top of page

Jacó chega na casa de Labão | Gênesis 29:1–14

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 10 de set.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de set.

ree

Jacó parte de Betel rumo ao “oriente” confiante na promessa divina. O v.1 diz literalmente que “Jacó levantou seus pés” e seguiu viagem, expressão hebraica que sugere ânimo renovado após o encontro com Deus. De fato, Jacó prossegue “com alegria e vivacidade, sem se sobrecarregar com preocupações, certo da graciosa presença de Deus consigo”. Essa confiança o sustenta na longa jornada até chegar às terras de Harã, onde vivia a família de sua mãe.


Ao aproximar-se de seu destino, Jacó encontra um poço no campo (v.2) – cenário familiar na narrativa patriarcal, pois foi junto a um poço que o servo de Abraão encontrou Rebeca (Gn 24) e, mais tarde, Moisés conheceria Zipora (Êx 2:15-21). O poço era tampado por uma grande pedra, e três rebanhos aguardavam ali; os pastores explicariam que esperavam reunir todos os rebanhos para então remover a pedra e dar de beber aos animais (v.3,8). Essa prática sugeria cooperação e gestão cuidadosa da água, recurso escasso. Uma pedra grande como essa servia para proteger a água – evitando uso indevido, evaporação ou contaminação – e garantir distribuição justa entre os pastores locais. Jacó observa a cena e inicia diálogo com os pastores.


Mostrando cortesia e humildade, Jacó os saúda como “meus irmãos” (v.4), embora fossem estranhos. Essa saudação cordial revela tato social e talvez a intenção de se identificar como colega pastor (Jacó também era cuidador de rebanhos) e não uma ameaça. Os homens respondem amigavelmente, informando ser de Harã, terra de Labão. Jacó então pergunta por Labão, “Conheceis Labão, filho de Naor?”, e recebe a notícia positiva: “Conhecemos, e eis que Raquel, sua filha, vem vindo com as ovelhas” (v.5-6). A providência divina salta aos olhos de Jacó – ele casualmente chegou ao exato poço frequentado pela família que buscava. Como observou Matthew Henry, “a Providência o levou ao mesmo lugar onde os rebanhos do seu tio deviam beber água, e ali ele se encontrou com Raquel”. O que parecia coincidência é apresentado pela Bíblia como cuidado de Deus guiando os passos de Jacó.


Antes da chegada de Raquel, porém, Jacó repara que os pastores estavam reunidos mas inativos, provavelmente ainda no meio do dia (v.7). Numa atitude proativa (talvez até um pouco atrevida), ele lhes sugere: “Ainda é pleno dia... dai de beber às ovelhas e ide apascentá-las” (v.7). Ou seja, por que não tratar logo dos animais e voltar ao trabalho? Os pastores explicam que “não podemos”; há um costume estabelecido: “somente quando se ajuntarem todos os rebanhos” é que removem a pedra do poço e repartem a água (v.8). A resposta indica uma rotina arraigada – talvez “é assim que sempre fazemos” – que contrasta com a impaciência empreendedora de Jacó. Ele já demonstra ser homem de ação, disposto a quebrar protocolos para alcançar objetivos. Em todo caso, a conversa é interrompida pela aproximação de Raquel.


Raquel chega trazendo o rebanho de seu pai (v.6,9). A menção “porque ela era pastora” (v.9) é notável: o termo hebraico usado aqui no feminino (רֹעָה, ro‘ah) é raro, indicando que Raquel pessoalmente cuidava das ovelhas – possivelmente supervisora de pastores servos, mas também envolvida no trabalho físico. Isso ressalta sua diligência e humildade. Seu nome em hebraico significa “ovelha”, apropriado para alguém ligada aos rebanhos. Não havia desonra alguma em uma mulher trabalhar como pastora; pelo contrário, a Bíblia mostra esse labor honesto como digno – “um trabalho útil de que ninguém precisa se envergonhar”. Raquel, portanto, se destaca como ativa e laboriosa, cuidando dos negócios da família.

Ao avistar Raquel, Jacó entra em ação imediata. Sem esperar mais, “aproximou-se, removeu a pedra da boca do poço e deu de beber às ovelhas de Labão” (v.10). Essa cena é dramática: a pedra normalmente exigia a coordenação de vários pastores, mas Jacó a remove sozinho. O texto enfatiza que ele fez isso assim que viu “Raquel, filha de Labão, e as ovelhas de Labão, irmão de sua mãe” – repetindo “Labão, irmão de sua mãe” quase como motivação. Jacó reconhece parentes ali e presta um serviço notável. Comentadores observam que esse feito de força foi “hercúleo” ou “samsonesco”, uma exibição incomum de vigor físico por parte de Jacó. De fato, até aqui Jacó tem sido associado mais à astúcia que à força bruta, mas aqui ele mostra também capacidade física extraordinária. “É uma entrada soberba”, comenta Kidner, mostrando Jacó como impetuoso e empreendedor, em contraste com os pastores acomodados. Ele aproveita a oportunidade para impressionar: com um só gesto, resolve o problema da água e se apresenta como benfeitor da família de Raquel, não como um pedinte estranho. Esse ato sugere tanto cavalheirismo (ajudando a jovem e seu rebanho) quanto intenção deliberada de causar boa impressão ao tio Labão. A providência de Deus se une aqui à iniciativa de Jacó: assim como Rebeca havia mostrado hospitalidade ao servo de Abraão servindo-lhe água, agora é Jacó quem serve água aos rebanhos de sua futura noiva – um eco sutil de Gn 24, porém com papéis invertidos.


Após abeberar as ovelhas, Jacó não consegue conter sua emoção: “beijou Jacó a Raquel e ergueu a voz e chorou” (v.11). Esse beijo de Jacó em Raquel deve ser entendido dentro dos costumes da época. Não é dito que ele pediu permissão ou que Raquel esperasse tal gesto, mas, considerando que são parentes próximos (primos de primeiro grau), o beijo podia ser visto como uma saudação familiar calorosa, e não imediatamente um ato romântico impropriado. (Tanto é que no v.13 Labão também beija Jacó ao recebê-lo.) O choro em alta voz de Jacó expressa um intenso alívio e gratidão. Era a descarga emocional de quem via confirmada a promessa divina de companhia e sucesso. Jacó chorou “de alegria” – seus soluços altos ecoam os de outra cena em Gênesis, mas de sentido oposto: é a mesma frase usada para Esaú chorando de desespero ao perder a bênção (Gn 27:38). Aqui, porém, Jacó chora de júbilo. Podemos inferir que Jacó, mesmo sem palavras explícitas, estava louvando a Deus pela providência. Assim como o servo de Abraão havia bendito ao Senhor ao encontrar Rebeca – “Bendito seja o Senhor... que não retirou sua benignidade e fidelidade; eu, estando no caminho, o Senhor me guiou à casa dos parentes do meu senhor” (Gn 24:27) –, Jacó reconhece que Deus o guiou “no caminho” até os seus. A mão de Deus estava invisivelmente presente naquele encontro no poço. Para Jacó, encontrar Raquel – filha de Labão, irmão de sua mãe – num território estrangeiro, logo no início de sua busca, era a confirmação de que “Deus esteve comigo” conforme prometera (cf. 28:15).


Em meio às lágrimas, Jacó consegue se apresentar adequadamente: “E Jacó disse a Raquel que ele era parente de seu pai e que era filho de Rebeca” (v.12). Só então Raquel, compreendendo plenamente quem é aquele estranho prestativo – o filho da tia Rebeca de quem provavelmente ouvira histórias –, corre para contar a seu pai. Sua corrida lembra a de Rebeca, que também “correu” para casa com notícias do estrangeiro no poço (Gn 24:28). Raquel age com naturalidade e honra: embora tenha idade para cuidar de rebanhos sozinha, ela não toma decisões familiares sem o conhecimento do pai. “De maneira nenhuma tencionava receber as atenções deste parente sem o conhecimento e a aprovação do seu pai”, comenta Henry. Esse respeito mútuo no primeiro contato entre Jacó e Raquel – ele beijando-a em saudação e ela envolvendo o pai imediatamente – era um bom presságio de um relacionamento aprovado e abençoado, destaca Henry. Até aqui, tudo indica providência e decoro convergindo.


Ao ouvir o relato de Raquel, Labão prontamente sai ao encontro de Jacó (v.13). “Então Labão correu-lhe ao encontro, abraçou-o, beijou-o e o levou para sua casa.” Labão lembra-se, sem dúvida, da visita semelhante anos atrás, quando outro parente de longe veio (o servo de Abraão) trazendo ricos presentes. Daquela vez, Labão demonstrou hospitalidade após ver os braceletes de ouro dados a sua irmã (cf. Gn 24:29-31). Agora ele recebe Jacó com efusividade, possivelmente imaginando bênçãos similares. A narrativa, entretanto, insinua uma diferença: Jacó não traz presentes. Ele “contou a Labão todas estas coisas” – ou seja, relatou as circunstâncias de sua vinda (v.13). O texto não especifica o conteúdo. Jacó provavelmente explicou ser filho de Rebeca enviado a Padã-Arã para achar esposa (cf. 28:2) e mencionou a situação com Esaú apenas em termos gerais (fugindo de conflito familiar). É incerto quanto de seu passado Jacó revelou. Teria ele confessado que enganara Isaaque e tomara a bênção de Esaú? Alguns estudiosos duvidam, pois abrir totalmente sua história a Labão (um indivíduo astuto) poderia tornar Jacó vulnerável a explorações futuras. Talvez Jacó tenha enfatizado a instrução de Isaaque para encontrar uma esposa ali e omitido detalhes comprometedores. Em todo caso, Labão logo percebe que seu sobrinho chega de mãos vazias, sem caravana de dotes, aparentemente “mais um fugitivo do que um emissário rico”. Ainda assim, Jacó é sobrinho carnal, filho de sua irmã, e isso por si só demandava hospitalidade segundo os costumes.


Labão exlama: “Verdadiramente és tu o meu osso e a minha carne!” (v.14). Essa expressão idiomática denota parentesco próximo – a mesma frase foi usada por Adão ao reconhecer Eva como parte de si (Gn 2:23) e será usada por outras figuras bíblicas ao acolherem consanguíneos (cf. Gn 37:27; 2Sm 5:1). Aqui, é um reconhecimento oficial de Jacó como membro da família. Resta saber o tom: seria um afetuoso “Você é da família, sinta-se em casa!”? Ou, conforme alguns sugerem, um comentário calculista – “Agora vejo que você é realmente nosso parente (mesmo vindo sem nada), então não há escolha senão acolhê-lo”. Dado o caráter de Labão revelado depois, é possível que haja certa reserva nas boas-vindas. De todo modo, Labão abriga Jacó. Este então permanece ali por um mês (v.14). Durante esses dias, Jacó certamente não ficou ocioso: ele passou a ajudar nas lides do campo, cuidando dos rebanhos de Labão como parte da família. Tudo parecia correr bem – Deus protegera Jacó na viagem e o fizera achar refúgio e amor entre seus parentes, exatamente como prometido. Jacó, que saíra de casa fugido e só, agora está seguro na casa de seu tio, apaixonado por Raquel e servindo utilmente. “Este capítulo começa em tom alegre com a chegada bem-sucedida de Jacó... Tudo parece estar correndo às mil maravilhas, como se a promessa de Deus em Betel (28:15) estivesse se cumprindo sem impedimentos”. No entanto, o desenrolar mostrará que sob essa superfície promissora há tensões e lições a serem aprendidas. “Em Labão, Jacó encontrou o seu competidor e o seu meio de disciplina” – o astuto sobrinho logo vai provar do gênio enganador do tio. A narrativa, portanto, prepara o leitor: a mão de Deus está conduzindo Jacó, mas não o isentará de desafios; ao contrário, usará até as malícias humanas para cumprir seus propósitos e moldar Seu escolhido.

Comentários


bottom of page