança abraâmica que se segue, uma história ancorada na promessa de Deus de redenção para toda a humanidade.

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