Isaque e Ismael | Gn 21:1-21
- João Pavão
- 3 de set.
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Nascimento de Isaque
Enfim chega o cumprimento da promessa divina: “O Senhor visitou Sara como tinha dito, e fez a ela como prometera” (Gn 21:1). A frase “visitou Sara” traduz o hebraico paqad, que indica uma intervenção direta de Deus em favor de alguém. Não se trata de uma visita comum, mas de Deus agindo concretamente para mudar o destino – aqui, abrindo a madre estéril de Sara. A ênfase repetida de que Deus fez “como dissera” e “como prometera” ressalta que Ele cumpriu Sua palavra com exatidão soberana, no tempo determinado por Ele. Como observa Kidner, depois de longos capítulos de expectativa desde Gênesis 12, o narrador relata o fato quase sem alarde, sublinhando apenas que Deus agiu exatamente conforme prometido, num “controle silencioso e preciso” de todos os eventos.
Sara concebeu e deu à luz um filho de Abraão em sua velhice (v.2), encerrando de uma vez por todas o problema de esterilidade apresentado desde o início da história (cf. Gn 11:30). Abraão, aos cem anos de idade, e Sara, aos noventa (v.5; cf. 17:17), experimentam um milagre patente, deixando claro que somente Deus poderia ter realizado tal feito. Conforme Deus ordenara anteriormente, Abraão deu ao menino o nome de Isaque – do hebraico Yitsḥaq, que significa “ele ri”. Esse nome é um trocadilho providencial: lembra o riso de incredulidade que tanto Abraão quanto Sara manifestaram ao ouvir que teriam um filho na velhice (Gn 17:17; 18:12), mas agora passa a falar de riso de alegria diante do cumprimento da promessa. O riso já não é de escárnio ou dúvida, e sim de regozijo – “o nome que antes poderia ser reprovação (pela risada incrédula) agora transmite somente alegria”.
Abraão demonstra sua obediência fiel à aliança ao cumprir tudo conforme Deus dissera: além de nomear o filho conforme a palavra divina, circuncidou Isaque ao oitavo dia (v.3-4), conforme a ordenança dada no pacto (Gn 17:9-12). Assim, Abraão responde à graça de Deus com obediência imediata e precisa, mostrando entender que as promessas divinas requerem a resposta da fé e submissão. Sara, por sua vez, é destacada pelo narrador: é ela quem fala nesse episódio natalício, e suas palavras revelam a transformação operada por Deus. Tomada de felicidade, Sara proclama: “Deus me encheu de riso; e todos os que o ouvirem rirão comigo” (v.6). Ela reconhece que foi Deus quem transformou seu riso incrédulo em riso de júbilo, e prevê que muitos se alegrarão juntamente com ela pelo incrível nascimento. Em seguida exclama: “Quem diria a Abraão que Sara amamentaria filhos?” (v.7). Curiosamente, ela usa o plural “filhos” (banim em hebraico), indicando talvez que enxerga além de Isaque, vislumbrando a multidão de descendentes que dele adviria pela promessa de Deus. De fato, naquele momento ninguém imaginaria que Sara um dia teria um filho – contudo, “nada é demasiado difícil para o Senhor” (Gn 18:14), e agora o impossível aconteceu.
O conflito com Ismael e a expulsão de Hagar
Os versículos 8-9 marcam uma transição abrupta do clima de celebração para um conflito familiar. Isaque cresceu e foi desmamado, evento que em culturas antigas ocorria por volta dos 3 anos de idade e costumava ser celebrado com um banquete festivo. Abraão de fato fez um grande banquete para comemorar que o menino havia passado pelos perigos da primeira infância e agora se desenvolvia bem (v.8; cf. 1Sm 1:22-24). Nessa ocasião de alegria, porém, Sara percebe algo inquietante: “Sara viu que o filho que Hagar, a egípcia, dera a Abraão, zombava [de Isaque]” (v.9). Ismael, então com cerca de 16 ou 17 anos de idade (cf. Gn 16:16; 17:24; 21:5), estava presente na festividade e reagiu com escárnio em relação a seu pequeno meio-irmão Isaque. O verbo hebraico usado aqui, metsaḥeq, deriva da mesma raiz de “riso”, mas sua forma gramatical indica um rir malicioso, de zombaria, e não uma mera brincadeira inocente. Noutras passagens bíblicas essa forma é usada para rir com desprezo ou caçoar (cf. Gn 19:14; Êx 32:6). Ou seja, Ismael estava ridicularizando Isaque, talvez manifestando ciúme ou ressentimento por este ser o herdeiro legítimo.
Sara, lembrando-se sem dúvida do episódio anterior envolvendo Hagar (Gn 16), imediatamente reconhece naquele deboche um grave perigo para o futuro de Isaque. Ela discerniu, corretamente, que a atitude de Ismael revelava hostilidade ao filho da promessa e podia prenunciar uma disputa pela posição de primogenitura. Movida agora por zelo materno e pela fé nas promessas acerca de Isaque, Sara toma uma decisão drástica: pede a Abraão que despeça Hagar e Ismael. “Expulsa esta serva e seu filho, pois o filho dessa escrava não será herdeiro com Isaque, meu filho” (v.10) – são palavras duras, mas reveladoras de sua preocupação central: garantir que Isaque seja o único herdeiro da aliança. Esse ato pode soar cruel, mas havia fundamento legal e moral para a reivindicação de Sara. Nos costumes da época, o filho de uma escrava concubina podia ser libertado e deserdado para não competir com o filho legítimo. O Código de Lipit-Ishtar (c. 1875 a.C.), por exemplo, estipulava que se uma escrava tivesse filhos de seu senhor e depois fosse emancipada junto com eles, “os filhos da escrava não dividirão os bens com os filhos do seu antigo senhor”. Ou seja, Sara exigia que Ismael abdicasse de qualquer pretensão à herança de Abraão, algo alinhado com leis do antigo Oriente Próximo e, no contexto bíblico, coerente com o fato de Isaque ser o filho da promessa (cf. Gn 15:4-5; 17:19-21).
Ainda assim, do ponto de vista humano, isso representava um golpe doloroso para Abraão. O versículo 11 destaca que tal palavra “perturbou muito a Abraão, por causa de seu filho”. Ismael era primogênito de Abraão e este o amava ternamente (cf. Gn 17:18). A angústia de Abraão aqui é compreensível: ele se vê em conflito entre o amor paternal por Ismael e a necessidade de obedecer à direção divina mediante a voz de Sara. Importa notar que não era mera teimosia de Sara; dessa vez ela falava conforme o plano de Deus. O próprio Senhor intervém para resolver a questão: “Porém Deus disse a Abraão: ‘Não te pareça mal isso, por causa do menino e da tua serva. Atende a tudo o que Sara te disser, porque por Isaque será chamada a tua descendência’” (v.12). Deus confirma que Sara estava certa. Diferente do episódio de Gênesis 16, em que Sara agiu precipitadamente sem fé, agora sua iniciativa visa o propósito divino e recebe aprovação celestial. Deus deixa claro a Abraão que Isaque é o filho da aliança, o único por quem será estabelecida a linhagem da promessa (cf. Gn 17:19,21; Rm 9:7).
Contudo, Deus também conforta Abraão quanto a Ismael: “Mas também do filho da escrava farei uma grande nação, por ser ele teu descendente” (v.13). Ou seja, Ismael não seria totalmente abandonado; pelo amor que Deus tinha a Abraão, ele seria abençoado materialmente e se tornaria pai de um povo numeroso. Essa promessa ecoa o que já fora dito antes (Gn 17:20) e demonstra a graça divina mesmo para com os que não fazem parte da linhagem messiânica. Deus não inclui Ismael na aliança de salvação, mas cuida dele como descendente de Abraão, cumprindo Sua palavra de abençoar “todas as famílias da terra” através de Abraão (Gn 12:3) – ainda que em Ismael essa bênção seja de ordem temporal (prosperidade, descendência), não a bênção espiritual da aliança.
Diante da instrução divina, Abraão obedece sem demora. Na madrugada seguinte, ele se despede de Hagar e Ismael, fornecendo-lhes pão e um odre de água para a jornada (v.14). A narrativa, de forma sóbria, diz: “Abraão levantou-se de manhã cedo, tomou pão e um odre de água, pô-los às costas de Hagar, deu-lhe o menino e a despediu”. A prontidão de Abraão em cumprir é notável – lembra a obediência imediata que ele terá também ao ser chamado a sacrificar Isaque (cf. Gn 22:3). Aqui Abraão entrega Ismael aos cuidados de Deus, num ato de fé difícil porém necessário.
Um ponto textual merece comentário: algumas traduções antigas poderiam dar a entender que Abraão “colocou o menino sobre os ombros de Hagar”, como se Ismael, já adolescente, fosse carregado como bebê. Isso gerou confusão e até críticas de alguns estudiosos. Contudo, o texto hebraico diz literalmente que Abraão entregou os suprimentos a Hagar, e o menino – isto é, confiou ambos aos cuidados dela – e então a mandou embora. A construção da frase hebraica é ambígua, mas o sentido é que Hagar partiu acompanhada de seu filho, não carregando-o no colo. De fato, “o menino” (heb. na‘ar) pode significar simplesmente um jovem ou rapaz, sem especificar idade. Mesmo alguém de 16 anos podia ser chamado na‘ar (como o próprio Salomão faz consigo em 1Rs 3:7). O termo alternativo usado nos versículos 14-16, yeled (“criança/filho”), indica apenas a relação filial, não necessariamente pouca idade. Portanto, não há incoerência: Ismael tinha idade para caminhar, e Hagar não o carregou fisicamente; o que ela carregava eram os mantimentos. Essa compreensão elimina a necessidade de se supor uma “contradição” ou duplicação de relatos, como alguns críticos literários tentaram sugerir.
Assim, com o coração pesado, mas confiando em Deus, Abraão despede-se de Hagar e Ismael. A mãe e o filho partem e “andaram errantes pelo deserto de Berseba” (v.14). Possivelmente sem destino certo, eles vagam pela região sem achar sustento. Berseba, ao sul de Canaã, era uma área semiárida. Em pouco tempo os suprimentos se esgotam, precipitando uma crise de sobrevivência.
Deus ouve e salva no deserto
Sob o sol inclemente do deserto, a água do odre acaba (v.15). Hagar, exausta e desesperada, vê seu filho definhar de sede. Incapaz de assisti-lo morrer, ela deixa Ismael à sombra de um arbusto e se afasta a certa distância, “à distância de um tiro de arco”, sentando-se em prantos (v.16). “Que eu não veja o menino morrer”, lamenta ela, erguendo a voz em choro. A cena é de partir o coração: Hagar, que outrora havia experimentado a misericórdia de Deus no deserto (Gn 16:7-14), agora se encontra novamente no vale da aflição, vendo seu filho – que carrega o nome Ismael (“Deus ouve”) – prestes a sucumbir.
Nesse momento crítico, a narrativa nos diz que “Deus ouviu a voz do menino” (v.17). O choro fraco de Ismael ecoa nos ouvidos do Senhor dos céus. Fiéis à etimologia, Deus realmente ouve Ismael em sua angústia. Assim como no passado ouvira a aflição de Hagar (Gn 16:11) e mais tarde ouviria o clamor do povo oprimido no Egito (Êx 2:24), Deus mostra que Sua compaixão se estende aos vulneráveis e aflitos, mesmo fora do círculo da aliança de Israel. Um anjo de Deus brada dos céus chamando Hagar: “Que tens, Hagar? Não temas” (v.17a). A forma de tratamento – “anjo de Deus” – é interessante; no primeiro encontro de Hagar, ela foi abordada pelo “Anjo do Senhor” (Gn 16:7), enquanto agora a designação “de Deus” (Elohim) talvez sublinhe que a mensagem vem do Deus soberano sobre todas as nações, atuando em graça para com os de fora. O anjo repete o nome de Hagar, lembrando-a de que Deus a conhece pessoalmente, e faz uma pergunta retórica: “Que aflige você?”. É uma forma divina de chamar Hagar à confiança, semelhante à abordagem anterior em Gn 16: “Hagar, de onde vens e para onde vais?” (16:8). Em seguida, o mensageiro lhe assegura: “Não tenha medo, porque Deus ouviu a voz do menino, daí onde está” (v.17b). Essa frase destaca tanto a misericórdia de Deus quanto a identidade de Ismael – seu nome é literalmente confirmado pela ação divina naquele instante.
O anjo então dá instruções e renovada promessa: “Ergue-te, levanta o rapaz e toma-o pela mão, porque farei dele uma grande nação” (v.18). Note-se que Deus repete aqui a promessa já feita a Abraão sobre Ismael (Gn 17:20) e reafirmada no v.13. Ou seja, a palavra de Deus permanece firme: Ismael não morrerá ali, pois há um futuro determinado para ele. Ainda que fora da linhagem da aliança, ele será objeto do cuidado providencial divino e pai de um povo numeroso. Novamente vemos que a graça comum de Deus está em ação – Ele provê salvação física e prospérité a Ismael, “por ser ele descendente de Abraão” (21:13), mas sem colocá-lo como herdeiro das promessas redentoras.
Em seguida, Deus abre os olhos de Hagar, e ela enxerga um poço de água (v.19). Provavelmente o poço estivera ali perto o tempo todo, mas no desespero ela não o percebera. Este ato de Deus “abrir os olhos” indica tanto providência quanto iluminação: Ele provê o recurso necessário para salvar mãe e filho, cumprindo assim a promessa feita instantes antes. Hagar rapidamente vai até a fonte, enche o odre e dá de beber ao rapaz, reavivando-lhe o espírito (v.19b). A presença desse poço em Berseba antecipa, inclusive, a importância da região – mais tarde Abraão fixará ali um pacto com Abimeleque e dará nome ao lugar (Berseba significa “Poço do Juramento” ou “Poço dos Sete”; cf. Gn 21:31). Aqui, porém, o foco é que Deus proveu água no deserto, tal como faria séculos depois com Israel na peregrinação do Êxodo.
O narrador então resume a história posterior de Ismael em poucos traços: “Deus estava com o rapaz, e ele cresceu; habitou no deserto e se tornou um arqueiro” (v.20). A frase “Deus estava com o rapaz” indica a proteção e bênção divinas sobre Ismael durante seu crescimento. Ele sobreviveu e se desenvolveu naquele ambiente árido, tornando-se forte e habilidoso caçador – “arqueiro”, vivendo do manejo do arco e flechas. Isso cumpre, em parte, o destino profetizado a Hagar antes: Ismael seria “um homem indomável, cuja mão seria contra todos, e a mão de todos contra ele; e ele habitaria fronteiro a todos os seus irmãos” (Gn 16:12). De fato, ao estabelecer-se no deserto, longe das cidades, Ismael leva uma vida independente e guerreira, típica dos beduínos do deserto. Seus descendentes, conforme Gênesis 25:13-16, formariam 12 tribos de nômades árabes – “uma grande nação” tal como Deus prometeu. A menção de que Hagar tomou para Ismael uma esposa do Egito (v.21) indica que, já estabelecidos no Deserto de Parã (região ao norte do Sinai, ao sul de Canaã), eles mantiveram ligação com suas raízes egípcias. Hagar era egípcia (cf. Gn 16:1), e ao buscar uma esposa de sua terra natal para Ismael, deixa claro que a linha de Ismael permaneceria fora do círculo da família de Abraão. Em contraste, no capítulo seguinte, Abraão fará questão de arranjar uma esposa para Isaque dentro de sua parentela (Gn 24:3-4), evitando alianças com Canaã ou Egito. As duas linhagens tomam rumos diferentes: a de Isaque se manterá separada para fins da promessa, enquanto Ismael se mescla com os povos vizinhos (tomando esposa egípcia, e depois suas tribos misturando-se entre árabes).
Assim termina a perícope: Hagar e Ismael sobrevivem e prosperam fora de Canaã, mas distantes da herança de Abraão. O texto, notavelmente, não volta mais a chamá-lo pelo nome próprio nessa história (desde o v.9 em diante ele é referido apenas como “o filho da escrava” ou “o rapaz”), talvez para enfatizar que Isaque é agora o único filho de Abraão considerado na narrativa da aliança. Ismael não deixa de ser amado por Deus nem desprovido de bênçãos, porém ocupa um lugar diferente: torna-se pai de outra nação, fora da Terra Prometida e do pacto messiânico.
Este episódio, embora doméstico em sua ambientação, carrega um significado teológico profundo e se conecta a temas maiores da revelação bíblica. Em primeiro lugar, ressalta-se a fidelidade infalível de Deus às Suas promessas. Após anos de espera e diversos aparentes obstáculos (esterilidade, idade avançada, demora divina, interferências humanas), “o Senhor fez a Sara o que tinha prometido”. A chegada de Isaque no tempo determinado ensina que Deus tem Seu cronograma perfeito – não atrasa nem se adianta. Ele havia prometido um filho “da própria Sara” (Gn 17:16,19) e cumpriu na hora certa (Gn 21:2). Como bem destaca um devocional, “Deus não está com pressa; Ele nunca chega tarde, mas sempre no momento oportuno”. A aparente demora serviu para moldar a fé de Abraão e Sara, purificando-os de suas tentativas de “ajudar” a Deus. No final, ficou evidente que o nascimento de Isaque foi obra exclusivamente divina, para que a glória fosse toda do Senhor (cf. Rm 4:19-21). Cada riso de alegria de Sara testificava: “Nada falhou de todas as boas palavras que o Senhor dissera” (cf. Js 21:45). Da mesma forma, somos desafiados a confiar que nenhuma promessa de Deus cairá por terra – ainda que aos nossos olhos tardiamente, Ele agirá no tempo certo (Hab 2:3).
Entrelançado a isso está o contraste entre o plano sobrenatural de Deus e os esquemas naturais humanos. Isaque e Ismael representam esta dicotomia. Ismael foi concebido “segundo a carne” (Gl 4:23), fruto da pressa incrédula de Sara e Abraão; já Isaque veio “segundo a promessa”, por intervenção milagrosa de Deus. O conflito entre os dois meninos reflete a oposição entre esses dois princípios. Como bem resumido pelo comentarista, “Agar e seu filho, representando a semente natural do engenho humano, são um constante aborrecimento para Sara e seu filho, que representam a semente prometida da eleição divina”. Ou seja, o que nasce da descrença e esforço humano trará problemas, enquanto o que nasce da fé nas promessas de Deus trará alegria. Abraão teve de aprender a lição de renunciar ao “filho da carne” para abraçar plenamente o “filho do milagre”. No nível pessoal e espiritual, isso ilustra uma verdade que o Novo Testamento expõe: não se pode viver pela carne e pelo Espírito ao mesmo tempo em harmonia (cf. Gl 5:16-17). Mais explicitamente, o apóstolo Paulo utilizou a história de Sara e Hagar como uma alegoria (Gl 4:21-31) para ensinar sobre as duas alianças e a relação entre Lei e Graça. Ele compara Hagar à aliança do Sinai, à Jerusalém atual (de seus dias), escravizada em legalismo; e Sara à Jerusalém celestial, livre, mãe de todos os da promessa. Paulo observa que “assim como naquele tempo o que nasceu segundo a carne perseguia o que nasceu segundo o Espírito, assim também agora” (Gl 4:29). Em outras palavras, Ismael “perseguindo” Isaque (o escárnio do v.9 Paulo define como perseguição) simboliza a antiga natureza incrédula perseguindo a nova vida da fé. Os falsos mestres legalistas (filhos da “Jerusalém escrava”) perseguem os verdadeiros crentes (filhos da promessa em Cristo) por inveja e oposição. E qual a solução? “Lança fora a escrava e seu filho” (Gl 4:30) – Paulo cita Sara, indicando que não pode haver concessão com aquilo que é “segundo a carne”. Aplicando: devemos “expulsar” de nossa vida o princípio da escravidão legalista e da confiança humana, para vivermos exclusivamente pela graça e pela fé na promessa de Deus em Cristo. Isaque, o filho livre, herdeiro da promessa, prefigura os nascidos de novo pela fé; Ismael representa o esforço próprio que não pode conduzir à herança espiritual. Esse conflito continua presente no coração de cada cristão (a velha natureza zombando da nova) e também externamente (os filhos do mundo incomodados com os filhos de Deus). A mensagem das Escrituras é seguir o exemplo de Abraão: desprender-se do “filho da escrava”. Em termos práticos, significa não permitir que aquilo que é carnal e contrário à promessa tenha poder sobre nós – antes, confiarmos plenamente no que Deus prometeu em Cristo, o Filho da promessa por excelência (Gl 3:16).
Outra reflexão importante é sobre a providência divina e a misericórdia para com os de fora. Ainda que Ismael não fosse o escolhido para portar a aliança, Deus cuidou dele e de sua mãe. O texto faz questão de nos mostrar Deus escutando o choro de um menino prestes a morrer de sede e enviando socorro angélico. Vemos aqui Deus como ouvinte do aflito, fiel ao Seu caráter revelado depois no Salmo 68: “Pai dos órfãos e juiz das viúvas é Deus em sua santa morada” (Sl 68:5). Hagar era uma estrangeira, serva e agora desamparada mãe solteira no deserto, mas nem por isso estava esquecida por Deus. Já antes, grávida e fugindo, ela experimentara a compaixão divina e chamara o Senhor de “El-Roi”, “Deus que me vê” (Gn 16:13). Novamente, no momento mais crítico, Deus a vê e a ouve, provendo livramento na hora exata. Isso nos lembra que as bênçãos materiais e temporais de Deus atingem também aqueles fora da comunidade da fé, por causa da bondade divina e, muitas vezes, dos méritos de outrem (no caso, Abraão). Jesus afirmou que Deus faz o sol brilhar e a chuva cair sobre justos e injustos (Mt 5:45). Porém, a história de Ismael também ensina que essas bênçãos comuns não equivalem à bênção da salvação. Ismael recebeu proteção, prosperidade e se tornou uma nação, mas não herdou a Terra Prometida nem a aliança messiânica. Deus concedeu a ele dons temporais, mas a promessa eterna permaneceu em Isaque (cf. Rm 9:6-8). Isso deve trazer humildade e sobriedade: muitos ímpios prosperam neste mundo, e Deus pode ouvi-los em sua necessidade terrena, mas só os filhos da promessa em Cristo herdarão a vida eterna. Ainda assim, a compaixão de Deus pelo sofredor é um exemplo para nós. Abraão, ao despedir Hagar, forneceu-lhe provisões mínimas, mas confiou que Deus cuidaria dela. E Deus o fez. Assim, podemos crer que o Senhor supre as necessidades daqueles por quem nos preocupamos quando estão além do nosso alcance. Também aprendemos a valorizar a justiça e amor de Deus, que não deixa sem resposta a aflição do oprimido (Sl 10:17-18), ainda que Seus propósitos redentores sigam por outro caminho.
Adicionalmente, este texto ilustra as consequências de nossas decisões de incredulidade. Ismael, o “filho da carne”, tornou-se inevitavelmente uma fonte de conflito dentro da casa de Abraão. Durante anos, enquanto Isaque não nascia, tudo parecia bem – mas quando a bênção da promessa chegou, a presença do filho anterior gerou tensão. Wiersbe comenta que Ismael não causou problemas até o nascimento de Isaque; depois disso, tornou-se incômodo. Isso nos lembra que Deus perdoa nossos pecados, mas as “colheitas” de nossas escolhas podem perdurar. Abraão e Sara tiveram que lidar com a dor de mandar embora o primogênito. Quanto sofrimento poderia ter sido evitado se eles tivessem confiado em Deus desde o princípio, sem recorrer à solução com Hagar! Ainda assim, Deus em Sua graça redentora trouxe bem do erro deles – proporcionou crescimento espiritual a Abraão e Sara, e até mesmo abençoou Ismael em certos aspectos. É um encorajamento saber que Deus ouve e socorre até nos becos sem saída criados pela nossa insensatez, como fez com Hagar. Não obstante, a “solução” divina definitiva para o problema chamado Ismael foi o nascimento de Isaque. Deus não disse a Abraão para matar Ismael ou algo do tipo, mas introduziu algo novo (Isaque) que reconfigurou a situação. Muitas vezes, quando lidamos com as consequências de erros passados, Deus nos convida não a ficarmos remoendo o erro, mas a abraçar o novo que Ele nos dá e avançar pela fé. Abraão não poderia mudar o passado, mas podia obedecer a Deus no presente e assegurar o futuro através de Isaque. Ele o fez, mesmo ao custo de partir seu coração, e Deus honrou essa obediência.
Por fim, podemos notar como esse capítulo se encaixa no panorama maior da história da salvação. Isaque, o filho único de Abraão com Sara, é agora o único “sobrevivente” para herdar as promessas. Isso prepara o terreno para o capítulo seguinte, onde Deus vai pedir justamente esse filho em sacrifício – um teste supremo à fé de Abraão. Já Ismael, embora fora da linhagem messiânica, dá origem a um povo que ao longo da história se relacionará ora como parente próximo, ora como inimigo de Israel (os ismaelitas e outros povos árabes). A tensão entre os descendentes de Ismael e os descendentes de Isaque atravessa gerações, cumprindo a previsão de conflito. Até hoje, alguns veem nos conflitos entre judeus e árabes uma espécie de eco distante dessa antiga rivalidade familiar (embora, teologicamente, a “semente da serpente” não se limite a um grupo étnico, mas a todos que se opõem ao plano de Deus). Interessante lembrar também que a tradição islâmica posteriormente reivindicou Ismael como ancestral de Maomé e alterou a narrativa, apresentando Ismael – não Isaque – como o filho oferecido por Abraão em sacrifício. Essa visão, porém, contraria o testemunho bíblico unânime que coloca Isaque como o filho da promessa. Para a fé cristã, Isaque permanece como tipo de Cristo: o filho único e amado do pai, milagrosamente dado, entregue em sacrifício (no capítulo 22) e recuperado como que dos mortos (Hb 11:17-19), pré-figurando o próprio Filho de Deus. Já Ismael pode ser visto como tipo do homem natural, que não compreende as coisas do Espírito e persegue quem delas participa (cf. Gl 4:29). Ambos os irmãos, portanto, servem de sinal: um aponta para Jesus e a salvação pela promessa, o outro aponta para a incredulidade e seus limites.




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