Jacó assume a bênção de Esaú | Gênesis 26:34–28:9
- João Pavão
- 10 de set.
- 26 min de leitura

Contexto e análise: Estes versículos funcionam como transição para o drama seguinte. Quando Esaú completa quarenta anos (idade em que seu pai Isaque casou-se com Rebeca), ele toma duas esposas heteias, Judite e Basemate, mulheres cananeias. Tal escolha matrimonial é espiritualmente problemática: os hititas (heteus) eram pagãos da terra de Canaã, e essa aliança conjugal com famílias cananeias trouxe “amargura de espírito” a Isaque e Rebeca (v.35). O texto acentua aqui o contraste entre Esaú e a linhagem da promessa – enquanto Isaque foi cuidadosamente orientado por Abraão a não tomar esposa dentre as cananeias (cf. 24:3), Esaú despreza esse princípio e casa-se com mulheres locais.
Do ponto de vista literário, a menção repentina de Esaú e suas esposas estrangeiras “tem mais coisas do que os olhos podem ver”. Primeiro, ela marca um novo segmento narrativo: a fórmula inicial “quando Esaú tinha quarenta anos” (v.34) com “e aconteceu que...” (uma tradução de wayehi, sinal típico de transição narrativa) indica um novo episódio significativo. Segundo, esse dado antecipa e “prepara o terreno” para os eventos seguintes. A insensatez de Esaú em suas bodas pagãs ressalta a insensatez ainda maior de Isaque em planejar dar-lhe a primogenitura da família apesar disso. E, de fato, o problema das esposas de Esaú retornará ao fim da história (cf. 27:46–28:8), fechando o arco narrativo: Rebeca usará essa questão para justificar o envio de Jacó a Harã.
Aspectos textuais e históricos: Notemos que Gênesis 26:34 menciona as esposas heteias de Esaú pelo nome, porém outra lista em Gênesis 36 difere nos nomes e origens dessas mulheres. Por exemplo, Basemate aqui é chamada de filha de Elon, o hitita, ao passo que em Gênesis 36:3 Basemate aparece como filha de Ismael. Já Judite, filha de Beeri, não é mencionada em Gênesis 36, que traz em seu lugar Oolibama, de origem hevéia. Provavelmente, trata-se de mulheres com nomes alternativos ou títulos tribais diferentes, ou até poligamia adicional não narrada aqui. Essa aparente discrepância tem levado críticos de fonte a hipotetizar diferentes tradições, mas os próprios detalhes indicam uma unidade intencional do texto: a idade de Esaú (40 anos) espelha a de Isaque ao casar-se (cf. 25:20), e a queixa de Rebeca em 27:46 ecoa sua angústia anterior em 25:22, sugerindo continuidade autoral. Em todo caso, o ponto central destes versículos é teológico: Esaú “casou-se com pagãs”, desprezando a herança da fé, o que entristeceu profundamente seus pais e criou um ambiente familiar tenso e propício ao conflito da bênção.
Isaque Determina Abençoar Esaú em Secreto
Narrativa: Já idoso e praticamente cego, Isaque acredita estar perto da morte (apesar de viver ainda muitos anos após este episódio, cf. 35:28-29). Ele chama seu primogênito Esaú em segredo, pedindo-lhe que prepare uma comida saborosa de caça, “como eu aprecio”, para então conceder-lhe a bênção patriarcal antes de morrer (v.4). Essa cena revela muito sobre o estado de espírito de Isaque e as dinâmicas familiares: Isaque favorece Esaú (cf. 25:28) e pretende fazer dele o herdeiro principal, mesmo sabendo que Deus havia profetizado o contrário (Gn 25:23) e ignorando que Esaú vendeu seu direito de primogenitura a Jacó (Gn 25:33). O texto sugere que Isaque planeja a cerimônia de transmissão da bênção de forma privada, provavelmente à revelia de Rebeca e Jacó. Isso indica que Isaque estava ciente da controvérsia – suas intenções conflitam com a revelação divina e com os interesses de Rebeca por Jacó.
Exegese e detalhes originais: A solicitação de Isaque enfatiza seus sentidos físicos: “faz-me um guisado saboroso, como eu gosto”. No hebraico, a palavra traduzida como “guisado saboroso” (mat‘ammîm) denota iguaria deliciosa; já “minha alma te abençoe” (v.4) é uma expressão idiomática hebraica em que “minha alma” (nephesh) intensifica o envolvimento pessoal de Isaque nesse ato solene. Há aqui uma ênfase nos apetites de Isaque, sugerindo criticamente que seu paladar e afeição por Esaú (um caçador que lhe provia carne de caça) estavam indevidamente guiando uma decisão espiritual crucial. De fato, o comentarista Derek Kidner observa com ironia que “o paladar de Isaque governava seu coração e silenciava sua língua”, pois ele nunca confrontou Esaú pelos erros (como os casamentos pagãos) e agora “propõe fazer de seu paladar o árbitro entre povos e nações” ao conceder a bênção familiar motivado por um prato de caça. Essa crítica ressalta a frivolidade de Isaque naquele momento: a transmissão da promessa abraâmica – que afetaria gerações e nações – estava sendo tratada por ele quase como uma transação condicionada a satisfazer seus desejos gustativos.
Teologicamente, o ato de Isaque é problemático. Sabendo ou não da venda da primogenitura, ele certamente conhecia o oráculo divino de que “o mais velho serviria ao mais novo” (25:23). Ainda assim, intenta “usar o poder de Deus para frustrar o plano de Deus”, isto é, deseja invocar a bênção divina sobre Esaú contra o que Deus anunciara. Kidner chega a afirmar que essa postura de Isaque beira a superstição mágica, não a fé legítima. Já o teólogo Bruce Waltke interpreta que, na velhice, Isaque se tornara teimoso e míope espiritualmente: “seus olhos não podiam reconhecer a orientação divina” e ele estava “indisposto a submeter-se aos planos de Deus diferentes de seus desejos pessoais”. Em suma, Isaque aqui representa o crente decadente que tenta dar preferência à carne sobre a promessa, pondo em risco a continuidade fiel da aliança.
Nota histórica: Isaque tinha cerca de 100 anos nesta época (pois os gêmeos Jacó e Esaú nasceram quando ele tinha 60, cf. 25:26, e Esaú casou-se aos 40, cf. 26:34). Curiosamente, Isaque acabaria vivendo até os 180 anos (35:28-29). Sua declaração “não sei o dia da minha morte” (v.2) revela incerteza e talvez ansiedade típica de quem sente a vitalidade declinar. Pode-se especular que Isaque, cego e possivelmente enfermo, via a morte do meio-irmão Ismael (que faleceu aos 137 anos, 25:17) e por isso decidiu apressar o rito de bênção. Na cultura patriarcal, a bênção final do pai tinha peso de testamento espiritual e legal, considerada eficaz e irrevogável uma vez proferida. Este pano de fundo explica por que Isaque, mesmo enganado, mais tarde confirma a bênção a Jacó sem tentar anulá-la (27:33), e por que Esaú, chorando, reconhece não haver mais o que fazer (27:34,38; cf. Hb 12:17).
Rebeca e Jacó Conspiram para Obter a Bênção
Rebeca, escutando às ocultas a conversa de Isaque com Esaú (v.5), entra imediatamente em ação. Ciente de que Isaque planeja abençoar Esaú “na presença do Senhor” (v.7) – portanto, uma solenidade irrevogável – ela decide intervir em favor de Jacó, seu filho caçula e favorito (25:28). Rebeca elabora um plano audacioso de engano deliberado: instrui Jacó a pegar dois cabritos do rebanho, para que ela prepare um guisado saboroso semelhante ao da caça de Esaú, e assim Jacó possa se passar pelo irmão diante do pai cego (v.8-10). Jacó inicialmente resiste, mas não por escrúpulo moral e sim por medo: “E se meu pai me apalpar? Serei aos olhos dele como um enganador, e trarei sobre mim maldição e não bênção” (v.12). Essa resposta é reveladora – Jacó não questiona a ética de mentir, apenas teme ser descoberto e amaldiçoado. Seu protesto baseia-se mais no temor das consequências do que num princípio de honestidade, o que condiz com sua personalidade astuta já vista ao tomar o primogênito de Esaú por meio de uma barganha oportunista (25:31-33). Rebeca, porém, não se demove: “Caia sobre mim a tua maldição, meu filho” (v.13). Ela assume a responsabilidade caso algo dê errado, insistindo que Jacó obedeça. Essa determinação de Rebeca sugere que ela considera justificado qualquer meio para garantir que Jacó receba a bênção, possivelmente por confiar na palavra profética dada a ela antes do nascimento dos gêmeos (25:23).
Jacó então consente e executa as ordens maternas. Rebeca prepara rapidamente um prato saboroso igual ao de Esaú (v.14). Em seguida, disfarça Jacó cuidadosamente: veste-o com as melhores roupas de Esaú (que provavelmente tinham o odor característico do caçador) e cobre as partes expostas de sua pele – mãos e pescoço – com peles de cabrito (v.15-16). O fato de tal artifício ser necessário (e depois funcionar) ilustra quão extremamente peludo Esaú devia ser, a ponto de a pele de animal lembrar o toque de sua pele! (Esaú desde o nascimento já era descrito como cabeludo, cf. 25:25). Alguns estudiosos veem aqui uma hipérbole humorística da narrativa; outros sugerem que as cabras usadas (capra aegagrus hircus talvez) tinham pêlos grossos, de textura semelhante a cabelos, tornando a fraude tangivelmente plausível a um idoso quase cego. De todo modo, a cena ressalta a astúcia de Rebeca e Jacó em antecipar cada sentido de Isaque: ao cobrir o tato (pelos) e o olfato (roupas de Esaú), ao prover o paladar (guisado) e até preparar respostas para quaisquer perguntas, eles tentarão enganar o pai por todos os meios.
Ética e fé: A Escritura narra os fatos sem aprová-los moralmente. É evidente que a conduta de Rebeca e Jacó é reprovável – envolve mentir, enganar um ancião cego e profanar o nome de Deus (Jacó chegará a envolver o nome do “Senhor teu Deus” na mentira; v.20). Ainda assim, motiva-os uma “causa justa”: assegurar a bênção ao filho escolhido por Deus no oráculo prenatal (25:23) e talvez evitar que Esaú, o filho espiritualmente despreparado, lidere a família da aliança. Essa tensão gera diferentes interpretações teológicas. Expositores reformados enfatizam que, apesar dos métodos tortuosos, o propósito soberano de Deus em eleger Jacó prevalece – não pelos méritos de Jacó, mas pela graça divina, conforme Paulo depois comenta: “Antes que os gêmeos nascessem ou fizessem bem ou mal, para que o propósito de Deus quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama, foi dito a Rebeca: o mais velho servirá ao mais moço” (Rm 9:11-12, cf. Ml 1:2-3). Outras correntes teológicas tendem a salientar a responsabilidade humana: alguns defendem que Rebeca deveria ter esperado Deus agir sem engano, ou que Jacó, embora escolhido, precisaria aprender a não usar de trapaças – algo que de fato ocorrerá ao longo de sua vida (ele mesmo será enganado por Labão e passará por provações até ser transformado). Em Hebreus 12:16-17, por exemplo, a ênfase recai sobre a impiedade de Esaú, sem elogiar Jacó; Jacó é escolhido apesar de sua falha moral, não por causa dela. Assim, a moralidade ambígua deste episódio traz uma lição apologética: a Bíblia não esconde as falhas de seus “heróis da fé”. Ao contrário, mostra Deus cumprindo seus desígnios apesar do pecado humano – contudo, os envolvidos sofrem as consequências de seus atos.
Consequências imediatas: Rebeca declara: “Caia sobre mim a maldição”. Essa frase trágica terá eco nos resultados. Embora nada de místico aconteça com Rebeca instantaneamente, podemos enxergar a ironia providencial: ela de fato arcará com o preço de sua trama. Para salvar Jacó da fúria de Esaú, Rebeca o enviará longe e nunca mais verá seu filho amado (quando Jacó retornar, anos depois, Rebeca já terá morrido – cf. 35:8). Sua intervenção garante a bênção a Jacó, mas custa-lhe o convívio familiar. Jacó, por sua vez, obterá a primazia, porém ao preço de exílio, rompimento com o irmão e muitos anos de dificuldades longe do lar. Essa “colheita do ódio” é notada por comentaristas: “Rebeca e Jacó... tinham causa justa, mas não buscaram a Deus nem agiram com fé ou amor, e colheram o fruto do ódio”. Em suma, Deus escreverá certo por linhas tortas, confirmando Jacó como herdeiro da promessa, porém os “truques” dos personagens produzirão sofrimento desnecessário – um alerta de que fins justos não justificam meios pecaminosos.
Jacó Engana Isaque e Recebe a Bênção Patriarcal
A cena do engano: Jacó, trajando as roupas de Esaú e com os pelos falsos, aproxima-se de Isaque levando a refeição (v.18). Segue-se um diálogo tenso e dramático, no qual cada sentido de Isaque é testado. Quando Jacó o saúda como “meu pai”, Isaque estranha a voz e pergunta: “Quem és tu, meu filho?” (v.18). Jacó então profere a primeira mentira direta: “Eu sou Esaú, teu primogênito” (v.19). Afirma ainda: “Fiz como me pediste; levanta-te agora, senta-te e come da minha caça, para que me abençoes.” A prontidão com que a comida chegou suscita a desconfiança de Isaque: “Como achaste [a caça] tão depressa, meu filho?” (v.20). Jacó envolve até o nome de Deus em sua fraude, respondendo blasfemamente: “Porque o Senhor teu Deus a mandou ao meu encontro.” Isaque permanece cauteloso e propõe verificar pelo tato: “Chega-te para que eu te apalpe... és tu meu filho Esaú ou não?” (v.21). Jacó aproxima-se e deixa que o pai sinta suas mãos e pescoço cobertos de pelo. O veredicto de Isaque mostra sua confusão: “A voz é a voz de Jacó, porém as mãos são de Esaú” (v.22). Confiando mais no que tateia do que no que ouve, e talvez persuadido pelo aroma das vestes de Esaú, Isaque não reconhece o engano (v.23). Ainda assim, pergunta novamente de forma direta: “Tu és mesmo meu filho Esaú?” – ao que Jacó responde sem hesitar: “Eu sou.” (v.24).
Convencido (ou rendido à insistência), Isaque pede que o filho impostor se aproxime e o beije (v.26). Este beijo filial – ironicamente um sinal de traição, à semelhança do beijo de Judas séculos depois – serve para que Isaque sinta o cheiro das roupas, o “aroma do campo” de Esaú. Isso dissipa quaisquer dúvidas remanescentes: “Eis que o cheiro do meu filho é como o cheiro do campo, que o Senhor abençoou” (v.27). Isaque então, satisfeito nos sentidos do paladar, tato e olfato, e ignorando o sentido da audição, finalmente transmite a bênção solene a Jacó, pensando ser Esaú.
Conteúdo e forma da bênção: Os versos 27b-29 registram a bênção patriarcal propriamente dita, em linguagem poética e elevadamente solene. Ela consiste em três partes principais: (1) Prosperidade agrícola – “Que Deus te dê do orvalho do céu e da fertilidade da terra, e abundância de trigo e vinho” (v.28). Aqui Isaque deseja ao filho uma terra fértil e a provisão das colheitas, evocando a imagem de Canaã como terra abençoada por Deus (essa linguagem ecoa promessas posteriores sobre a Terra Prometida, cf. Dt 11:11-15). (2) Supremacia política/familiar – “Sirvam-te povos, e nações se curvem a ti. Sê senhor de teus irmãos, e os filhos de tua mãe se curvem a ti” (v.29a). Isto confere autoridade e liderança: Jacó (pensado como Esaú) é estabelecido como chefe, não apenas sobre um clã, mas sobre povos e “irmãos”. A menção a “filhos de tua mãe” é significativa e profética – embora haja somente Esaú como irmão de sangue, a frase antevê os descendentes de Esaú (edomitas) e possivelmente outras linhagens colaterais. Trata-se do repasse do direito de primogenitura: Jacó é feito senhor da família, cumprindo (sem Isaque saber) o oráculo de que o mais velho serviria ao mais novo. De fato, esta parte da bênção contraria diretamente o plano inicial de Isaque, que era favorecer Esaú; porém Deus, em Sua providência, “toma e reorienta as vacilações e ambições de Isaque”, fazendo com que ele profira exatamente o contrário do que pretendia – Isaque tentou dar a Esaú “um império” e submeter Jacó, mas acabou concedendo a Jacó domínio e cumprimento do oráculo divino. (3) Maldição e bênção condicionais – “Malditos os que te amaldiçoarem, e benditos os que te abençoarem” (v.29b). Essa cláusula final explicitamente ecoa a promessa da aliança abraâmica (compare Gn 12:3: “Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem”). Com isso, Isaque – sem plena consciência – transmite a Jacó a bênção de Abraão, a eleição divina e proteção especial sobre ele e sua descendência.
O caráter irrevogável e quase “profético” dessa bênção é notável. Na cosmovisão antiga, acreditava-se que as bênçãos proferidas pelo patriarca, sob a invocação de Deus, tinham poder estabelecido. Hebreus 11:20 confirma que “pela fé Isaque abençoou Jacó e Esaú, acerca do futuro”, indicando que, apesar de suas falhas, Isaque no fundo reconhecia estar pronunciando algo que Deus honraria. Quando, logo em seguida, Isaque descobre o engano, ele “tremeu fortemente” (v.33) – no hebraico, uma expressão de abalo extremo (haradá gedolá ad-me’od) – e ainda assim afirma: “e ele será bendito”, referindo-se a Jacó. Ou seja, Isaque percebe naquele momento que lutou contra a vontade de Deus e foi vencido. Essa tremenda reação sugere não apenas choque, mas também convicção espiritual: Isaque entende que a bênção dada não pode ser transferida a Esaú, pois o próprio Deus a direcionou a Jacó. Assim, ele submete-se enfim à soberania divina, confirmando: “Sim, e ele será abençoado” (v.33) – como quem diz: “Que seja feita a vontade de Deus, não a minha”.
Desespero de Esaú e confirmação de Isaque: Quase imediatamente após Jacó sair da presença do pai, Esaú retorna de sua caça e prepara também um guisado saboroso, apresentando-se confiante para receber a bênção (v.30-31). A cena é dramática: Isaque pergunta quem ele é, e Esaú responde: “Sou Esaú, teu filho primogênito” (v.32). “Então estremeceu Isaque de um grande estremecimento” (v.33) – aqui percebemos a profunda consternação do patriarca ao compreender que foi enganado. Em meio ao abalo, ele informa a Esaú que já abençoou quem lhe trouxe a caça antes: “quem foi, pois, aquele que apanhou a caça e ma trouxe? ... eu o abençoei, e ele será bendito” (v.33). Esta última frase, como mencionado, é crucial: Isaque ratifica a bênção sobre Jacó, reconhecendo tacitamente a mão de Deus no ocorrido. Não há tentativa de revogar ou “dar outra” bênção equivalente a Esaú. Isso decorre tanto da convicção de que a palavra dita é eficaz, quanto da compreensão tardia de Isaque de que ele não pode contender contra o decreto divino.
Ao ouvir isso, Esaú solta um brado angustiante e amargo (v.34). O narrador descreve-o como “um forte e muito amargo clamor”, evidenciando a dor profunda de Esaú ao perceber que perdeu irreversivelmente a bênção. Em prantos, ele suplica: “Abençoa-me também a mim, meu pai!” (v.34). A resposta de Isaque é pesarosa: “Teu irmão veio com astúcia e tomou a tua bênção” (v.35). Esaú lamenta então a dupla perda infligida por Jacó: “Não é com razão que se chama ele Jacó [Ya‘aqov, suplantador]? Pois já duas vezes me enganou [ya‘aqveni, suplantou-me]: tirou-me o direito de primogenitura, e agora tomou minha bênção!” (v.36). Aqui há um jogo de palavras em hebraico: o nome Jacó (Ya‘aqov) é associado ao verbo ‘aqav, “enganar/suplantar”. Esaú interpreta toda a situação como resultado da astúcia intrínseca do irmão – esquecendo convenientemente que no caso do direito de primogenitura ele próprio o vendeu por um prato de lentilhas (Gn 25:33). Seu ressentimento o leva a clamar: “Não reservaste uma bênção para mim?” (v.36).
Isaque responde revelando a totalidade do que conferiu a Jacó: “Eu o constituí teu senhor, e dei-lhe todos os seus irmãos por servos; do trigo e do vinho o fortaleci” (v.37). Em outras palavras, nada de substancial sobrara para Esaú dentro daquela bênção principal – Jacó recebera a autoridade sobre os parentes (inclusive Esaú) e a prosperidade agrícola. “Que farei, pois, por ti, meu filho?”, lamenta Isaque. Esaú insiste, chorando: “Meu pai, acaso tens uma só bênção? ... Abençoa-me também a mim” (v.38). A insistência e lágrimas de Esaú enfatizam seu desespero, contudo Hebreus 12:16-17 lança uma luz teológica sobre este momento: Esaú é chamado de “profano” por haver desprezado previamente seu direito por um repasto, e “embora com lágrimas buscasse o lugar de arrependimento”, não pôde reverter a perda. Ou seja, suas lágrimas agora não são de verdadeiro arrependimento espiritual, mas de remorso por perder a bênção – um alerta bíblico de que certas decisões (como desprezar as coisas de Deus) podem trazer consequências irreparáveis, mesmo que depois haja choro.
“Bênção” de Esaú – oráculo de juízo misturado com misericórdia: Finalmente, Isaque profere algo para Esaú nos vv.39-40. O texto hebraico destas palavras permite duas traduções principais, gerando interpretações distintas. Tradicionalmente, muitas versões trazem: “Eis que a tua habitação será longe das gorduras da terra e longe do orvalho do alto céu” (v.39, interpretação como juízo), enquanto outras entendem: “Eis que a tua habitação será nas gorduras da terra e no orvalho do céu” (tomando as preposições como locativas, implicando uma bênção menor). O contexto e a estrutura paralela com a bênção de Jacó indicam que a primeira tradução é mais provável: Esaú não receberá a “fertilidade da terra” de Canaã prometida a Jacó, mas antes viverá afastado dela. De fato, Edom (os descendentes de Esaú) habitaram a região montanhosa de Seir, ao sul do Mar Morto – um território mais árido e menos produtivo que as campinas de Israel. Assim, a fala de Isaque começa como um “eco melancólico” da bênção de Jacó, invertendo-lhe os termos.
No v.40, Isaque continua: “Pela tua espada viverás”. Este trecho prediz que a história de Esaú/Edom seria marcada pela conflitividade e vida guerreira – sobrevivendo não tanto de agricultura estável, mas da espada, possivelmente pelo saque ou defesa militar constante. Além disso: “e servirás a teu irmão”. Aqui novamente se cumpre o oráculo divino: Edom acabaria sujeito a Israel em vários períodos (por exemplo, foi subjugado pelo rei Davi em 2Sm 8:14). No entanto, Isaque acrescenta uma esperança de liberdade: “quando te libertares, sacudirás o seu jugo da tua cerviz”. Isso antevê que chegaria tempo em que Edom romperia o domínio israelita. De fato, historicamente, Edom se rebelou e quebrou o jugo de Judá em tempos posteriores (cf. 2Rs 8:20-22). Portanto, embora a “bênção” de Esaú seja em grande parte um oráculo desfavorável – descrevendo um destino duro, distante da prosperidade de Jacó e em posição subalterna – há uma nota final de autonomia: Esaú não estará para sempre submisso. Kidner resume: “Isaac pronuncia para Esaú o apropriado destino de alguém profano: a liberdade de viver sem ser abençoado (v.39) e não dominado (v.40)”. Essa liberdade “sem bênção” significa que Esaú e sua descendência (Edom) ficarão fora da linha da promessa divina, porém não desaparecerão sob o jugo do irmão – teriam sua própria identidade nacional, porém sem os privilégios espirituais do pacto abraâmico.
Do ponto de vista doutrinário, o contraste entre as duas bênçãos (Jacó e Esaú) sublinha o tema da eleição divina. Jacó recebe, por graça, a primazia e a promessa messiânica; Esaú, que mostrou desprezo pelas coisas sagradas, é deixado de fora. Séculos depois, o profeta Malaquias evocaria estas figuras para ilustrar o amor eletivo de Deus por Israel: “Eu amei a Jacó e aborreci a Esaú; fiz dos montes deste uma desolação...” (Ml 1:2-3). Paulo cita Malaquias ao discutir a eleição em Romanos 9:10-13, enfatizando que antes mesmo de nascerem Deus já diferenciara os destinos de Jacó e Esaú, “não por obras, mas por aquele que chama”. É crucial entender que, no contexto de Gênesis, Esaú não é amaldiçoado pessoalmente por Deus sem motivo – ele colhe as consequências de suas próprias escolhas profanas. A narrativa o pinta como impulsivo e secular (vendendo a primogenitura por um prato de comida e contraindo matrimônios ímpios), em contraste com Jacó, que apesar de seus métodos tortuosos ansiava pela bênção de Deus. Assim, numa perspectiva reformada, Esaú representa o “réprobo” que despreza a graça e fica de fora, enquanto Jacó representa o eleito imerecido que Deus disciplina e redime. Outras abordagens teológicas ressaltam que Esaú poderia ter agido diferentemente – ele buscou remediar as coisas de forma superficial (como veremos nos vv.6-9) e não com arrependimento genuíno, por isso não encontrou lugar de mudança. Em síntese, a história ensina a valorizar as promessas de Deus (a primogenitura espiritual) e adverte que negligenciá-las pode levar a perdas irreversíveis, como aconteceu com Esaú.
Conflito e perigo: Após perder a bênção, Esaú concebe um ódio assassino contra Jacó. O versículo 41 relata que “Esaú passou a odiar Jacó por causa da bênção” e disse a si mesmo que, tão logo passassem os dias de luto pela morte de Isaque, mataria Jacó. Isso reflete o costume de aguardar o luto do pai idoso para então vingar-se, de modo a não agravar a dor familiar naquele momento. Embora Isaque não viesse a morrer tão cedo, Esaú parece acreditar que o pai está nos últimos dias, e planeja agir em breve. Esta intenção lembra Caim contra Abel – uma trama de fratricídio motivada por inveja espiritual. Há também uma ironia amarga: Esaú chama Jacó de “enganador”, mas agora ele mesmo se torna potencial homicida. A promessa divina a Abraão incluíra “amaldiçoarei quem te amaldiçoar” – se Esaú matar Jacó, estaria atraindo sobre si maldição direta. Assim, Rebeca tem razão ao temer “ser privada de ambos os filhos num só dia” (v.45): se Esaú matasse Jacó, ou este seria vingado (custando a vida de Esaú), ou Esaú seria amaldiçoado por Deus. De qualquer forma, ela perderia um filho para a morte e o outro para o exílio ou execução.
Rebeca mais uma vez demonstra astúcia e rapidez em compreender a situação e agir. Ao saber (provavelmente por ouvir dizer ou pela mudança de atitude de Esaú) do plano homicida, ela imediatamente adverte Jacó: “Eis que Esaú... se consola planejando te matar” (v.42). Ordena então: “Agora, pois, meu filho, ouve a minha voz: levanta-te e foge a Harã, para a casa de Labão, meu irmão” (v.43). A instrução é para que Jacó permaneça lá “alguns dias” até que passe a fúria de Esaú. Rebeca acredita (ou espera) que a ira do primogênito será temporária e que ela poderá chamar Jacó de volta quando for seguro (v.44-45). Esse “alguns dias”, contudo, acabará se tornando vinte anos – mostrando talvez um otimismo ingênuo de Rebeca ou apenas o seu desejo de tranquilizar Jacó de que seria breve. De toda forma, Rebeca percebe que a única solução é Jacó sair do alcance de Esaú até que este desista da vingança. Aqui, Jacó passa do papel de enganador bem-sucedido ao de fugitivo em risco de vida – um exemplo vívido de como o pecado pode ter consequências imediatas mesmo após alcançar seu objetivo.
Diplomacia de Rebeca com Isaque: Rebeca não apenas aconselha Jacó a fugir, mas vê a necessidade de obter o consentimento de Isaque para sua partida. Em vez de revelar diretamente “Esaú quer matar Jacó” (o que poderia levar a um confronto aberto entre pai e filho, ou descrédito para Jacó), Rebeca opta por uma abordagem estratégica. Ela diz a Isaque: “Estou aborrecida da vida por causa das mulheres heteias; se Jacó tomar esposa dentre as filhas desta terra, como estas, da terra de Canaã, de que me adianta a vida?” (v.46). Rebeca retoma o tema das noras pagãs (as esposas de Esaú) que tanto a amarguravam, e expressa de forma dramática que não suportaria ver Jacó casado com uma cananeia. Este argumento, embora verdadeiro em si (ela realmente desgostava das noras hititas), serve de desculpa perfeita para justificar a necessidade de Jacó deixar Canaã e ir à terra da família dela (Padã-Arã) para buscar uma esposa apropriada. É um “golpe de mestre diplomático”, como observam os comentaristas: Rebeca toca na consciência e nos princípios de Isaque, lembrando-o tacitamente da conduta de Abraão (que procurou uma esposa piedosa para Isaque dentre a parentela, cf. cap. 24). Além disso, ela apela ao amor de Isaque pelo próprio bem-estar: “Estou aborrecida da vida” – ou seja, “minha vida será insuportável se Jacó também se unir a mulheres pagãs.” Até um marido relutante ficaria alarmado diante da perspectiva da esposa definhar de desgosto ou da família afundar espiritualmente.
A estratégia de Rebeca surte efeito. Como veremos nos versos seguintes (28:1-5), Isaque concorda prontamente em enviar Jacó a Padã-Arã para casar-se dentro da linhagem. Assim, Rebeca salva Jacó tanto da morte quanto de um casamento inconveniente, alinhando o curso dos eventos aos propósitos divinos (preservar a semente escolhida e a pureza religiosa da família). Note-se que Rebeca cuidadosamente evita mencionar o perigo de Esaú – ela prefere que Isaque pense estar agindo apenas por motivo de casamento, e assim o orgulho de Esaú não é exposto nem exacerbado. Essa fina manipulação demonstra mais uma vez a perspicácia de Rebeca em gerir as personalidades da casa: “A rapidez com que Rebeca compreende situações e personalidades mostra-se de novo”, comenta Kidner, “primeiro ao reconhecer que deve perder Jacó para salvá-lo, e depois no seu manejo persuasivo tanto do filho quanto do pai”. De Jacó, ela obtém obediência imediata para fugir; de Isaque, obtém apoio e envio oficial de Jacó a um lugar seguro. Sua vitória diplomática é completa – porém, como já notamos, custa-lhe caro: Jacó parte e Rebeca nunca mais o encontra. A mãe amorosa colhe aquilo que decretara: “Caia sobre mim a maldição”. Ela preservou a vida e o futuro de Jacó, mas pagou com a própria solidão na velhice.
Paralelos intertextuais: O episódio da briga pela bênção e a subsequente fuga de Jacó ecoam padrões maiores no livro de Gênesis. Temos aqui mais um caso de conflito entre irmãos onde o mais novo assume a primazia sobre o mais velho (assim como ocorrera com Caim/Sete, Ismael/Isaque, e mais tarde ocorrerá com José e seus irmãos). A diferença é que, neste caso, o conflito leva a um longo período de separação seguido de futura reconciliação (como antecipa Gênesis 33). De fato, a estrutura literária do “Ciclo de Jacó” (Gn 25–35) é organizada de forma quase concêntrica: a fraude de Jacó contra Esaú (aqui em 27:1–28:5) tem seu paralelo na reconciliação de Jacó com Esaú em 33:1-17. Entre esses dois polos, Jacó passa por um exílio transformador em Padã-Arã (cap. 29–31) e tem encontros diretos com Deus (Betel em 28:10-22, e Peniel em 32:22-32). Esse arranjo narrativo destaca que o engano de Jacó é um ponto de virada em sua vida – ele sai de Canaã abençoado mas quebrado em suas relações, e só retornará muitos anos depois, mais maduro e em paz com seu irmão. Em outras palavras, a história de Jacó é a de “um progresso de fé”, na qual ele precisa enfrentar as consequências do que semeou para então ser moldado por Deus. E Rebeca, que impulsionou Jacó na direção certa (a busca da bênção), não pôde acompanhá-lo nessa jornada de amadurecimento espiritual.
Isaque Despede Jacó com a Bênção de Abraão
Obediência e nova bênção: Convencido pelas palavras de Rebeca, Isaque chama Jacó e formaliza as instruções para sua viagem. Ele abençoa Jacó novamente antes da partida, mas desta vez com pleno conhecimento de quem Jacó é e de forma deliberada. Isaque ordena que Jacó não tome esposa dentre as cananeias (reforçando o tabu já violado por Esaú), mas sim que vá à família de Rebeca, em Padã-Arã (Mesopotâmia), e case-se com uma das filhas de Labão, irmão de Rebeca (vv.1-2). Aqui vemos Isaque retomando o modelo de Abraão: assim como Abraão enviara um servo à terra dos parentes para achar esposa para Isaque (cap.24), agora o próprio Isaque envia seu filho à mesma parentela para garantir um casamento dentro do povo da fé. Implicitamente, Isaque reconhece que as noras hititas de Esaú foram um erro e deseja evitar isso para Jacó – ou seja, ele finalmente age como patriarca zeloso da herança espiritual.
Nos versos 3-4, Isaque pronuncia sobre Jacó uma bênção que explicita a transmissão da aliança abraâmica: “Que Deus Todo-Poderoso (El Shaddai) te abençoe, te faça fecundo e te multiplique, para que venhas a ser uma comunidade de povos; e te dê a bênção de Abraão, a ti e à tua descendência, para que possuas a terra de tuas peregrinações, que Deus deu a Abraão.”. Vários aspectos merecem destaque aqui:
O título divino El Shaddai (Deus Todo-Poderoso) é significativo. Foi o nome pelo qual Deus se revelou a Abraão ao confirmar Sua aliança (Gn 17:1-8). Agora Isaque invoca El Shaddai ao abençoar Jacó, conectando explicitamente Jacó à aliança abraâmica. Indica que Isaque aceita plenamente que Jacó é o portador legítimo da promessa divina. Este momento é possivelmente o mais elevado de Isaque espiritualmente após a crise: ele abraça o plano de Deus e voluntariamente passa o bastão do pacto adiante.
A expressão “te faça... uma comunidade de povos” (v.3) traduz o hebraico qahal ‘ammim. Este é um termo notável, pois qahal significa “congregação, assembleia” – é, de fato, a palavra usada no AT para a comunidade do povo de Deus (muitas vezes traduzido por “congregação” de Israel, e análogo ao conceito de “igreja” no NT). Aqui, é a primeira aparição bíblica dessa palavra aplicada profeticamente aos descendentes de Jacó. Significa que dos filhos de Jacó surgirá não apenas uma família, mas uma coletividade organizada, coesa, um povo em assembleia – em última análise, as 12 tribos de Israel formando uma nação santa. A bênção, portanto, expande o horizonte: Jacó não será apenas patriarca de uma família, e sim ancestral de um povo múltiplo e unido (a promessa feita a Abraão de “muitas nações” encontra aqui um reflexo, indicando que o povo de Israel congregará muitas tribos e também, em sentido maior, abençoará nações).
O v.4, ao dar “a bênção de Abraão” a Jacó, deixa inequívoco que Jacó é agora o herdeiro do pacto: inclui a descendência (“a ti e à tua semente”) e a terra (“possuir a terra... que Deus deu a Abraão”). Ou seja, os dois grandes elementos da promessa abraâmica – descendência numerosa e posse da terra de Canaã – são confirmados a Jacó. Isso realiza formalmente o que antes ocorrera de forma enganosa: Jacó recebe do pai tanto a liderança familiar quanto as promessas divinas de salvação. A menção explícita de Abraão liga Jacó na linhagem de sucessão: Abraão → Isaque → Jacó. Na tradição patriarcal e reformada, este momento é crucial, pois demonstra a eleição incondicional de Deus se concretizando na história familiar. Isaque, que antes resistira, agora voluntariamente coopera com o desígnio do Senhor.
Assim, Jacó despede-se de Isaque com a bênção paterna e a missão clara de buscar uma esposa temente a Deus na terra dos seus antepassados. O versículo 5 resume que Jacó partiu para Padã-Arã, para a casa de Labão, irmão de Rebeca. O texto sublinha o parentesco (“filho de Betuel, arameu, irmão de Rebeca, mãe de Jacó e Esaú”), enfatizando a legitimidade da família de Labão como origem adequada para uma esposa – eles são arameus de Harã, não cananeus. Essa preocupação etno-religiosa reforça o tema da separação do povo da aliança em relação aos cananeus pagãos, preludiando a futura proibição mosaica de casamentos mistos com povos idólatras. Historicamente, Padã-Arã refere-se à planície ao redor de Harã, no alto Eufrates (atualmente norte da Síria/Turquia). Era a terra natal de Rebeca e também onde Naor (irmão de Abraão) se estabelecera. Jacó enfrenta agora uma longa jornada (cerca de 800 km) rumo ao norte, deixando a Terra Prometida por um tempo.
Reflexão teológica: Este trecho marca uma virada importante na atitude de Isaque e no status espiritual de Jacó. Isaque, que antes confiara em seus sentidos naturais e preferências carnais, agora age como patriarca obediente a Deus – reconhecendo que “os planos de Deus eram melhores que os seus próprios” e desistindo de lutar contra eles. Jacó, por sua vez, sai de cena empoderado pela bênção mas vulnerável: ele não leva posses nem comitiva (foge às pressas, sozinho, como veremos em 28:10-11), tem um futuro incerto e perigos pelo caminho. Tudo que ele carrega é a promessa dada – tanto a palavra do pai quanto, logo adiante, a palavra do próprio Deus em Betel. Wiersbe nota que “a única coisa na qual [Jacó] podia se apoiar era a bênção de seu pai” e que aquele jovem “caseiro” agora teria de se tornar peregrino, andando por fé. Em outras palavras, Jacó inicia aqui sua “segunda fase”: sai de debaixo das asas da mãe e do conforto do lar, para ser tratado diretamente por Deus. É um lembrete de que a bênção de Deus frequentemente envolve um chamado a sair da zona de conforto – Jacó recebeu a promessa, mas precisará percorrer um longo caminho (literal e figurado) até se tornar o Israel que Deus quer.
Esaú Tenta Agradar os Pais com um Novo Casamento
Tomando medidas tardias: Estes versículos finais mostram uma reação de Esaú aos eventos recentes, ilustrando novamente seu caráter e falta de compreensão espiritual. Esaú percebeu “que Isaque abençoara Jacó e o enviara a Padã-Arã, para tomar de lá esposa; e, abençoando-o, dera-lhe ordem de não tomar mulher dentre as filhas de Canaã” (v.6). Também notou “que Jacó obedecera a seu pai e a sua mãe e fora a Padã-Arã” (v.7). Ou seja, Esaú se deu conta clara de duas coisas: (1) seus pais desaprovavam as esposas cananeias (afinal, Isaque explicitamente proibiu Jacó de fazer o que Esaú fizera); (2) Jacó contava agora com o favor e obediência que ele, Esaú, não demonstrara antes. Diante disso, Esaú tenta recuperar terreno aos olhos dos pais: “Sabendo, pois, Esaú... que as filhas de Canaã eram más aos olhos de Isaque, seu pai, foi Esaú a Ismael e tomou por mulher, além das que já tinha, a Maalate, filha de Ismael, filho de Abraão, irmã de Nebaiote” (vv.8-9). Em outras palavras, Esaú decide contrair um novo casamento, desta vez dentro da parentela de Abraão, como um gesto para agradar aos pais. Maalate (também chamada Basemate em Gen 36:3) era filha de Ismael – ou seja, Esaú casa-se com sua prima de primeiro grau, unindo-se ao outro ramo da família de Abraão (o ramo de Ismael).
Interpretação: Esaú parece pensar que, ao adicionar uma esposa não cananeia à sua família, poderá de algum modo remediar a desaprovação dos pais ou mesmo reivindicar alguma bênção perdida. Talvez ele conclua: “Se Jacó foi ser abençoado casando na família, farei o mesmo”. No entanto, essa decisão é apresentada como profundamente equivocada ou pelo menos ineficaz. Primeiro, porque ele “tomou outra esposa” “além das que já tinha” – em vez de corrigir o erro inicial (as esposas hititas), ele simplesmente adiciona mais uma esposa, complicando a poligamia e a dinâmica familiar. Segundo, embora casar-se com uma ismaelita fosse melhor que com uma cananeia em termos de linhagem (pois Ismael era filho de Abraão), a linha de Ismael não era a linha da promessa; Ismael igualmente fora preterido em favor de Isaque. Assim, Esaú alinha-se a outro ramo “preterido” da família de Abraão, o que dificilmente traria o favor de Deus que ele busca. Kidner observa que esse tipo de tentativa de Esaú representa “os esforços religiosos superficiais do homem natural”, isto é, tentativas exteriores de aplacar Deus ou os pais, sem uma transformação real do coração. Ao ver Jacó obedecendo aos pais e buscando uma esposa piedosa, Esaú apenas imita externamente o comportamento – mas sem arrependimento genuíno por suas escolhas passadas. Ele não reconhece o verdadeiro problema (sua indiferença espiritual ao longo do tempo), e busca uma solução rápida e externa. Tal esforço, avalia Kidner, “não era bem o caminho de volta à bênção”.
Do ponto de vista dos pais, essa nova aliança de Esaú “só aumentou a irritação” deles. Agora, além de noras hititas, Isaque e Rebeca têm também uma nora ismaelita – o que pode ter sido visto como um mal menor comparado às cananéias, mas ainda assim não era o que desejavam. Gênesis não narra a reação de Isaque e Rebeca a esse casamento, mas pelo contexto infere-se que não reverteu a situação de Esaú. Ele continuou fora do foco da narrativa sagrada: a partir daqui, Jacó torna-se o protagonista da história bíblica (Livro de Gênesis dedica os capítulos seguintes a Jacó e sua família, enquanto Esaú aparece apenas novamente para a reconciliação no cap. 33 e a genealogia em cap. 36).
Lições apologéticas: A adição desta nota sobre Esaú ensina que ações tomadas sem entendimento espiritual não consertam erros espirituais. Esaú “desprezou as coisas de Deus” por anos (primogenitura, casamento dentro do pacto), e quando tenta consertar, escolhe um meio termo conveniente ao invés de verdadeiro arrependimento. Isso é um alerta contra a religiosidade superficial – mudar um rito externo (casar com alguém da família de Abraão) não muda o coração nem recupera o favor de Deus. No caso de Esaú, era tarde demais para recuperar a primogenitura e a bênção; mas ele poderia, ao menos, ter tomado responsabilidade e buscado perdão. Em vez disso, optou por um caminho fácil e carnal (tomar outra esposa) que em nada altera sua condição de “profano” aos olhos de Hebreus 12:16. Vemos também aqui a separação das linhas familiares: Jacó vai em direção ao cumprimento da promessa (mesmo exilado, está sob a bênção), enquanto Esaú vai se estabelecendo à parte. Esses caminhos divergentes ilustram o princípio que atravessa Gênesis – a linha do pacto segue não a primogenitura natural ou o mérito humano, mas a eleição graciosa de Deus, acompanhada (a seu tempo) da resposta de fé do eleito. Jacó terá muito a aprender e crescer, mas está debaixo da promessa. Esaú, ainda que tente obter algum pedaço dessa promessa por meios naturais (parentesco com Ismael), permanece fora dela.
Por fim, para o leitor geral e o acadêmico, Gênesis 26:34–28:9 oferece um estudo rico em intertextualidade e doutrina. Vemos aqui temas centrais como a soberania de Deus vs. a falibilidade humana, a tensão entre promessa divina e tramóias humanas, a importância de casamentos e alianças na preservação da fé, e as consequências de valorizar ou desprezar as coisas sagradas. A narrativa é realista ao mostrar uma família da aliança em conflito interno, fraqueza e engano – longe de ser propaganda idealizada, a Bíblia expõe os pecados de Jacó, Rebeca, Isaque e Esaú, mas simultaneamente expõe a fidelidade de Deus em levar adiante Seu plano redentivo. Como sintetiza um comentarista, no fim das contas todas as partes – as manobras de Rebeca e Jacó, a teimosia de Isaque, a fúria de Esaú – “só conseguiram fazer tudo o que a mão e o propósito de Deus predeterminaram”. Deus escreveu a história da salvação mesmo através (e a despeito) das falhas humanas, preservando a linhagem que culminaria em Israel e, posteriormente, no Messias.
Este trecho, então, serve tanto de advertência moral (contra a mentira, parcialidade e irreverência) quanto de confirmação teológica (de que prevalece o propósito da eleição e da graça). E, ao mesmo tempo, é um convite para apreciar a complexidade literária da Torah – com seus paralelos, repetições e ironias – que fazem do relato de Jacó e Esaú um dos episódios mais estudados e cheios de significado, para fiéis e estudiosos igualmente.




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