Halloween: Pecado ou Tradição Cultural?
- João Pavão
- 30 de out.
- 32 min de leitura

I - Introdução e Contextualização Multidisciplinar do Fenômeno Halloween
A questão da participação cristã no Halloween emerge anualmente como um ponto de tensão, debate e incerteza para fiéis, famílias e lideranças eclesiásticas. As respostas frequentemente oscilam entre uma condenação veemente, que associa a data a práticas pagãs e satânicas, e uma aceitação acrítica, que a enquadra como uma diversão infantil inofensiva. Ambas as posturas, contudo, tendem a ignorar a complexidade de um fenômeno que se desdobra em múltiplas camadas de significado histórico, teológico, cultural, econômico e psicológico. Para responder à pergunta "Halloween: é pecado?", é imperativo transcender o simplismo e empreender uma análise multidisciplinar que desvele a natureza multifacetada da celebração. Somente ao compreender o que o Halloween é em suas diversas manifestações, torna-se possível avaliar teologicamente o que um cristão deve fazer em relação a ele.
Esta introdução se propõe a contextualizar o Halloween como um objeto de estudo complexo, explorando suas controversas origens, sua manifestação como um gigante econômico e cultural, as razões psicológicas de seu apelo e a função social de seus rituais. O objetivo é estabelecer um alicerce robusto sobre o qual a subsequente análise bíblica e teológica possa ser construída, demonstrando que uma resposta informada exige mais do que a repetição de slogans; exige um discernimento que leve em conta a história, a cultura e a missão da Igreja no mundo.
1.1. O Dilema Histórico: Paganismo Celta ou Piedade Cristã?
A controvérsia sobre as origens do Halloween representa o ponto de partida para qualquer análise séria e é, em si, um campo de batalha ideológico. Duas narrativas principais competem pela primazia histórica, cada uma servindo a diferentes agendas contemporâneas. A compreensão dessa disputa é crucial, pois a percepção da origem frequentemente dita a legitimidade da participação.
Tese da Origem Pagã (Samhain)
A teoria mais difundida e popularmente aceita vincula as origens do Halloween ao antigo festival celta do Samhain (pronunciado "SOW-in" ou "SAH-win"). Celebrado por volta de 1º de novembro, o Samhain marcava o fim do verão e da temporada de colheita e o início do "metade mais escura" do ano, o inverno. De acordo com essa visão, os celtas acreditavam que, na noite de 31 de outubro, o véu que separa o mundo dos vivos do Outro Mundo (o reino dos espíritos, fadas ou Aos Sí, e das almas dos mortos) se tornava excepcionalmente fino.
Essa permeabilidade cósmica permitia que seres sobrenaturais e almas dos que morreram no último ano transitassem para o mundo dos vivos. Para se protegerem de espíritos malévolos, as pessoas acendiam grandes fogueiras e usavam fantasias e máscaras, geralmente de peles e cabeças de animais, na tentativa de se disfarçarem e confundirem os espíritos. Além disso, oferendas de comida e bebida eram deixadas do lado de fora das aldeias para apaziguar essas entidades e garantir a sobrevivência do povo e do gado durante o inverno rigoroso. Essas práticas de "guising" (disfarce) e oferendas são frequentemente citadas como as precursoras diretas do uso de fantasias e do "trick-or-treating" modernos.
Tese da Origem Cristã (Allhallowtide)
Em contraposição, uma corrente acadêmica crescente, apoiada por uma análise mais crítica das fontes primárias, argumenta que as raízes diretas do Halloween se encontram firmemente na tradição litúrgica cristã. O próprio nome "Halloween" é uma contração do termo escocês "All Hallows' Eve" (ou Even), que significa "Vigília de Todos os Santos".
Esta vigília, celebrada em 31 de outubro, era a preparação para a Solenidade de Todos os Santos, uma festa de grande importância no calendário católico, comemorada em 1º de novembro. A instituição desta festa em 1º de novembro é atribuída ao Papa Gregório III (século VIII) ou ao Papa Gregório IV (século IX), que a estendeu a todo o Império Franco. Posteriormente, por volta do ano 998, Santo Odilo, abade de Cluny, instituiu o dia 2 de novembro como o Dia de Finados (ou Dia de Todas as Almas), um dia de oração pelas almas dos fiéis no purgatório. Juntos, estes três dias — 31 de outubro, 1º de novembro e 2 de novembro — formam o trido litúrgico conhecido como "Allhallowtide", um tempo dedicado a honrar a comunhão dos santos no céu (Igreja Triunfante), orar pelas almas no purgatório (Igreja Padecente) e refletir sobre a jornada dos fiéis na terra (Igreja Militante). Dentro dessa cosmovisão, a vigília de 31 de outubro era um tempo de oração e preparação para a grande festa que se seguia.
A Controvérsia Acadêmica e a Crítica de Fontes
A aparente simplicidade da tese pagã é desafiada pela escassez de evidências textuais contemporâneas. O historiador Ronald Hutton, uma das principais vozes acadêmicas sobre o assunto, argumenta que não há provas conclusivas de que o Samhain fosse um grande festival dos mortos para todos os povos celtas. Grande parte do que se "sabe" sobre as práticas do Samhain foi registrada por monges irlandeses cristãos séculos após a cristianização da ilha, tornando difícil distinguir entre a memória de práticas pagãs autênticas e a interpretação cristã posterior.
Hutton e outros estudiosos sugerem que a narrativa que liga o Halloween diretamente ao Samhain foi amplamente popularizada por folcloristas do século XIX, que buscavam traçar uma linhagem pagã para as tradições populares. É plausível que algumas práticas do Halloween moderno sejam, na verdade, resquícios de costumes católicos medievais (como o "souling", onde os pobres rezavam pelos mortos em troca de comida) que foram mal interpretados como pagãos após a Reforma Protestante ter abolido tais práticas.
Síntese e Sincretismo
A conclusão mais equilibrada não aponta para uma origem única e exclusiva, mas para um complexo processo de sincretismo e sobreposição cultural. É provável que a Igreja, ao estabelecer a Festa de Todos os Santos em 1º de novembro, tenha agido com a intenção de cristianizar ou suplantar festivais sazonais existentes, uma prática missionária comum. Ao longo dos séculos, temas de um festival de colheita (Samhain) e de uma observância litúrgica focada na morte e na eternidade (Allhallowtide) se fundiram na imaginação popular, criando a tapeçaria rica e ambígua que caracteriza o Halloween.
Essa disputa histórica não é meramente acadêmica. Ela revela que o Halloween funciona como um "mercado de significados". Grupos neopagãos reivindicam a origem celta para legitimar suas celebrações. Cristãos que se opõem à festa usam a mesma narrativa para justificar sua rejeição. E cristãos que participam (especialmente católicos) apontam para a origem em "All Hallows' Eve" para reivindicar a data como sua. A batalha pela história do Halloween é, na verdade, uma batalha pelo controle de seu significado no presente.
1.2. O Fenômeno Sociocultural e Econômico: Uma Análise Comparativa
A manifestação contemporânea do Halloween varia drasticamente entre diferentes contextos culturais, sendo os Estados Unidos e o Brasil exemplos paradigmáticos dessa divergência. A análise comparativa revela como uma celebração pode ser, ao mesmo tempo, um pilar da cultura de massa em um país e um controverso produto de importação em outro.
O Halloween nos Estados Unidos: Um Pilar Cultural e Comercial
Nos Estados Unidos, o Halloween transcendeu o status de um feriado de um único dia para se tornar uma temporada cultural e comercial que se estende por semanas, começando já em setembro. A celebração está profundamente enraizada na vida comunitária, com decorações de casas, festas de bairro e o ritual do "trick-or-treating" funcionando como eventos que fortalecem os laços sociais.
A magnitude econômica do Halloween é um indicador de sua centralidade cultural. De acordo com dados da National Retail Federation (NRF), os gastos com a data atingem proporções astronômicas:
Gasto Total: A projeção de gastos para 2025 aponta para um recorde de $13.1 bilhões, um aumento significativo em relação aos $11.6 bilhões do ano anterior e ao recorde prévio de $12.2 bilhões de 2023.
Gasto por Pessoa: Em média, cada consumidor participante deve gastar um recorde de $114.45.
Categorias de Gastos: Os gastos se distribuem principalmente entre fantasias ($4.3 bilhões), decorações ($4.2 bilhões) e doces ($3.9 bilhões), demonstrando a natureza multifacetada do consumo associado à data.
Esses números não representam apenas transações comerciais; eles refletem um profundo investimento cultural e emocional em uma tradição que se tornou um dos eventos de consumo mais amplamente celebrados do ano.
O Halloween no Brasil: Osmose Cultural e Resistência
No Brasil, o cenário é drasticamente diferente. Conhecido como "Dia das Bruxas", o Halloween não é uma tradição nativa, mas um fenômeno de "osmose cultural", importado principalmente através da influência da mídia norte-americana, como filmes, séries de TV e redes sociais. Sua celebração é significativamente mais discreta e segmentada, concentrando-se em nichos específicos, como escolas de idiomas, festas temáticas em baladas e eventos em grandes centros urbanos, em vez de ser uma prática comunitária de vizinhança. A percepção no Brasil é a de uma festa importada, muitas vezes desconectada de qualquer significado mais profundo, seja ele cristão ou pagão, e focada puramente na estética do macabro e na diversão.
O "Dia do Saci": Um Contraponto Nacionalista
A crescente popularidade do Halloween no Brasil gerou uma reação cultural. Em 2003, foi instituído por lei federal (Projeto de Lei nº 2.762) o "Dia do Saci", a ser comemorado também em 31 de outubro. A iniciativa foi uma tentativa explícita de criar uma "resistência pacífica" à americanização da cultura, propondo uma celebração focada em uma figura icônica do folclore brasileiro, o Saci-Pererê, em contraponto aos símbolos do Halloween. Embora o Dia do Saci não tenha alcançado a mesma popularidade comercial do Halloween nos círculos urbanos, sua existência é um sintoma da tensão cultural entre a globalização e a preservação da identidade nacional.
A tabela a seguir sintetiza as principais diferenças culturais entre a celebração do Halloween nos dois países.
1.3. A Psicologia do Medo e o Apelo do Macabro
A popularidade duradoura e a expansão global do Halloween não podem ser explicadas apenas por fatores históricos ou comerciais. Em sua essência, o apelo da data reside em sua capacidade de explorar e satisfazer uma necessidade psicológica humana profunda: o fascínio pelo medo em um ambiente controlado. A psicologia moderna oferece várias teorias para explicar por que os seres humanos se sentem atraídos pelo "medo recreativo".
Medo Recreativo como Treinamento Evolutivo
A "hipótese de simulação de ameaças" propõe que o entretenimento de terror tem uma função adaptativa, herdada de nossos ancestrais. Ao nos engajarmos com cenários assustadores de forma segura (assistindo a um filme de terror ou visitando uma casa mal-assombrada), estamos, em essência, "treinando" nosso cérebro para lidar com perigos reais. Essa simulação nos permite explorar respostas de luta ou fuga, aprender sobre potenciais ameaças e desenvolver resiliência emocional sem enfrentar qualquer risco físico real. O Halloween, com sua iconografia de monstros, morte e perigo, funciona como um grande playground cultural para essa simulação de ameaças.
Gerenciamento da Incerteza e a Teoria do Processamento Preditivo
Uma teoria mais recente, baseada no modelo do "processamento preditivo", sugere que nosso cérebro funciona como uma "máquina de previsões", constantemente tentando antecipar o que acontecerá a seguir. O prazer não viria do medo em si, mas da resolução da incerteza. O horror manipula esse sistema de forma magistral: a música de suspense cria uma expectativa (uma previsão), e o susto (jump scare) a viola abruptamente, criando um "erro de previsão". A rápida reavaliação da situação ("é apenas um filme, estou seguro") e a resolução desse erro geram uma onda de alívio e satisfação neurológica. O Halloween oferece um ambiente onde esse ciclo de tensão e alívio pode ser experimentado repetidamente.
Catarse e Transferência de Excitação
Teorias mais clássicas também contribuem para a explicação. A ideia de catarse, que remonta a Aristóteles, sugere que ao vivenciar emoções negativas como medo e piedade em um contexto ficcional, nós as "purgamos", resultando em um alívio emocional. A teoria da transferência de excitação postula que a excitação fisiológica gerada pelo medo (coração acelerado, adrenalina) não se dissipa imediatamente. Quando a ameaça termina e a pessoa se sente segura, essa excitação residual é reinterpretada como uma emoção positiva, como euforia ou prazer.
O Halloween, portanto, pode ser visto como uma forma de "terapia de exposição" cultural, onde a sociedade como um todo se envolve voluntariamente com símbolos de mortalidade, mal e do desconhecido. Essa exposição controlada nos ajuda a dominar nossos medos e a processar ansiedades existenciais em um formato lúdico e socialmente aceito. Essa necessidade psicológica universal é o motor que permite que a estética do Halloween, impulsionada pelo poder comercial e midiático americano, encontre ressonância em culturas tão distintas como a brasileira, explicando a rápida globalização do fenômeno.
1.4. A Função Social dos Rituais: O Caso do "Trick-or-Treating"
Para além da psicologia individual, os rituais do Halloween, especialmente o "trick-or-treating" ("doces ou travessuras"), desempenham uma função sociológica e antropológica vital: a construção e o reforço da comunidade.
Origens Históricas do Ritual de Troca
A prática de ir de porta em porta tem raízes profundas em costumes europeus pré-modernos. Duas tradições são particularmente relevantes:
"Souling" (Amas das Almas): Na Idade Média, durante o Allhallowtide, os pobres, especialmente crianças, iam de casa em casa oferecendo orações pelas almas dos parentes falecidos dos moradores em troca de "bolos da alma" (soul cakes), um tipo de pão doce. Este é considerado o precursor mais direto do "trick-or-treating".
"Guising" (Disfarce): Na Escócia e na Irlanda, jovens se fantasiavam e iam de porta em porta realizando uma pequena performance — uma música, um poema ou uma piada (o "trick") — em troca de comida, moedas ou outras guloseimas (o "treat").
Ritual de Reciprocidade Comunitária
Do ponto de vista antropológico, o "trick-or-treating" funciona como um ritual de reciprocidade generalizada. Diferente de uma troca equilibrada (onde o valor do que é dado e recebido é equivalente), aqui a troca é assimétrica: o adulto dá doces e a criança, fantasiada, oferece em troca sua presença lúdica. O objetivo aparente é a aquisição de doces pela criança, mas o efeito social subjacente é o reforço dos laços de vizinhança.
O ritual obriga os vizinhos a interagirem de uma forma positiva e estruturada. Acender a luz da varanda sinaliza a participação na comunidade. Abrir a porta para crianças fantasiadas é um ato de hospitalidade e confiança. A troca, por mais simples que seja, reafirma a existência de uma rede de relações e responsabilidades mútuas que constituem o tecido de uma comunidade.
Transformação e Fragmentação do Ritual
Contudo, observa-se uma transformação nesse ritual que reflete mudanças sociais mais amplas, como o aumento da fragmentação e do isolamento. Muitas famílias hoje evitam suas próprias vizinhanças e se deslocam para bairros considerados mais "nobres" ou "seguros", em busca de doces melhores ou de uma experiência idealizada.
Além disso, a ascensão do "Trunk-or-Treat" — eventos organizados em estacionamentos de igrejas, escolas ou centros comunitários, onde as crianças coletam doces de porta-malas de carros decorados — é sintomática dessa mudança. Embora ofereça um ambiente controlado e seguro, o "Trunk-or-Treat" remove o ritual do contexto geográfico da vizinhança, transformando-o em um evento para uma comunidade de afinidade (membros de uma igreja, pais de uma escola) em vez de uma comunidade de proximidade. Essa mudança, embora prática, sinaliza um enfraquecimento da função original do "trick-or-treating" como um mecanismo de coesão de bairro.
II - Análise Bíblica Exaustiva: Princípios para o Discernimento Cristão
Após contextualizar a complexidade histórica e cultural do Halloween, a análise se volta para a Escritura. A Bíblia não menciona o Halloween pelo nome, tornando infrutífera a busca por uma proibição ou permissão direta. A tarefa teológica, portanto, consiste em extrair princípios bíblicos atemporais e aplicá-los com sabedoria ao fenômeno contemporâneo. Esta seção examinará as proibições claras do Antigo Testamento contra o ocultismo, o paradigma do Novo Testamento sobre liberdade e consciência, e o mandato duplo de separação do mal e engajamento missionário com o mundo.
2.1. Proibições do Antigo Testamento: A Condenação do Ocultismo
O Antigo Testamento é inequívoco em sua condenação a qualquer prática que busque poder, conhecimento ou comunicação espiritual fora da aliança com YHWH, o único Deus verdadeiro. Essas práticas, coletivamente associadas ao paganismo das nações vizinhas a Israel, são vistas como uma abominação e uma traição fundamental à aliança.
Análise Exegética de Deuteronômio 18:9-14
A passagem mais explícita e abrangente sobre o tema é Deuteronômio 18:9-14. Ao preparar Israel para entrar na terra de Canaã, Moisés adverte: "Não aprendas a fazer conforme as abominações daqueles povos". A lista que se segue detalha as práticas a serem evitadas:
Fazer passar filho ou filha pelo fogo: Refere-se a rituais de sacrifício infantil, associados ao deus Moloque.
Adivinhação, prognósticos, agouros, feitiçaria: Termos que cobrem um espectro de tentativas de prever o futuro ou manipular a realidade através de meios sobrenaturais não divinos.
Encantamentos, consulta a necromantes ou médiuns, invocação dos mortos: Práticas que envolvem a comunicação com o mundo espiritual (demônios ou espíritos dos mortos) para obter informação ou poder.
A razão para a proibição é teológica: "Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR" (v. 12). O princípio subjacente é a exclusividade da revelação divina. Israel não precisava dessas práticas porque Deus lhes falaria por meio de Seus profetas (vv. 15-18). Buscar orientação em outras fontes espirituais era, portanto, um ato de idolatria e infidelidade. Outras passagens, como Êxodo 22:18 ("A feiticeira não deixarás viver"), Levítico 19:31 e 20:27, reforçam a gravidade com que a Lei Mosaica tratava o envolvimento com o oculto, frequentemente prescrevendo a pena capital. A rebelião contra Deus é comparada diretamente ao pecado de feitiçaria em 1 Samuel 15:23, sublinhando a conexão intrínseca entre os dois.
2.2. O Paradigma do Novo Testamento: Liberdade, Consciência e Amor ao Próximo (1 Coríntios 8-10)
O Novo Testamento, ao se dirigir a uma igreja majoritariamente gentílica imersa na cultura greco-romana, desenvolve uma ética mais principiológica do que legalista para lidar com as áreas cinzentas da interação cultural. A discussão de Paulo sobre a comida sacrificada a ídolos em 1 Coríntios 8-10 oferece o paradigma mais robusto e aplicável à questão do Halloween.
Contextualização do Problema em Corinto
Na cidade de Corinto, a vida social e cívica era inseparável da religião pagã. Os templos não eram apenas locais de culto, mas também centros sociais, funcionando como os "restaurantes" e salões de festa da época. Grande parte da carne disponível no mercado (macellum) provinha de animais que haviam sido ritualmente sacrificados a uma divindade. Isso criava um dilema constante para os cristãos: era lícito comer essa carne? Era permitido participar de um jantar de negócios ou de um casamento realizado nas dependências de um templo?
A análise da resposta de Paulo revela uma estrutura de três níveis que é essencial para o discernimento cristão. A falha em distinguir esses níveis é a fonte de grande parte da confusão no debate sobre o Halloween.
O Princípio da Proibição da Idolatria (Participação em Culto Pagão) Paulo é inflexível em um ponto: a participação direta em um ritual de adoração pagã é idolatria e está estritamente proibida. Em 1 Coríntios 10:14-22, ele argumenta que, embora o ídolo de madeira ou pedra não seja nada, os sacrifícios oferecidos a ele são, na realidade, oferecidos a demônios. Participar dessa refeição ritualística é ter comunhão com demônios. Ele declara enfaticamente: "Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios" (1 Co 10:21).
Aplicação Analógica: Este princípio se aplica diretamente a qualquer aspecto do Halloween que envolva participação consciente em rituais neopagãos, sessões espíritas, adivinhação ou qualquer forma de invocação ou adoração a entidades espirituais que não sejam o Deus da Bíblia. Tais atividades são inequivocamente pecaminosas, caindo sob as condenações de Deuteronômio 18.
O Princípio do Amor sobre o Conhecimento (Proteção do Irmão Fraco) Havia em Corinto um grupo de cristãos, os "fortes", que possuíam o "conhecimento" de que "o ídolo nada é no mundo" (1 Co 8:4). Com base nessa verdade teológica, eles se sentiam livres para comer a carne sacrificada, talvez até mesmo em um templo (considerando-o apenas um evento social). Paulo concorda com a premissa teológica deles, mas repreende a sua aplicação. Ele argumenta que o conhecimento sem amor leva à arrogância. O critério mais elevado não é a liberdade individual, mas o bem-estar espiritual do "irmão fraco" — aquele cuja fé ainda é imatura e cuja consciência seria violada ao ver um cristão "forte" participando de algo que ele ainda associa à idolatria. Paulo conclui drasticamente: "Se a comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-lo" (1 Co 8:13).
Aplicação Analógica: Este princípio governa a conduta do cristão dentro da comunidade da igreja. Um cristão cuja consciência lhe permite participar de aspectos seculares do Halloween (como fantasiar os filhos de super-heróis e pedir doces) deve estar disposto a abrir mão de sua liberdade por amor a um irmão que sinceramente acredita que tal prática é pecaminosa. A unidade e o amor da igreja têm precedência sobre o exercício de direitos em áreas de adiaphora (coisas indiferentes).
O Princípio da Liberdade em Questões Neutras (Engajamento com a Cultura Secular) Finalmente, Paulo aborda o cenário mais comum: a carne comprada no mercado ou consumida na casa de um incrédulo, fora de um contexto de culto explícito. Aqui, sua orientação é de liberdade: "Comei de tudo o que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência" (1 Co 10:25). A terra e tudo o que nela há pertencem ao Senhor. O alimento em si não é contaminado. A liberdade só é restringida se alguém explicitamente apontar a origem sacrificial da carne e se isso for causar um problema de consciência (para o anfitrião ou para outro convidado). O princípio geral é: "Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Co 10:31).
Aplicação Analógica: Este é talvez o princípio mais relevante para a forma como o Halloween é celebrado na cultura secular ocidental. Para a maioria das pessoas, vestir uma fantasia e pedir doces não é um ato de adoração pagã, mas uma atividade cultural e social. Nesta perspectiva, a participação pode ser vista como análoga a "comer a carne vendida no mercado". É uma questão de consciência individual, onde o cristão é livre para participar, buscando glorificar a Deus através da alegria, da comunidade e do testemunho, ou para se abster, também para a glória de Deus.
A aplicação do paradigma de 1 Coríntios 8-10 é a ferramenta hermenêutica mais precisa para o debate, pois desfaz a falsa dicotomia de "participar vs. não participar". Ela nos força a perguntar: "De qual aspecto do Halloween estamos falando e em qual das três categorias de Paulo ele se encaixa?". Isso move o debate do legalismo para o discernimento pastoral e ético.
2.3. O Mandato de Separação e Engajamento: Luz nas Trevas
O Novo Testamento mantém uma tensão constante entre o chamado à santidade (separação do mundo) e o chamado à missão (engajamento com o mundo). Uma abordagem bíblica equilibrada ao Halloween deve honrar ambos os polos dessa tensão.
Abster-se da Aparência do Mal
Passagens como Efésios 5:11 ("E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, condenai-as") e 1 Tessalonicenses 5:22 ("Abstende-vos de toda a aparência do mal") são frequentemente citadas por aqueles que defendem a abstenção total do Halloween. O argumento é que a estética da festa — com sua ênfase em morte, medo, bruxas e demônios — está tão intrinsecamente ligada às "obras das trevas" que qualquer participação, por mais inocente que seja a intenção, constitui um compromisso com o mal ou, no mínimo, uma má aparência que prejudica o testemunho cristão.
Ser Luz no Mundo
Por outro lado, o mandato de Cristo à Sua Igreja é ser "luz do mundo" e "sal da terra" (Mateus 5:13-16). A luz não existe para ser escondida, mas para brilhar na escuridão e expô-la. A postura apostólica, exemplificada por Paulo em Atenas (Atos 17) e em sua declaração "Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns" (1 Co 9:22), é de um engajamento cultural crítico e missional. Sob esta ótica, o Halloween, precisamente por ser uma noite em que a cultura secular reflete sobre temas de escuridão e morte, apresenta-se como uma oportunidade missionária incomparável para a Igreja proclamar a Cristo como a Luz do Mundo e Aquele que venceu a morte.
A questão para o cristão não é, portanto, uma escolha simples entre separação ou engajamento. É encontrar a sabedoria para viver em uma tensão produtiva: como se engajar na cultura para ser luz, sem se tornar cúmplice das obras das trevas? A resposta a essa pergunta determinará a práxis cristã na noite de 31 de outubro.
III - Desenvolvimento Histórico-Teológico e Controvérsias
Para compreender plenamente as diversas atitudes cristãs em relação ao Halloween, é essencial traçar sua evolução histórica e teológica. A data de 31 de outubro é como um palimpsesto, um manuscrito no qual camadas sucessivas de significado foram escritas, apagadas e reescritas, sem que as camadas anteriores desaparecessem por completo. A análise dessa estratigrafia revela como uma vigília cristã se tornou um fenômeno secular, passando por reinterpretações medievais, pela fratura da Reforma e pela explosão comercial moderna.
3.1. A Formação do Allhallowtide: A Reivindicação Cristã do Tempo
A origem do que hoje chamamos de Halloween está inegavelmente ligada a um esforço da Igreja primitiva e medieval para santificar o tempo e honrar seus heróis.
Do Panteão a Todos os Mártires: A primeira encarnação de uma festa para "todos os santos" remonta ao ano 609, quando o Papa Bonifácio IV consagrou o Panteão de Roma — um templo anteriormente dedicado a "todos os deuses" — à Virgem Maria e a todos os mártires. A data da festa foi estabelecida em 13 de maio.
A Mudança para 1º de Novembro: A transferência da data para 1º de novembro ocorreu entre os séculos VIII e IX. O Papa Gregório III (731-741) dedicou um oratório na Basílica de São Pedro a todos os santos, mártires e confessores, e algumas fontes sugerem que ele fixou a data em 1º de novembro para Roma. Foi o Papa Gregório IV, em 835, que ordenou que a festa fosse observada em todo o Império Franco, consolidando a data no Ocidente. A razão para a mudança é debatida; pode ter sido uma tentativa de suplantar festivais pagãos sazonais ou simplesmente uma questão prática para acomodar o crescente número de peregrinos em Roma em uma época do ano com mais provisões de colheita.
A Instituição do Dia de Finados: O passo seguinte na formação do trido foi dado por Santo Odilo, o influente abade de Cluny. Por volta de 998 d.C., ele decretou que todos os mosteiros da vasta rede cluníaca observassem o dia 2 de novembro como um dia de oração especial, missas e esmolas pelas almas de todos os fiéis defuntos que estivessem no purgatório. A prática se espalhou rapidamente por toda a Europa, dada a imensa autoridade de Cluny.
O Trido Consolidado: Com essa adição, o Allhallowtide estava completo: uma observância de três dias que unia teologicamente a Igreja em suas três fases. A Vigília de Todos os Santos (31/10) preparava os fiéis na terra (Igreja Militante); o Dia de Todos os Santos (01/11) celebrava os santos no céu (Igreja Triunfante); e o Dia de Finados (02/11) intercedia pelas almas no purgatório (Igreja Padecente).
3.2. A Memória dos Ímpios Pré-Diluvianos: Uma Teologia Medieval da História
Uma fascinante, embora menos conhecida, camada de interpretação teológica medieval conferiu ao Allhallowtide um significado ainda mais profundo, ligando-o à narrativa do Dilúvio em Gênesis. Nessa visão, o trido funcionava como uma lembrança ritualística anual do grande juízo e da salvação de Deus.
A Simbologia dos Três Dias:
31 de Outubro (All Hallows' Eve): Esta noite de vigília foi associada à lembrança da maldade do mundo antediluviano. As imagens sombrias, mórbidas e até demoníacas que começaram a se associar a esta noite não eram uma celebração do mal, mas uma representação didática e um aviso solene (memento mori) sobre o pecado e o destino dos ímpios que pereceram no dilúvio. Em algumas tradições, encenações públicas incluíam pessoas vestidas de esqueletos (representando os mortos em pecado) e até mesmo alguém vestido de diabo, que simbolicamente liderava a fila das almas condenadas ao inferno, não como um ato de adoração, mas como uma pregação visual contra o pecado.
1º de Novembro (All Saints' Day): Este dia celebrava os santos que alcançaram a glória celestial, vistos como análogos à família de Noé, os justos que foram salvos das águas do juízo dentro da arca. Era a celebração da vitória da graça e da preservação de um remanescente fiel.
2 de Novembro (All Souls' Day): Este dia, focado nas almas do purgatório, simbolizava aqueles que repovoariam a terra após o dilúvio. Assim como os descendentes de Noé encheram uma terra purificada, as almas sendo purificadas no purgatório estavam sendo preparadas para entrar na nova criação celestial.
Essa interpretação, embora não universal, oferece uma poderosa chave hermenêutica para entender por que a vigília de uma festa de santos se tornou associada a temas tão sombrios, enraizando-os firmemente em uma teologia bíblica de juízo e redenção, e não no paganismo.
3.3. A Reforma e a Ressignificação do 31 de Outubro
O século XVI trouxe uma ruptura dramática e uma nova camada de significado para o dia 31 de outubro.
O Dia da Reforma: Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero afixou suas 95 Teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. Este ato, destinado a iniciar um debate acadêmico sobre a prática da venda de indulgências, é universalmente reconhecido como o estopim da Reforma Protestante. A escolha da data por Lutero foi deliberada e estratégica: a véspera do Dia de Todos os Santos era um dia de grande movimento de peregrinos em Wittenberg, que iam venerar a vasta coleção de relíquias do príncipe Frederico, o Sábio, e obter indulgências para reduzir o tempo das almas no purgatório.
Rejeição da Teologia do Purgatório: A teologia da Reforma, com sua ênfase na justificação somente pela fé (Sola Fide), rejeitou fundamentalmente a doutrina do purgatório e, por consequência, a prática de orar pelos mortos e a validade das indulgências. Isso efetivamente esvaziou o significado teológico do Dia de Finados para as tradições protestantes.
Consequência e Ironia: Para grande parte do mundo protestante, especialmente nas tradições reformada e puritana, o dia 31 de outubro foi radicalmente ressignificado. Deixou de ser a "Vigília de Todos os Santos" para se tornar o "Dia da Reforma", uma celebração da libertação da igreja das "superstições" papais e da redescoberta da centralidade do evangelho da graça. Isso criou uma ironia histórica duradoura: a data escolhida por Lutero para iniciar sua reforma teológica se tornou, séculos depois, o foco de uma celebração cultural que muitos de seus herdeiros teológicos viriam a condenar como pagã. Essa tensão interna explica por que, para muitas igrejas reformadas, a única maneira correta de observar o 31 de outubro é ignorar o Halloween e celebrar o Dia da Reforma.
3.4. Secularização e Comercialização: A Trajetória Americana
A versão do Halloween que domina o imaginário global hoje é, em grande parte, um produto da experiência americana, moldada pela imigração, adaptação cultural e, finalmente, pela força avassaladora do mercado.
Imigração e Adaptação: O Halloween foi introduzido em larga escala nos Estados Unidos no século XIX, com as ondas de imigração irlandesa e escocesa, especialmente durante a Grande Fome da Batata. No novo continente, as tradições se adaptaram. A abóbora (pumpkin), nativa da América do Norte e mais fácil de esculpir, substituiu o tradicional nabo (turnip) usado para fazer as lanternas (jack-o'-lanterns) nas Ilhas Britânicas.
De Vandalismo a Tradição Infantil: No final do século XIX e início do XX, o Halloween nos EUA era frequentemente uma "noite de travessuras" (Mischief Night), marcada por vandalismo e desordem por parte de jovens. Preocupadas com a escalada da violência, comunidades e organizações cívicas começaram a promover o "trick-or-treating" como uma alternativa organizada e familiar, com o objetivo de canalizar a energia dos jovens para uma atividade mais controlada e inofensiva. Isso iniciou o processo de transformar o Halloween em um feriado primariamente infantil.
O Pós-Guerra e a Explosão Comercial: A consolidação do Halloween como um gigante comercial ocorreu no período pós-Segunda Guerra Mundial. O fim do racionamento de açúcar, o crescimento dos subúrbios (que forneciam o cenário ideal para o "trick-or-treating") e a ascensão da cultura de consumo em massa criaram as condições perfeitas para a comercialização da data. As indústrias de doces, fantasias e decorações investiram pesadamente em marketing, transformando o Halloween na segunda festa mais comercial dos EUA, atrás apenas do Natal. Essa versão secularizada, comercializada e focada no entretenimento é o "produto" que os Estados Unidos exportaram para o resto do mundo através de sua influência cultural.
IV - Doutrina Sistemática e Visões Denominacionais
A complexa história do Halloween se reflete na diversidade de respostas que ele evoca nas diferentes tradições cristãs. Não existe "a" visão cristã sobre o Halloween, mas um espectro de posições que vão da rejeição total ao engajamento redentor. Essas posturas são moldadas por teologias distintas sobre a cultura, a santidade, a missão e a própria história da Igreja. Uma análise das visões denominacionais revela as lógicas teológicas subjacentes que informam o discernimento de cada tradição.
4.1. Perspectiva Católica Romana: Reivindicação e Cristianização
A Igreja Católica Romana adota uma postura de reivindicação histórica e ressignificação pastoral.
Posição Oficial: A doutrina católica afirma a origem intrinsecamente cristã da celebração como "All Hallows' Eve", a vigília da Solenidade de Todos os Santos. A festa secular é vista como uma derivação, e muitas vezes uma corrupção, de uma tradição santa.
Orientação Pastoral: A orientação não é de abstenção, mas de "retomar a noite" (take back the night) para Cristo. Os fiéis são encorajados a participar, mas de uma maneira que cristianize a celebração. Isso inclui:
Foco nos Santos: Encorajar as crianças a se fantasiarem de santos e heróis bíblicos, celebrando a vida e o testemunho da Igreja Triunfante.
Memento Mori Cristão: Interpretar os símbolos da morte (esqueletos, crânios) não como uma glorificação do macabro, mas como um lembrete cristão da mortalidade e da realidade do juízo, da morte, do céu e do inferno.
Evangelização: Usar a oportunidade do "trick-or-treating" para evangelizar, oferecendo doces com uma bênção ou uma palavra de fé.
Advertência: Há uma clara advertência para evitar a glorificação ou o envolvimento com elementos contrários à fé, como bruxaria, ocultismo, adivinhação e superstição, que são considerados distorções seculares.
4.2. Perspectiva Reformada e Puritana: Rejeição e Substituição
A tradição reformada, herdeira dos puritanos, tende a adotar uma postura de rejeição teológica e substituição celebratória.
Argumento Principal: Esta visão enfatiza as supostas raízes pagãs do Halloween e suas associações contemporâneas com o ocultismo, a morte e o demoníaco. A participação é vista como um compromisso com as "obras infrutíferas das trevas" (Efésios 5:11) e uma perigosa trivialização do mal espiritual, que a Bíblia trata com extrema seriedade.
A Alternativa: Dia da Reforma: A resposta prática não é simplesmente a abstenção, mas a substituição. Para esta tradição, 31 de outubro é, antes de tudo, o Dia da Reforma. Teólogos como R.C. Sproul Jr. expressam essa visão de forma contundente, afirmando que suas famílias não celebram o Halloween porque estão "muito ocupadas e muito felizes celebrando algo muito mais significativo".
Prática Comum: As igrejas nesta tradição frequentemente promovem "Festivais da Reforma" ou eventos semelhantes, que focam na história da Reforma, nos hinos, na pregação do evangelho e na comunhão, oferecendo uma alternativa teologicamente robusta e contracultural ao Halloween. Há, inclusive, uma crítica interna a alternativas "leves" como "festas da colheita", que são vistas como uma tentativa de imitar o Halloween de forma mundana, em vez de substituí-lo por algo distintamente cristão.
4.3. Perspectiva Luterana (LCMS): Discernimento e Zombaria do Mal Derrotado
A Igreja Luterana, particularmente o Sínodo de Missouri (LCMS), oferece uma abordagem de discernimento matizado, enraizada na teologia da cruz e na vitória de Cristo.
Posição Oficial (LCMS): Não há uma posição oficial vinculante. O tema é considerado uma questão de julgamento e consciência cristã, não um artigo de fé.
A Abordagem dos "Dois Perigos": A teologia luterana adverte contra dois erros opostos:
Levar o diabo de forma leviana: Trivializar o mal, a morte e o diabo, esquecendo que ele é um "mentiroso e assassino" real.
Levar o diabo muito a sério: Agir com um medo supersticioso que, inadvertidamente, atribui ao diabo mais poder do que ele realmente tem, esquecendo que ele é um inimigo derrotado e acorrentado pela morte e ressurreição de Cristo.
Celebrando a Vitória de Cristo: A resposta luterana está na vitória de Cristo. O diabo foi julgado e derrotado na cruz. Portanto, o cristão vive em liberdade, sem medo. O Halloween, coincidindo com o Dia da Reforma, pode ser uma oportunidade para, nas palavras de Lutero, "desprezar o diabo" e "dançar em sua sepultura". É uma chance de zombar do mal, cujo poder foi quebrado. A participação, se ocorrer, deve ser um testemunho dessa liberdade e ausência de medo, sempre guiada pelo amor ao próximo e pela clareza do testemunho do Evangelho.
4.4. Perspectivas Batistas e Evangélicas: Diversidade de Abordagens
Dentro do amplo e diverso mundo batista e evangélico, não há uma única posição, mas um espectro de abordagens que reflete as diferentes ênfases teológicas dentro do movimento.
Convenção Batista do Sul (SBC): Sem uma resolução oficial, a abordagem predominante é a da liberdade de consciência, baseada em Romanos 14. Líderes influentes, como o ex-presidente da SBC, J.D. Greear, promovem ativamente a visão do Halloween como uma oportunidade missionária primordial. É a única noite do ano em que os vizinhos vêm bater à sua porta, oferecendo uma chance única para praticar a hospitalidade, construir relacionamentos e ser uma presença cristã positiva na comunidade.
A Abordagem Missional (John Piper/Desiring God): Esta influente corrente do evangelicalismo reformado defende uma postura de engajamento redentor robusto. Teólogos como John Piper e escritores do ministério Desiring God argumentam que o Halloween "não é uma ameaça, é uma oportunidade". Os cristãos não devem se acovardar, mas "tomar o Halloween cativo" para Cristo, usando a noite para proclamar corajosamente a soberania e a vitória de Jesus sobre todos os poderes das trevas. A recomendação é ser radicalmente generoso e usar a ocasião como um "contraste impressionante" para ensinar a verdade do Evangelho.
A Abordagem da Abstenção: Muitos outros batistas e evangélicos, no entanto, alinham-se com a perspectiva puritana de rejeição. Eles citam as associações da festa com o paganismo, o ocultismo e a glorificação da morte como fundamentalmente incompatíveis com o chamado cristão à santidade e à separação do mundo.
4.5. Perspectiva Metodista (UMC) e Pentecostal (Assembleias de Deus)
Essas denominações também exibem uma diversidade de práticas, mas com uma tendência geral para a autonomia local e a criação de alternativas seguras.
Igreja Metodista Unida (UMC): A UMC não tem uma posição oficial sobre o Halloween, concedendo autonomia às igrejas e membros locais. A prática mais comum é a de substituição, oferecendo eventos alternativos que promovem a comunidade e a segurança. O "Trunk-or-Treat" é extremamente popular, transformando o estacionamento da igreja em um local seguro para as crianças coletarem doces. Outras alternativas incluem festivais de outono e o uso da data para fins missionários, como o "Trick-or-Treat for UNICEF". A ênfase é em celebrar a vida, a comunidade e a fé, em vez do medo e da morte.
Assembleias de Deus (AG): Similarmente, não há uma declaração oficial única e vinculante para a maior denominação pentecostal do mundo. A abordagem varia. Publicações ligadas à denominação reconhecem as fortes proibições bíblicas contra a bruxaria e o ocultismo. No entanto, também há uma abertura para o discernimento e para ver a data como uma oportunidade de evangelismo e construção de relacionamentos com a comunidade, desde que se evite a participação no mal. A prática nas igrejas locais varia desde a abstenção total e a promoção de cultos de oração na data até a organização de eventos alternativos, como festivais de colheita, com o objetivo de oferecer um ambiente positivo e alcançar a comunidade.
As diversas posições denominacionais podem ser agrupadas em três estratégias teológicas principais: Rejeição (o Halloween é inerentemente mau e deve ser evitado), Substituição (a cultura do Halloween deve ser substituída por eventos alternativos e positivamente cristãos) e Redenção (os elementos culturais do Halloween podem ser engajados e ressignificados para a glória de Deus e o avanço do Evangelho). A notável ausência de declarações oficiais e vinculativas da maioria das denominações protestantes é significativa, indicando que, a nível institucional, a questão é amplamente considerada uma área de adiaphora (coisas indiferentes), a ser decidida pela consciência individual e pela sabedoria pastoral, em vez de um dogma central da fé.
A tabela abaixo resume e compara as diferentes abordagens denominacionais.
V - Conclusão: Aplicação Devocional e um Guia para a Práxis Cristã
A jornada através da história, cultura e teologia do Halloween revela que a pergunta inicial, "É pecado?", é inadequada em sua simplicidade. A resposta não é um decreto universal, mas um convite ao discernimento, à sabedoria e à maturidade cristã. A análise exaustiva das Escrituras e das tradições da Igreja não nos deixa com uma regra fácil, mas com um conjunto de princípios robustos para navegar nesta e em outras complexidades culturais. Esta seção final visa sintetizar esses princípios em um guia prático para a tomada de decisão pessoal, familiar e eclesiástica, transformando o debate de um ponto de divisão em uma oportunidade para o crescimento na fé e na missão.
5.1. Respondendo à Pergunta: "É Pecado?" - Para Além do Legalismo
A resposta mais biblicamente fiel à pergunta "É pecado celebrar o Halloween?" é: depende do que você quer dizer com "celebrar" e do que você quer dizer com "Halloween".
Síntese Teológica: Com base no paradigma de 1 Coríntios 8-10, podemos estabelecer uma hierarquia clara.
É inequivocamente pecado participar de qualquer atividade que envolva práticas ocultistas, adivinhação, espiritismo ou adoração a qualquer entidade que não seja o Deus Triúno. Isso se enquadra na categoria de "participar da mesa dos demônios" e é idolatria.
Não é inerentemente pecado participar dos aspectos culturais e seculares do Halloween que se tornaram comuns em muitas sociedades, como fantasiar-se de personagens inofensivos, participar de festas comunitárias ou o ato de dar e receber doces. Essas atividades se enquadram na categoria de adiaphora (coisas indiferentes), análogas à "carne vendida no mercado".
Pode se tornar pecado participar dessas atividades indiferentes se isso for feito com uma consciência culpada (Romanos 14:23), ou se o exercício dessa liberdade levar um irmão mais fraco na fé a tropeçar e pecar contra sua própria consciência (1 Coríntios 8:9-13).
Portanto, a questão se desloca do legalismo ("posso ou não posso?") para o discernimento ético ("devo ou não devo, neste contexto, para a glória de Deus e para o bem do meu próximo?").
Um Framework para o Discernimento
Para auxiliar nesse processo de discernimento, o cristão pode utilizar um conjunto de perguntas diagnósticas antes de tomar uma decisão:
Motivação (O Coração): Por que desejo participar (ou me abster)? Minha motivação é o medo (de ser diferente ou de desagradar a Deus), o desejo de me conformar com a cultura, uma genuína oportunidade missionária, ou um desejo sincero de glorificar a Deus em todas as coisas? (1 Coríntios 10:31).
Consciência (A Mente): Posso participar desta atividade com uma consciência limpa e alegre diante de Deus, ou há uma dúvida persistente em meu coração? "Aquele que tem dúvidas, se come, está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não provém de fé é pecado" (Romanos 14:23).
Contexto (A Cultura): Qual é o significado predominante desta atividade específica no meu contexto cultural (por exemplo, EUA vs. Brasil)? Estou participando de uma festa de bairro familiar ou de uma balada que glorifica o mal? A percepção cultural da minha ação ajudará ou prejudicará meu testemunho?.
Comunidade (A Igreja): Minha ação edificará o corpo de Cristo? Há na minha comunidade irmãos e irmãs "fracos" na fé que poderiam ser escandalizados pela minha liberdade? Estou disposto a sacrificar meu "direito" por amor a eles? (1 Coríntios 8:9).
Testemunho (O Mundo): Minha participação ou minha abstenção comunicará o Evangelho da graça, da alegria e da vitória de Cristo de forma mais clara e atraente ao meu vizinho incrédulo? Minha casa será uma luz acesa ou apagada nesta noite? (Mateus 5:16).
5.2. O Halloween como Ferramenta Pedagógica na Família
Longe de ser apenas um perigo a ser evitado, o Halloween apresenta uma oportunidade pedagógica incomparável para os pais cristãos. Em um mundo que muitas vezes tenta isolar as crianças das realidades difíceis, a data coloca os "últimos fins" — morte, juízo, céu e inferno — no centro da conversa cultural.
Ensinando sobre a Realidade Espiritual: A iconografia do Halloween (fantasmas, esqueletos, demônios) pode ser usada como um ponto de partida para ensinar as crianças, de maneira apropriada para a idade, sobre a realidade bíblica do pecado, suas consequências (morte), e a existência de um inimigo espiritual, o diabo. É uma chance de dar nomes e categorias bíblicas às ansiedades e medos que a cultura explora.
Proclamando a Vitória de Cristo: Mais crucialmente, o ensino não deve parar na escuridão, mas apontar para a Luz. O Halloween é o cenário perfeito para proclamar a mensagem central do Evangelho: o mal é real, mas Cristo é vitorioso. É a oportunidade de explicar que Jesus, através de Sua morte e ressurreição, "destruiu aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo" (Hebreus 2:14). A data pode ser usada para celebrar a ressurreição, a derrota de Satanás na cruz (Colossenses 2:15) e a promessa de vida eterna, substituindo o medo paralisante pela esperança confiante.
Sabedoria e Adequação à Idade: É fundamental que os pais exerçam sabedoria, protegendo as crianças de imagens ou conceitos excessivamente violentos ou aterrorizantes para os quais não estão emocional ou espiritualmente preparadas. O objetivo não é traumatizar, mas equipar, ajudando-as a distinguir entre a fantasia do entretenimento e a realidade espiritual, e a entender que, em Cristo, elas não têm nada a temer.
5.3. O Halloween como Oportunidade Missional para a Igreja
Para a igreja com uma visão missional, o Halloween não é um dia para se esconder, mas um campo de colheita. É talvez a única noite do ano em que a cultura secular pratica uma forma de "evangelismo reverso", com as pessoas indo de porta em porta.
Hospitalidade Radical: A resposta cristã mais contracultural ao Halloween pode ser uma demonstração de hospitalidade extravagante e alegria genuína. Em vez de apagar as luzes e se esconder, os cristãos podem acender todas as luzes, decorar suas casas de forma alegre e acolhedora, e distribuir os melhores doces da vizinhança. Este ato de generosidade inesperada pode ser um poderoso testemunho do caráter de um Deus que é generoso e acolhedor.
Ponte para o Evangelho: A interação na porta de casa não precisa ser superficial. Um sorriso caloroso, um elogio à fantasia, uma palavra de bênção — "Deus te abençoe!" — podem ser pequenas sementes de graça. A generosidade e a alegria do cristão podem funcionar como uma "parábola viva" do Evangelho, criando pontes de relacionamento com vizinhos que, de outra forma, nunca entrariam em uma igreja.
Engajamento vs. Endosso: É crucial reafirmar a distinção teológica entre engajamento e endosso. Abrir a porta para crianças fantasiadas não é endossar o ocultismo, assim como Jesus comer com publicanos e pecadores não era endossar a extorsão ou a imoralidade. É um ato de encarnação — ir aonde as pessoas estão para ser sal e luz. Retirar-se completamente pode preservar uma sensação de pureza, mas ao custo da relevância e da oportunidade missionária.
A tabela a seguir oferece uma estrutura prática para aplicar esses princípios de discernimento a atividades comuns do Halloween.
Em última análise, o Halloween, com todas as suas complexidades, força a Igreja a confrontar questões centrais de sua identidade e missão: como vivemos fielmente em um mundo caído? Como distinguimos entre o mal a ser rejeitado e a cultura a ser redimida? Como amamos a Deus com todo o nosso coração e ao nosso próximo como a nós mesmos? A resposta a essas perguntas, na noite de 31 de outubro e em todos os outros dias, é o que define a práxis de um discípulo de Cristo.




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