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Jacó e Esaú | Gênesis 25:19-34

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 9 de set.
  • 14 min de leitura
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A passagem de Gênesis 25:19-34 inicia a subseção genealógica “estas são as gerações de Isaque” e marca a transição do foco narrativo de Abraão para seus descendentes. Embora Isaque seja um elo importante na história patriarcal, sua vida é relativamente discreta em comparação com a fé extraordinária de seu pai Abraão e com os eventos dramáticos que marcarão a vida de seu filho Jacó. Isaque poderia ser considerado “o filho comum de um grande pai e o pai comum de um grande filho”, mas mesmo assim atuou como uma “ponte sólida” entre essas duas gerações. Nesse texto, veremos como Deus dá continuidade à promessa da aliança por meio do nascimento miraculoso de Esaú e Jacó, gêmeos que desde o ventre já protagonizavam um conflito preditivo. Também examinaremos o contraste de caráter entre esses irmãos e o episódio decisivo em que Esaú vende seu direito de primogenitura a Jacó por um prato de ensopado. Essa narrativa, além de explicar a origem de duas nações (Israel e Edom), traz lições teológicas profundas sobre a soberania divina, a eleição pela graça e os perigos de desprezar as bênçãos espirituais.


A História de Isaque e Rebeca


O relato começa relembrando que Isaque, aos 40 anos, desposou Rebeca (cf. Gn 25:20). Diferentemente de seu pai Abraão, que gerou Ismael com Agar, Isaque manteve-se monogâmico, tendo somente Rebeca por esposa. Porém, Rebeca era estéril, de modo que o cumprimento da promessa de descendência dependia novamente de um milagre de Deus. Isaque orou insistentemente por sua esposa durante vinte anos – dos 40 aos 60 de idade – até que o Senhor atendeu suas orações e Rebeca concebeu. Ele foi assim agraciado com a resposta divina após longa espera, semelhante ao que ocorrera com Abraão (que aguardou 25 anos pelo filho da promessa). A perseverança de Isaque na oração por duas décadas mostra sua fé paciente: de fato, paciência e persistência em oração foram marcas de Isaque. Vale notar que outros patriarcas também tiveram que esperar pelo cumprimento das promessas – Abraão esperou 25 anos por Isaque; Jacó trabalhou 14 anos para se casar com Raquel; José passou 22 anos longe da família até reencontrá-la. Os tempos de Deus nem sempre coincidem com os nossos, mas estão em Suas mãos soberanas (Sl 31:15).


Quando Rebeca finalmente engravidou, logo percebeu que algo incomum ocorria em seu ventre. A Bíblia narra que os gêmeos “lutavam” dentro dela (v.22), a tal ponto que Rebeca, angustiada, chegou a exclamar: “Por que me está acontecendo isto?” e buscou ao Senhor para entender aquela situação (v.22). Deus respondeu a Rebeca com uma profecia importante, revelando-lhe que em seu ventre havia “duas nações” e “dois povos” que se separariam; um deles seria mais forte e, contrariando as normas culturais da primogenitura, “o mais velho serviria ao mais moço” (v.23). Essa resposta divina esclareceu que a rivalidade entre os meninos não era um mero acidente biológico, mas tinha significado profético: antecipava a relação futura entre dois povos – os edomitas (descendentes de Esaú) e os israelitas (descendentes de Jacó) – e, acima de tudo, indicava a escolha soberana de Deus em inverter a ordem usual, elegendo o filho mais novo como herdeiro da promessa. O apóstolo Paulo, em Romanos 9:10-12, toma essa palavra a Rebeca como exemplo da eleição divina incondicional: “não tendo eles [ainda] nascido, nem praticado bem ou mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço”. Ou seja, Deus já determinara Seu propósito gracioso antes mesmo do nascimento das crianças, deixando claro que Seus planos não dependem dos méritos humanos, mas da Sua livre escolha.


Cumpridos os dias de Rebeca, chega o momento do parto (v.24). O primeiro gêmeo nasceu ruivo e peludo como um manto de pelos, razão pela qual foi chamado Esaú. O nome “Esaú” está associado a essa aparência peluda (possivelmente relacionando-se com a palavra “Seir”, que significa peludo ou cabeludo, e que viria a ser o nome da região montanhosa de Edom). Além disso, nota-se que o texto sublinha a cor vermelha atípica do recém-nascido – antecipando seu apelido Edom (ver v.30), que em hebraico significa “vermelho”. Em seguida nasceu o segundo gêmeo, agarrado ao calcanhar do irmão – por isso recebeu o nome de Jacó. Em hebraico Yaʿaqóv soa parecido com ʿaqév (“calcanhar”), sugerindo aquele que agarra o calcanhar. Essa expressão idiomática carrega a ideia de suplantar ou enganar. De fato, essa característica definirá Jacó: já no nascimento ele aparece tentando “alcançar” o irmão, e mais tarde seu próprio irmão observará que “suplantou-me duas vezes” (Gn 27:36). O profeta Oseias faz eco a essa imagem ao resumir a vida de Jacó assim: “No ventre pegou do calcanhar de seu irmão; e na sua força lutou com Deus” (Os 12:3). A menção do nascimento de Jacó segurando Esaú pelo calcanhar, portanto, não é um detalhe trivial, mas prenuncia o conflito de destino entre os dois irmãos e o modo astuto como Jacó buscará a primazia.


A narrativa informa ainda que Isaque tinha 60 anos de idade quando os meninos nasceram (v.26). Isso significa que se passaram exatos 20 anos desde o casamento até o nascimento dos filhos – confirmando a longa espera e oração de Isaque por um herdeiro. Um detalhe curioso é que Abraão, o avô dos gêmeos, ainda estava vivo naquele momento, com cerca de 160 anos de idade. Abraão viveria até os 175 anos (Gn 25:7), de modo que, apesar de Gênesis não registrar encontros entre ele e os netos, é bem possível que Jacó e Esaú tenham conhecido seu avô e ouvido dele as promessas de Deus. Esse contexto familiar nos lembra que os patriarcas viviam longamente e que as gerações conviveram, permitindo a transmissão das promessas divinas e da fé de Abraão aos netos. Com o nascimento dos gêmeos, a chama da aliança abraâmica passa para a geração seguinte, preparando o cenário para o desenvolvimento do povo escolhido.


A História de Esaú e Jacó


Os versículos 27-28 descrevem em rápidas pinceladas o perfil contrastante dos dois irmãos ao chegarem à juventude. Embora gêmeos e criados no mesmo lar, Esaú e Jacó tornaram-se muito diferentes em temperamento, habilidades e destino. Esaú revelou-se um aventureiro rústico, “perito caçador, homem do campo” (v.27) – um sujeito ao ar livre, amante da caça e da vida selvagem. Jacó, por sua vez, era um homem quieto e caseiro, “habitante de tendas” (v.27). A palavra hebraica usada para Jacó (tam) pode transmitir a ideia de alguém pacato, simples ou até íntegro, sugerindo um temperamento mais calmo e reflexivo em contraste com o ímpeto de Esaú. Jacó seguia a tradição nômade-pastoril de seu avô Abraão e de Isaque, dedicando-se à vida entre rebanhos e tendas. Ou seja, enquanto Esaú era o caçador errante, Jacó era o pastor domiciliado. Esses dois estilos opostos simbolizavam também dois ethos distintos: um mais impulsivo e terreno, outro mais sossegado e, possivelmente, espiritual. Conforme observa Derek Kidner, as personalidades dos gêmeos eram “opostos absolutos”, assim como eventualmente seriam as nações que deles descenderiam. De fato, Esaú se tornou o pai do povo de Edom, ao passo que Jacó (também chamado Israel) é o pai das doze tribos de Israel. Desde o ventre, portanto, aqueles irmãos personificavam uma antítese que marcaria a história de seus povos.


Tal diferença de temperamentos acabou provocando um problema clássico no lar de Isaque: favoritismo parental. O versículo 28 registra que “Isaque amava a Esaú, porque se saboreava de sua caça, mas Rebeca amava a Jacó”. Aqui vemos os pais dividindo suas afeições de forma parcial – um erro grave na criação dos filhos. Isaque, mais sensível aos prazeres da mesa, tinha predileção pelo filho caçador que lhe trazia saborosas carnes de caça; seu amor estava baseado nos sentidos naturais (o paladar). Rebeca, por sua vez, parecia inclinar-se a Jacó, talvez por reconhecer nele qualidades mais alinhadas ao propósito divino ou mesmo por lembrar-se da palavra profética de Deus (“o mais moço” seria o escolhido); seu amor apoiava-se em critérios espirituais e duradouros, ligados à promessa de Deus. Esse quadro de preferências criou uma brecha na família, introduzindo divisões. O favoritismo dos pais lançou uma cunha emocional entre os irmãos. Isaque e Rebeca “jogaram um filho contra o outro”, abrindo caminho para invejas e ressentimentos que viriam a corroer a paz do lar. Mesmo um casamento “feito no céu” – como fora o de Isaque e Rebeca, unidos providencialmente por Deus em Gn 24 – pode descambar em disfunção familiar quando um dos cônjuges dá mais ouvidos às preferências carnais do que à direção divina. Nas palavras de um comentarista, “Um casamento frutífero pode terminar em disfunção, quando um cônjuge dá prioridade ao paladar acima da voz do coração”. Em suma, o favoritismo parental foi o “erro primário” de Isaque e Rebeca na educação dos filhos, e suas consequências permeiam toda a saga de Jacó e Esaú. Aqui já se antevê o conflito que eclodirá no capítulo 27, quando cada pai conspirará em favor de seu filho preferido pela benção patriarcal, despedaçando de vez a unidade familiar. Gênesis, ao registrar esse favoritismo, não aprova tal atitude, antes mostra como ela é fonte de muita dor e rivalidade. Fica a advertência de que amor parcial dentro de casa gera amargura e divisão, não devendo ser encontrado entre o povo de Deus.


A partir do verso 29, a cena muda para um episódio específico, aparentemente banal, mas que se revela decisivo: a negociação do direito de primogenitura de Esaú. O texto nos apresenta Esaú, o caçador, voltando exausto do campo enquanto Jacó cozinhava um ensopado de lentilhas. Esaú, faminto e impulsivo, pede a Jacó: “Deixa-me comer desse guisado vermelho, desse vermelho aí, porque estou exausto” (v.30). No original hebraico, as palavras de Esaú são gramaticalmente toscas e repetitivas – algo como: “Deixa-me engolir um pouco desse vermelho, desse vermelho aí!”. Essa forma quase grosseira de falar ressalta seu descontrole momentâneo e deu origem ao seu apelido: Edom, que significa “vermelho”. A Escritura está sutilmente mostrando que Esaú era governado pelo apetite e pela impetuosidade, a ponto de ganhar um nome derivado de um impulso momentâneo (desejar o vermelho cozido).

Jacó, por sua vez, enxerga nessa situação a oportunidade que aguardava. O narrador já havia sugerido que Jacó “buscava uma oportunidade para comprar o direito de primogenitura” de seu irmão. Agora a chance estava servida à mesa. Em vez de agir com generosidade ou compaixão para com um irmão cansado e faminto, Jacó opta por agir de forma calculista e fria: ele exige primeiro que Esaú venda o seu direito de primogenitura em troca da refeição (v.31). Diante da concordância apressada de Esaú, Jacó insiste ainda mais, requerendo que o irmão jure entregar-lhe esse direito (v.33) – vinculando o trato com um compromisso solene e irrevogável. Somente após Esaú jurar, Jacó lhe cede pão e o ensopado de lentilhas (v.34). O preço, do ponto de vista material, era incrivelmente baixo: “um mísero prato de lentilhas”. Jacó, assim, explorou a fraqueza e a urgência da necessidade de seu irmão para obtê-lo o que desejava. Seu comportamento é moralmente reprovável: faltou-lhe compaixão e hospitalidade num momento crítico para Esaú. Ele se mostrou disposto a “astuciosamente comprar” aquilo que Deus prometera dar por graça (pois se lembrarmos, Deus já declarara que Jacó seria o herdeiro da promessa – Gn 25:23), o que denota também falta de fé em esperar o cumprimento dos planos divinos. Seu ato, portanto, mescla uma ambição pelos privilégios espirituais (o que em si poderia ser virtuoso) com meios enganosos e carnais para alcançá-los. Um comentarista ressalta o contraste entre Jacó e seus antepassados piedosos: “Jacó explora a miséria de seu irmão. Sua falta de compaixão e hospitalidade está em franco contraste com seu avô Abraão (que correra para servir os hóspedes famintos em Gn 18:1-8) e com seu tio Ló (que hospedou os visitantes em Gn 19:1-8). Seu preço foi justo, mas seu método foi errado”. Ou seja, Jacó valorizou corretamente o valor do direito de primogenitura, mas utilizou um método deturpado para consegui-lo, diferente do espírito altruísta demonstrado por Abraão. Mais tarde, Deus trataria do caráter de Jacó, transformando sua ambição em algo positivo – vemos isso simbolizado quando Jacó luta com Deus e recebe um novo nome, Israel, e uma mudança de caráter (Gn 32:24-28). Contudo, nesse ponto da história, Jacó age pelo engano, vivendo à altura de seu nome (suplantador) e sem exercer fé plena na providência divina.


Agora voltemo-nos para Esaú e seu papel nessa transação. Se Jacó foi astuto e inescrupuloso, Esaú mostrou-se leviano e profano em seu desprezo pelo sagrado direito que possuía. Diante da proposta de Jacó, Esaú responde: “Estou a ponto de morrer; de que me serve o direito de primogenitura?” (v.32). É bem provável que Esaú estivesse exausto e faminto, mas sua declaração é exagerada – ele não estava literalmente morrendo de inanição naquele instante. As palavras revelam sua postura imediatista: para Esaú, o valor futuro e espiritual do direito de primogenitura não significava nada comparado à satisfação presente de sua fome. “Esaú julgou mal o valor de sua primogenitura”, agindo de forma fraca e irreverente. O narrador conclui enfaticamente: “Assim desprezou Esaú o seu direito de primogenitura” (v.34). A palavra “desprezou” indica que Esaú tratou algo de grande importância como se fosse sem valor. Ele troca um bem duradouro e sagrado por um prazer momentâneo e trivial. Concordamos aqui com as palavras de George Livingston: “Esaú comerciou valores eternos por satisfação temporal”. Em outras palavras, Esaú sacrificou o futuro no altar do apetite presente, revelando completo desinteresse pelas promessas de Deus ligadas à primogenitura. O Novo Testamento caracteriza Esaú exatamente deste modo: “profano” (isto é, secular, sem respeito pelo divino) e imoral por ter vendido seu direito de primogenitura por uma refeição. A Epístola aos Hebreus adverte os crentes a que não haja ninguém “impuro ou profano, como foi Esaú, o qual, por um repasto, vendeu o seu direito de primogenitura”. O texto de Hebreus 12:16-17 continua lembrando que, mais tarde, quando Esaú quis reaver a bênção da primogenitura, já era tarde demais – ele “foi rejeitado, pois não achou lugar de arrependimento, embora com lágrimas o tivesse buscado”. Essa referência aponta para o episódio subsequente (Gn 27) em que Esaú chora amargamente ao perceber que perdeu irrevogavelmente a bênção de filho primogênito. O autor de Hebreus utiliza Esaú como exemplo solene de alguém que, por desprezar coisas sagradas, colheu perdas irreparáveis. A atitude de Esaú serve de alerta: ele preferiu “um prato de lentilhas” à herança espiritual de Abraão, mostrando quão perigosos são a impulsividade e o materialismo na vida de fé.

Cabe aqui entender melhor o que era o “direito de primogenitura” no contexto patriarcal e por que sua perda foi tão grave. O termo hebraico bekorá refere-se aos privilégios legais e espirituais do filho primogênito. Nos costumes do Antigo Oriente Médio (atestados inclusive em descobertas arqueológicas, como as tabuinhas de Nuzi, do século XV a.C.), o primogênito geralmente recebia uma porção dobrada da herança paterna e a posição de chefe da família após a morte do pai. Havia inclusive casos em que esse direito era negociado ou transferido mediante contrato – em Nuzi, por exemplo, uma das tabuinhas registra um irmão vendendo sua parte da herança por três ovelhas, um paralelo notável com o caso de Esaú e Jacó. No contexto bíblico, além da porção dobrada dos bens (Dt 21:17), o primogênito tinha um status de honra singular dentro da família e assumia a liderança do clã. Israel, como nação eleita, é chamado de “primogênito” de Deus, sublinhando sua posição especial entre os povos. Os primeiros filhos do ventre e as primícias do campo pertenciam de modo especial ao Senhor, consagrados a Ele (cf. Êx 13:2; Dt 15:19; 18:4). No caso específico da família de Isaque, o direito de primogenitura incluía não apenas benefícios econômicos e a chefia familiar, mas a herança da promessa abraâmica – isto é, ser o portador da aliança que Deus fizera com Abraão, incluindo a bênção de ser pai de uma nação escolhida e antepassado do Messias prometido. Portanto, o que Esaú descartou levianamente não foi apenas uma riqueza material futura, mas o privilégio espiritual de estar na linhagem do propósito redentor de Deus. Não é de admirar que o texto diga que ele desprezou isso. Ele mostrou não crer no valor real das promessas divinas ligadas a Abraão, ao contrário de Jacó que – com todos os seus defeitos – desejava intensamente tais bênçãos.


Esse incidente lança luz sobre o caráter de ambos os irmãos. Jacó, apesar de buscar algo bom (o direito do primogênito), pecou ao consegui-lo de maneira oportunista e enganosa, demonstrando falta de amor fraternal e falta de confiança em Deus. Esaú, por sua vez, mostrou-se “profano” (no sentido bíblico de profanar o sagrado), trocando algo de valor eterno por uma satisfação imediata e trivial. Nenhum dos dois age de forma exemplar aqui: Jacó exibiu crueldade, Esaú exibiu desprezo pelas coisas de Deus. Ainda assim, na avaliação final da Escritura, Jacó surge como o eleito que valoriza a herança espiritual (mesmo que inicialmente de forma tortuosa), enquanto Esaú representa o homem natural que “não dá valor às coisas de Deus”. É significativo que Malaquias 1:2-3 registra a declaração do Senhor: “Eu amei a Jacó, mas aborreci a Esaú”. Essa linguagem forte de “amor” e “aborrecimento” (ódio) refere-se, no contexto, à escolha graciosa de Jacó para ser o portador da aliança, enquanto Esaú é rejeitado para esse fim. Não implica que Deus odiou emocionalmente Esaú desde o ventre, mas sim que Deus soberanamente escolheu Jacó para a linha messiânica e não escolheu Esaú, deixando este seguir seu próprio caminho mundano. A eleição da graça se evidencia aqui de modo claro: “Os homens normalmente pensam que o filho primogênito deve receber maior honra e herança, mas Deus nem sempre trabalha por esses meios”, observa Henry Morris. Na história bíblica, vemos repetidamente Deus quebrando as convenções humanas de primogenitura para fazer avançar Seus planos – nem Sete (em lugar de Caim), nem Isaque (em lugar de Ismael), nem Jacó (em lugar de Esaú), nem Judá (no lugar dos irmãos mais velhos), nem Davi (o caçula entre seus irmãos) foram primogênitos, e ainda assim foram escolhidos por Deus para papel central na linhagem da promessa. Longe de frustrar o propósito divino, os conflitos familiares e inversões de expectativa registrados em Gênesis servem para confirmar o propósito soberano de Deus. O Senhor deixa claro que Sua eleição independe de status humano ou mérito de nascença – é incondicional, baseada exclusivamente em Sua graça e propósito (Rm 9:11). Jacó foi escolhido não por ser melhor que Esaú (de fato, suas falhas são evidentes), mas por pura graça divina; Esaú, com todos os privilégios de primogênito, excluiu-se das bênçãos por seu próprio desprezo. Assim se cumpre o princípio de 1Samuel 2:30: “porque aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desmerecidos”.


Do ponto de vista histórico, a profecia dada a Rebeca – “o mais velho servirá ao mais moço” – teve cumprimento parcial e progressivo. Durante boa parte da vida dos irmãos, isso não se manifestou diretamente (Jacó chegou até a chamar Esaú de “meu senhor” em Gn 33:13-14, temendo-o). Mas séculos depois, os edomitas (descendentes de Esaú) tornaram-se de fato servos dos israelitas (descendentes de Jacó) em vários momentos. Nos dias do rei Davi, Israel subjugou Edom e colocou guarnições militares ali, tornando Edom serva do reino de Israel (2Sm 8:14). Mais tarde Edom se revoltou em tempos de Jorão (2Rs 8:20-22), mas as profecias dos profetas (Obadias, por exemplo) indicam a derrota final de Edom pelas mãos do povo de Deus. Em última análise, a linha de Jacó (Israel) prevaleceu, pois dela veio o Messias, enquanto a linha de Esaú perdeu relevância redentiva. O próprio nome Edom tornou-se, nos profetas bíblicos, símbolo dos inimigos de Deus que seriam julgados. Já o nome Israel tornou-se sinônimo do povo de Deus eleito. Nesse sentido macro-histórico, Esaú serviu a Jacó – as forças representadas por Esaú (homem carnal, secularizado) ficaram de fora do propósito salvífico, enquanto Jacó (apesar de sua natureza enganadora que Deus tratou e transformou) tornou-se portador da bênção ao mundo. Paulo, ao citar “Amei Jacó e odiei Esaú”, aplica esse princípio à doutrina da eleição em Romanos 9, deixando claro que “não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a Sua misericórdia” (Rm 9:16). Isso derruba todo orgulho humano e exalta a graça de Deus.


Gênesis 25:19-34, além de narrar um episódio familiar, é carregado de significado teológico. Vemos aqui Deus agindo soberanamente na continuidade de Seu plano, concedendo milagrosamente filhos a Isaque e Rebeca e escolhendo Jacó para levar adiante a promessa abraâmica. Ao mesmo tempo, o texto põe a nu as fraquezas humanas: um lar dividido por parcialidade dos pais, um irmão astuto e ambicioso e outro profano e impulsivo. No entanto, nada disso frustra os designíos divinos. Como bem resume Bruce Waltke, Deus demonstra Seu controle soberano sobre toda a história patriarcal – desde a queda de Adão e Eva (Gn 3:15), passando pelos destinos dos filhos de Noé (Gn 9:25-27), pelo chamado de Abraão (Gn 12:1-3), e incluindo especificamente o caso de Jacó e Esaú (Gn 25–27), até os eventos com José (Gn 37–50). Em cada etapa, o Senhor conduz os fatos segundo o conselho da Sua vontade. O “comando divino da história” assegura que nem os pecados nem os erros humanos podem impedir o cumprimento das promessas de Deus. Essa afirmação não apenas explica a saga dos patriarcas, mas serve de encorajamento para nós hoje: o mesmo Deus que guiou os rumos da história de Israel continua reinando sobre a história universal – incluindo a nossa história pessoal. Podemos confiar que Seus propósitos de redenção se cumprirão, muitas vezes apesar de nós, e não por causa de nós. Jacó e Esaú nos ensinam, respectivamente, o valor e o desprezo das coisas de Deus. Que não sejamos “como Esaú” em indiferença espiritual, mas aprendamos a buscar as bênçãos eternas, porém fazendo-o pelos caminhos de Deus, e não pelos atalhos enganosos de Jacó. E sobretudo, que reconheçamos com humildade que é a graça soberana do Senhor que escolhe, chama e realiza Seu plano – para que a glória final seja dEle. Gênesis 25:19-34, portanto, não é apenas a origem de dois irmãos em conflito, mas um poderoso testemunho de que “o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalece” (Rm 9:11) e de que Ele governa a história da salvação para o bem do Seu povo e a glória do Seu nome.

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