Introdução a Noé e Diagnóstico Divino | Gênesis 6:9–13
- João Pavão
- 26 de ago.
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A seção de Gênesis 6:9 inicia um novo toledot (história/geração) introduzindo Noé. Noé é apresentado com três qualificações de destaque: ele era “justo” (ṣaddiq, צַדִּיק), “íntegro” (tāmîm, תָּמִים) entre seus contemporâneos, e “andava com Deus”. Em hebraico, o texto literalmente diz “Noé, homem justo, perfeito foi em sua geração”. A maioria dos comentaristas entende “justo” e “íntegro” como duas características distintas de Noé. Ṣaddiq é o termo hebraico mais geral para alguém moralmente bom e correto; refere-se a quem vive conforme a lei de Deus, fazendo o que é direito e evitando o mal. Já tāmîm, traduzido “íntegro” ou “perfeito”, carrega a ideia de completude e pureza moral – o mesmo termo é usado para animais sem defeito oferecidos em sacrifício (Lv 1:3) e raramente é aplicado a pessoas. Assim, Noé não era apenas um homem bom (ṣaddiq), como era esperado de qualquer fiel, mas distinguia-se por uma retidão excepcional (tāmîm) que poucos atingiam. Além disso, “Noé andava com Deus” (הָאֱלֹהִים הִתְהַלֵּךְ נֹחַ), expressão usada anteriormente apenas para Enoque (Gn 5:22,24). Isso sugere uma comunhão íntima com Deus – Noé experimentou uma proximidade com o Senhor comparável à de Enoque, a ponto de ser preservado por Ele enquanto a humanidade ao redor perecia. Em suma, há um crescendo na caracterização de Noé: ele era bom (justo), notavelmente virtuoso (íntegro) e mantinha um relacionamento tão próximo com Deus quanto o melhor dos ancestrais piedosos.
Noé tinha três filhos: Sem, Cam e Jafé (v.10). Essa informação conecta Noé a genealogias anteriores (cf. Gn 5:32) e prepara o cenário para a repopulação pós-dilúvio. Ter três filhos homens era visto como bênção de Deus e é um padrão em momentos de transição histórica (Adão teve Sete, Caim e Abel; Terá teve Abrão, Naor e Harã). No contexto de Noé, os filhos também são mencionados antes da descrição da corrupção do mundo, sugerindo que eles, como família de Noé, seriam poupados por causa da retidão do pai. De fato, Ezequiel 14:14,20 dá a entender que a justiça de Noé salvou apenas a ele mesmo, não podendo livrar outros – o que implica que seus filhos também eram tementes a Deus para serem salvos com ele. Em todo caso, a ênfase recai sobre Noé: a salvação que virá se deve primeiramente à graça de Deus sobre este “santo salvo”, em contraste com o mundo ímpio ao redor.
Os versículos 11–12 descrevem o estado calamitoso da terra diante de Deus. Há um jogo de palavras deliberado e repetição para sublinhar a gravidade da situação: o termo “terra” (׳ádāmāh) aparece 6 vezes e o verbo “corromper/arruinar” (šāḥat, שָׁחַת) 5 vezes nos versículos 11–13. “A terra estava corrompida diante de Deus; estava cheia de violência” (v.11). O verbo šāḥat no niphal indica algo que se estragou, arruinou-se por si mesmo. É usado, por exemplo, para um pano estragado ou um vaso quebrado. Já nos versículos 12–13, šāḥat aparece no hiphil, forma causativa, frequentemente empregada para destruição súbita de povos e cidades no contexto de julgamento divino. Assim, a narrativa junta os dois sentidos – ser arruinado e arruinar/destruir – indicando que “a terra se arruinou” pelo pecado e, por isso, Deus a arruinará em juízo. Em outras palavras, a punição corresponde exatamente ao crime: a humanidade estragou a criação de Deus, então Deus trará a ruína sobre os arruinadores. Esse princípio de retribuição medida (“castigo na mesma moeda”) é frequente na Bíblia (cf. Gn 9:6; Ob 1:15).
A principal evidência da corrupção humana mencionada é a “violência” (ḥāmās, חָמָס) que enchia a terra (v.11). Ḥāmās denota conduta antisocial destrutiva, uma violação implacável dos direitos do próximo. Não se trata apenas de violência física, mas de toda forma de opressão, crueldade e injustiça – ḥāmās pode ser a exploração do fraco pelo forte ou do ingênuo pelo esperto. Em Amós 6:3, por exemplo, é a opressão dos pobres; em Provérbios 16:29, é a sedução maliciosa para o crime. Cassuto comenta que ḥāmās é “fria e calculada violação dos direitos alheios, motivada por ganância e ódio”. Génesis 4 (a história de Caim e Lameque) ilustra bem o espírito de violência, embora o termo não seja usado lá. Diante dessa depravação generalizada, Deus olha para a terra e constata o quão degenerada ela ficou: há aqui um claro contraste com Gênesis 1:31, quando Deus viu tudo o que fizera e “era muito bom”. Agora, Deus vê e tudo está corrompido e “cheio de violência” – um triste espelho do quão longe a humanidade caiu desde a criação. O texto enfatiza que “toda carne” havia corrompido seu caminho (v.12). A expressão “toda carne” (כָּל־בָּשָׂר, kol basar) aqui inclui a humanidade e os animais. Embora alguns intérpretes restrinjam o sentido a “toda a humanidade” – argumentando que animais não podem moralmente corromper-se –, Gênesis 6–9 claramente envolve também os seres vivos não humanos em seu escopo (tanto que a aliança pós-dilúvio é com “todos os seres viventes” incluindo fauna). Assim, de certo modo, até os animais foram afetados pelo pecado humano (cf. Gn 3:17-18, Rm 8:20-22) e participam do julgamento e depois da restauração no plano de Deus.
Diante desse quadro, Deus comunica a Noé Sua determinação: “Então disse Deus a Noé: O fim de toda carne é chegado perante mim, porque a terra está cheia de violência; e eis que os destruirei juntamente com a terra” (v.13). A frase “o fim de toda carne é chegado perante mim” indica que a sentença divina foi decretada de forma irrevogável, como um veredito real já proferido. É uma linguagem semelhante à de Ester 9:11, onde uma decisão do rei chega diante dele para execução. Ou seja, Deus decretou o fim daquela sociedade violenta. A expressão “perante mim” (lip̄nē, lit. “diante de minha face”) sugere que esse veredicto foi apresentado ao Rei divino e aprovado – não há volta atrás. Em seguida Deus diz: “Eis que eu vou destruir (arruinar) a terra” juntamente com os culpados (v.13). É interessante que Deus usa o mesmo verbo šāḥat (“destruir, arruinar”) que foi usado para descrever a corrupção causada pela humanidade. Essa repetição reforça a ideia de punição espelhada: os humanos corromperam (estragaram) a terra, então Deus os corromperá (destruirá) com a terra – o julgamento é apresentado como moralmente adequado ao crime cometido. Em suma, nos versículos 11–13 Deus faz um diagnóstico do mundo – corrupção total e violência – e anuncia a sentença de juízo. Surge, então, um contraste dramático: por um lado, Noé, justo e íntegro; por outro, toda carne corrompida e violenta. É nesse cenário que Noé encontrará favor e se tornará agente da continuidade da raça humana.




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