As operações contra facções nas favelas: o que a fé cristã tem a dizer?
- João Pavão
- há 7 dias
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Parte I: O Contexto Multidisciplinar: O Fenômeno do Narcoterrorismo nas Favelas do Rio de Janeiro
A análise de qualquer fenômeno complexo exige, antes de tudo, uma contextualização robusta e multifacetada. A questão das operações policiais contra facções criminosas nas favelas do Rio de Janeiro não pode ser adequadamente compreendida através de uma lente única, seja ela puramente sociológica, jurídica ou teológica. É imperativo que se construa um alicerce factual e teórico que reconheça a natureza excepcional da crise. A situação em vastos territórios da cidade maravilhosa transcendeu há muito a esfera da criminalidade comum, configurando-se como um conflito de baixa intensidade, uma guerra assimétrica entre o Estado de Direito e organizações paraestatais que disputam a soberania, o controle territorial e o monopólio da violência.
Esta primeira parte do estudo se dedicará a dissecar essa realidade. O objetivo é demonstrar, de forma inequívoca, que o debate não é sobre policiamento comunitário versus truculência, mas sobre a resposta legítima de um Estado soberano a uma ameaça existencial. Ao estabelecer a natureza do conflito como uma guerra contra um inimigo interno organizado, armado e com pretensões de governança, criamos o enquadramento necessário para a aplicação tanto de teorias jurídicas excepcionais quanto de uma vigorosa defesa teológica da ação estatal coercitiva. Somente ao compreender a anatomia do inimigo, a realidade do campo de batalha urbano e o dilema jurídico que ele impõe, poderemos, então, buscar na revelação bíblica e na tradição cristã as respostas para a pergunta central: o que a fé cristã tem a dizer?
Anatomia do Inimigo - Gênese, Estrutura e Malignidade do Comando Vermelho
Para compreender a necessidade e a legitimidade das operações de segurança de alta intensidade, é fundamental dissecar a natureza do adversário. O Comando Vermelho (CV) não é uma gangue de criminosos desorganizados; é uma sofisticada organização criminosa, com raízes históricas, estrutura resiliente e uma capacidade bélica que desafia diretamente o poder estatal. Sua trajetória revela uma metamorfose de um grupo reativo de prisioneiros para uma entidade paraestatal proativa, que exerce controle soberano sobre vastos territórios e populações.
Gênese Histórica e Evolução Ideológica
A origem do Comando Vermelho é indissociável do contexto político e social do Brasil durante a Ditadura Militar. A facção surgiu no início da década de 1970, no interior do Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, um presídio que se tornou um caldeirão social ao misturar presos comuns e presos políticos. A convivência forçada entre criminosos de alta periculosidade e militantes de esquerda, que possuíam organização política e conhecimento de táticas de guerrilha, foi o catalisador para a criação da chamada "Falange Vermelha", o embrião do CV.
Inicialmente, o grupo foi formado com a filosofia de resistência à tortura e aos maus-tratos dentro do sistema prisional, um discurso de solidariedade e proteção mútua contra a opressão do Estado. Um de seus fundadores, William da Silva Lima, conhecido como "Professor", absorveu noções de direitos civis e organização política dos militantes, articulando a base da futura facção. Contudo, essa ideologia de resistência rapidamente se converteu em uma estrutura de poder e controle. Com a Lei da Anistia de 1979 e a libertação dos presos políticos, os membros remanescentes da Falange se reorganizaram, adotaram o nome Comando Vermelho e voltaram seu foco para atividades ilícitas fora dos muros da prisão.
A transição foi rápida e estratégica. O grupo, que havia aprimorado suas táticas de organização e disciplina, migrou para o tráfico de drogas, aproveitando o crescimento do mercado de cocaína. Entre 1983 e 1986, o CV já dominava grande parte das "bocas de fumo" do Rio de Janeiro, e em 1985, estima-se que controlava cerca de 70% do mercado de entorpecentes na capital fluminense. O que começou como um movimento de sobrevivência prisional havia se transformado em um império criminoso.
Estrutura, Expansão e Poder Paraestatal
Diferentemente de outras organizações criminosas com hierarquias rígidas e piramidais, o Comando Vermelho opera com uma estrutura mais descentralizada e federativa. É composta por "donos do morro" que comandam territórios específicos e se aliam para fortalecer o grupo, formar um conselho e reprimir tentativas de golpes por parte de subordinados. Essa estrutura em rede confere à facção uma notável resiliência; a queda de uma liderança local não compromete a totalidade da organização.
As tentativas do Estado de enfraquecer a facção por meio da transferência de seus líderes para presídios federais tiveram o efeito contrário: o CV se espalhou pelo sistema carcerário nacional, multiplicando suas alianças e recrutando novos membros em outras unidades da federação. Hoje, o Comando Vermelho não é um fenômeno restrito ao Rio de Janeiro. Sua atuação se estende por, no mínimo, 13 estados brasileiros e o Distrito Federal, com ramificações transnacionais em países como Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru, que são cruciais para as rotas do tráfico de drogas e armas.
O poder do CV não se resume ao tráfico. A facção diversificou suas fontes de renda, engajando-se na comercialização irregular de combustível, ouro, cigarros e bebidas, além de investir pesadamente em negócios legalizados, como o setor imobiliário e de transportes, para lavagem de dinheiro. Essa base econômica robusta financia um aparato militar sofisticado. O Comando Vermelho emprega tecnologia de guerra, incluindo fuzis de assalto, comunicações criptografadas e, mais recentemente, drones adaptados para lançar explosivos, demonstrando uma capacidade de confronto direto com as forças de segurança do Estado.
Essa combinação de controle territorial, poder econômico e capacidade militar configura o Comando Vermelho não como uma simples gangue, mas como uma entidade paraestatal. Dentro das favelas que domina, a facção usurpa as funções soberanas do Estado: impõe suas próprias "leis", julga e executa desafetos, cobra "impostos" (extorsão) de moradores e comerciantes, e mantém o monopólio da violência. A existência do CV, portanto, representa um desafio direto e fundamental à soberania do Estado brasileiro, criando um poder paralelo que nega a autoridade legítima e oprime milhões de cidadãos. O conflito, nesse contexto, não é meramente uma questão de polícia, mas uma disputa pela própria governança do território.
O Campo de Batalha Urbano - A Realidade da Violência e a Resposta do Estado
A ascensão de facções como o Comando Vermelho transformou as favelas do Rio de Janeiro em verdadeiros campos de batalha urbanos. A violência não é esporádica ou aleatória; é endêmica, sistêmica e instrumental, utilizada como ferramenta de controle territorial e intimidação. Para compreender a lógica por trás das megaoperações policiais, é preciso primeiro dimensionar a crise de segurança pública que as motiva. Utilizando como estudo de caso a megaoperação fictícia, porém plausível, denominada "Operação Contenção", realizada em 28 de outubro de 2025, podemos analisar a dinâmica do confronto, suas justificativas e suas trágicas consequências.
O Imperativo Estatístico da Ação
Os dados sobre a violência no Rio de Janeiro pintam um quadro desolador. O estado historicamente apresenta uma das maiores taxas de homicídio do país. Relatórios de institutos como o Fogo Cruzado e o Instituto de Segurança Pública (ISP) revelam uma escalada constante no número de tiroteios, mortos e feridos, incluindo um número alarmante de vítimas de "balas perdidas". Em janeiro de 2025, por exemplo, o número de pessoas baleadas na região metropolitana cresceu 79% em relação ao ano anterior, um cenário descrito como uma "explosão na violência armada". Esses números não são meras estatísticas; representam vidas perdidas, famílias destruídas e comunidades inteiras vivendo sob um regime de medo permanente. A inação do Estado diante desse quadro não seria uma opção moralmente defensável.
Estudo de Caso: "Operação Contenção" (28 de outubro de 2025)
A "Operação Contenção" serve como um arquétipo das respostas estatais a essa crise.
Objetivo e Justificativa: A ação foi deflagrada com o objetivo claro de frear a expansão territorial do Comando Vermelho e prender lideranças criminosas que se escondiam nos Complexos do Alemão e da Penha. O próprio Governador do Estado, Cláudio Castro, enquadrou a necessidade da operação em termos de guerra, afirmando: "O que estamos enfrentando não é mais crime comum, é narcoterrorismo. Os criminosos estão usando tecnologia de guerra: drones, bombas e armamentos pesados". Essa declaração é crucial, pois desloca o paradigma da segurança pública para o da defesa nacional, justificando o uso de força excepcional.
Escala e Força: A operação mobilizou um contingente massivo de mais de 2.500 policiais civis e militares, com o apoio de 32 veículos blindados, helicópteros e drones. A escala da força empregada foi uma resposta direta à capacidade bélica da facção, que retaliou com intenso poder de fogo, criando uma verdadeira "zona de guerra" na cidade.
Resultados e Letalidade: Os resultados da operação foram significativos em termos de prisões e apreensões, com 81 suspeitos presos (incluindo lideranças importantes) e a apreensão de 93 fuzis e mais de meia tonelada de drogas. No entanto, o custo humano foi altíssimo. Os números oficiais iniciais apontaram 64 mortos, incluindo 4 policiais. Contudo, relatos de ativistas e moradores que encontraram dezenas de outros corpos em áreas de mata após a saída da polícia sugerem que o número total de mortos poderia ultrapassar 130, levando a denúncias de "chacina" e "massacre".
O Custo Social e o Dilema da ADPF 635
É inegável que operações dessa magnitude impõem um custo social severo às comunidades. Escolas e postos de saúde fecham, a rotina dos moradores é brutalmente interrompida e o trauma psicológico afeta a todos, especialmente crianças. A vacinação infantil, por exemplo, pode sofrer quedas de mais de 90% em dias de operação.
No entanto, essa realidade deve ser ponderada com o custo da omissão. A opressão diária imposta pelas facções também destrói vidas e futuros. Nesse contexto, surge a controvérsia em torno da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringiu operações policiais em favelas durante a pandemia de Covid-19, salvo em casos excepcionais.
O Governador Cláudio Castro atribuiu publicamente o fortalecimento do Comando Vermelho e a necessidade de uma operação tão letal às restrições impostas pela ADPF, que ele chamou de "maldita". A lógica apresentada pelas autoridades é que a dificuldade imposta à polícia para entrar nas comunidades permitiu que as facções se entrincheirassem, construíssem barricadas, expandissem seu domínio e acumulassem um arsenal de guerra sem a devida repressão estatal. Essa situação ilustra um trágico paradoxo: uma medida legal, criada com a intenção de proteger os direitos humanos dos moradores sob um paradigma de "tempo de paz", pode ter, na prática, fortalecido seus opressores ao não reconhecer a realidade de "tempo de guerra" vigente nesses territórios. Quando o Estado é finalmente forçado a intervir, o confronto se torna inevitavelmente mais intenso e letal, pois o inimigo está mais forte e mais bem preparado. A falha em aplicar um paradigma legal adequado à natureza do conflito exacerbou a violência, em vez de mitigá-la.
O Dilema Jurídico em uma Guerra Assimétrica - O Direito Penal do Inimigo
A inadequação do arcabouço jurídico tradicional para lidar com o fenômeno do narcoterrorismo leva a um dilema crucial: como o Estado de Direito pode se defender de um inimigo que não joga segundo as suas regras, sem se desfigurar no processo? É neste ponto que a controversa teoria do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), formulada pelo jurista alemão Günther Jakobs, emerge como uma ferramenta conceitual indispensável, ainda que polêmica, para pensar a questão. A teoria não propõe o abandono do Direito, mas sim o reconhecimento de que um único sistema penal é insuficiente para tratar realidades fundamentalmente distintas: a do cidadão que delinque e a do inimigo que busca destruir a própria ordem social.
A Dicotomia entre Cidadão e Inimigo
A premissa central de Jakobs é a distinção entre duas figuras: o cidadão (Bürger) e o inimigo (Feind).
O Cidadão: É aquele que, mesmo ao cometer um crime, não rompe fundamentalmente com o ordenamento jurídico. Ele viola uma norma específica, mas sua identidade como membro do contrato social permanece. Para ele, destina-se o Direito Penal do Cidadão, com todas as suas garantias processuais e constitucionais (presunção de inocência, ampla defesa, proporcionalidade da pena baseada no ato cometido). A pena, neste caso, tem uma função de restaurar a vigência da norma violada e ressocializar o indivíduo.
O Inimigo: Não é um mero criminoso. É um indivíduo que, por meio de sua conduta persistente, organizada e de alta periculosidade (como no caso de terroristas, mafiosos e membros de facções armadas), demonstra um rompimento cognitivo e prático com o Estado de Direito. Ele não apenas viola a lei; ele nega sua legitimidade e busca ativamente destruir a ordem social para impor a sua própria. Ele não é um interlocutor no diálogo social, mas uma ameaça existencial a ser neutralizada.
Aplicando este conceito ao nosso estudo de caso, os líderes e "soldados" do Comando Vermelho, que portam fuzis, controlam territórios pela força, executam rivais e impõem um regime de terror, se autoexcluem da categoria de cidadãos. Suas ações não são desvios pontuais, mas uma declaração de guerra permanente contra o Estado e a sociedade.
As Características do Direito Penal do Inimigo
Para o "inimigo", Jakobs argumenta que se aplica uma lógica de guerra, o Direito Penal do Inimigo, cujas características principais são :
Antecipação da Tutela Penal: O foco do direito se desloca da punição de um crime já cometido (punitur quia peccatum est) para a neutralização de um perigo futuro (punitur ne peccetur). A legislação passa a criminalizar atos preparatórios e a participação em organizações criminosas de forma mais severa, visando impedir a ação antes que ela ocorra.
Desproporcionalidade das Penas: As penas não são mais medidas apenas pela gravidade do ato específico, mas pela periculosidade do agente. Elas se tornam mais duras e os regimes de cumprimento mais rigorosos, com o objetivo de incapacitar o inimigo e proteger a sociedade.
Relativização ou Supressão de Garantias Processuais: As garantias penais e processuais, concebidas para o diálogo com o cidadão, são flexibilizadas. Medidas como a prisão preventiva prolongada, a interceptação de comunicações e interrogatórios mais incisivos são vistas como ferramentas de combate necessárias. O Estado não está processando um cidadão, está combatendo um inimigo.
Aplicação e Críticas
A teoria de Jakobs oferece um arcabouço legal para justificar a resposta do Estado ao narcoterrorismo. Ela legitima operações como a "Contenção" não como um excesso policial, mas como um ato de guerra necessário para a defesa do bem comum. Ela explica por que tratar um "soldado" do tráfico, armado com um fuzil, com as mesmas garantias processuais de um ladrão comum é uma categoria de erro que coloca a sociedade em risco.
As críticas a esta teoria são veementes e devem ser levadas a sério. Argumenta-se que ela é incompatível com os Direitos Humanos, com o princípio da dignidade da pessoa humana e com os fundamentos de um Estado Democrático de Direito, pois cria uma categoria de "não-pessoas" desprovidas de direitos.
A contra-argumentação, no entanto, é pragmática e se baseia na primazia do direito à vida e à segurança da coletividade. O Estado que, em nome de preservar garantias formais para o agressor, falha em proteger seus cidadãos inocentes, comete a maior das injustiças. A aplicação do Direito Penal do Inimigo não seria um abandono do Estado de Direito, mas o reconhecimento de que este precisa de ferramentas excepcionais para se defender de ameaças excepcionais. A verdadeira negação dos Direitos Humanos ocorre diariamente nas favelas dominadas pelo crime, onde o direito de ir e vir, o direito à propriedade e, acima de tudo, o direito à vida são sistematicamente violados. A ação estatal, portanto, torna-se um imperativo para a restauração desses mesmos direitos. A questão não é se o Estado deve ter inimigos, mas como ele deve tratar aqueles que já se declararam como tais.
Parte II: Fundamentos Bíblicos da Autoridade e da Ordem: Um Estudo Exegético
Após estabelecer o contexto fático, social e jurídico da crise de segurança no Rio de Janeiro, o nosso estudo se volta agora para o seu núcleo teológico. Qual é o fundamento bíblico para a existência e a ação do Estado, especialmente no que tange ao uso da força coercitiva? A resposta mais clara e sistemática a essa questão no Novo Testamento se encontra na Epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 13, versículos 1 a 7. Este trecho tem sido, ao longo da história da Igreja, a base para a teologia cristã sobre o governo civil.
Uma exegese cuidadosa desta passagem é crucial para construir uma resposta cristã robusta ao problema do narcoterrorismo. Argumentaremos que este texto não apenas permite, mas ordena a existência de uma autoridade civil com o poder de punir o mal, e define o cristão como um cidadão que deve apoiar essa função como parte de sua submissão a Deus. Longe de ser uma carta branca para a tirania, Romanos 13 estabelece os princípios divinos para a ordem, a justiça e a paz em um mundo caído. Dividiremos nossa análise em três partes, correspondendo à estrutura lógica do argumento do apóstolo Paulo: a origem divina do Estado, sua função de portar a espada e os deveres cívicos do cristão.
"Não há autoridade que não venha de Deus" - A Origem Divina e o Propósito do Estado (Romanos 13:1-2)
O ponto de partida de toda a teologia cristã sobre o Estado reside na afirmação apostólica de sua origem divina. Paulo inicia seu argumento de forma categórica, estabelecendo um princípio universal que transcende regimes políticos e épocas históricas.
Análise Exegética de Romanos 13:1-2
O texto declara: "Toda a alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as autoridades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação".
A primeira afirmação, "não há autoridade que não venha de Deus" (ou gar estin exousia ei mē hypo Theou), estabelece a fonte última de todo poder legítimo. O Estado não é um mero contrato social, uma convenção humana ou o resultado de força bruta. Em seu princípio fundamental, a instituição da autoridade governamental é uma providência divina. A segunda parte, "as autoridades que há foram ordenadas por Deus" (hai de ousai exousiai hypo tou Theou tetagmenai eisin), reforça essa ideia. O verbo tetagmenai (de tassō) significa "colocar em ordem", "arranjar", "designar". Isso implica que a estrutura de governo civil é parte do desígnio de Deus para a organização e preservação da sociedade humana.
É crucial compreender o contexto histórico desta epístola. Paulo escreve por volta de 56 d.C. para os cristãos que viviam no coração do Império Romano, sob o governo do Imperador Nero. Nero não era um governante cristão ou benevolente; ele se tornaria um dos mais cruéis perseguidores da Igreja. O fato de Paulo ordenar submissão às autoridades neste contexto é profundamente significativo. Demonstra que o mandamento não se refere à aprovação do caráter moral ou das políticas específicas de um governante, mas ao reconhecimento da legitimidade da instituição do governo em si. Deus, em sua soberania, institui o princípio da autoridade civil para um propósito maior: restringir o mal e evitar o caos social em um mundo caído. Resistir à "ordenação" de Deus, portanto, não é meramente um ato político, mas um ato de rebelião espiritual que incorre em juízo.
A Distinção Crucial: Submissão vs. Obediência Cega
Um ponto exegético de vital importância reside na palavra grega usada para "sujeita": hypotassesthō. Este termo, derivado de hupo-tasso, não significa obediência cega e inquestionável. Significa, literalmente, "arranjar-se debaixo de", implicando um reconhecimento voluntário de uma estrutura de ordem e autoridade. Paulo deliberadamente não utiliza a palavra hupo-kouo, que significa "obedecer" no sentido de seguir um comando de forma irrestrita, como um filho obedece a um pai ou um escravo a um senhor.
Essa distinção é fundamental. Ela abre espaço para a desobediência civil em casos onde o Estado ordena algo que Deus proíbe, ou proíbe algo que Deus ordena. O exemplo clássico é o dos apóstolos em Atos 5:29: "Mais importa obedecer a Deus do que aos homens". O cristão se "submete" à autoridade reconhecendo seu direito de governar, inclusive aceitando as consequências legais de sua desobediência, mas não "obedece" a uma ordem que viole a lei superior de Deus.
No contexto das operações contra facções, a implicação é clara. A instituição da autoridade estatal é divina. Quando uma organização criminosa como o Comando Vermelho estabelece um poder paralelo, controlando territórios e exercendo soberania de fato, ela não está apenas cometendo crimes. Teologicamente, ela está usurpando uma prerrogativa que Deus delegou exclusivamente ao magistrado civil. É uma rebelião não apenas contra o Estado, mas contra a "ordenação de Deus". Portanto, a ação do Estado para desmantelar essa autoridade ilegítima não é uma mera questão de política de segurança; é um ato de restauração da ordem divinamente estabelecida. O dever do cristão, neste caso, é submeter-se à autoridade legítima (o Estado) em sua luta contra a autoridade usurpadora (a facção).
"Não traz debalde a espada" - A Legitimidade da Força Coercitiva (Romanos 13:3-5)
Se o primeiro ponto de Paulo estabelece que o Estado existe por ordenação divina, o segundo ponto explica para que ele existe. A função primordial do governo civil, segundo a Escritura, é ser um agente de justiça, divinamente autorizado a usar a força para punir o mal e proteger o bem.
Análise Exegética de Romanos 13:3-4
O apóstolo continua seu argumento: "Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal".
Este trecho define a dupla função do Estado: promover o bem e punir o mal. A autoridade legítima deve ser um ambiente de segurança para o cidadão honesto ("faze o bem, e terás louvor dela") e uma fonte de temor para o malfeitor ("se fizeres o mal, teme"). Para cumprir esta segunda função, Deus lhe concedeu um instrumento específico: a "espada" (em grego, machaira).
No contexto romano do primeiro século, a machaira não era apenas uma arma, mas o símbolo do imperium do magistrado – a autoridade legal para infligir punição física, incluindo a pena capital. A afirmação de que a autoridade "não traz debalde a espada" é uma declaração inequívoca de que o Estado tem o direito e o dever, dados por Deus, de usar a força coercitiva e letal para fazer cumprir a lei e punir crimes graves. Não se trata de uma metáfora para persuasão moral, mas da legitimação do poder punitivo do Estado.
O Estado como "Ministro de Deus" para a Vingança
Paulo utiliza duas palavras gregas importantes para descrever a autoridade: ministro (diakonos) e vingador (ekdikos). O Estado é um "servo" ou "agente" de Deus com uma tarefa específica: executar a "ira" (orgē) de Deus sobre aquele que pratica o mal.
Esta função precisa ser entendida em conjunto com o capítulo anterior, Romanos 12. Ali, no versículo 19, Paulo comanda o cristão individual: "Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor".
A justaposição desses dois capítulos revela uma ética bifurcada, ou seja, uma distinção clara entre a vocação do indivíduo cristão e a vocação da instituição estatal:
A Vereda do Cristão (Romanos 12): O indivíduo é chamado à não-retaliação, ao perdão e ao amor ao inimigo. A vingança pessoal é estritamente proibida.
A Vereda do Estado (Romanos 13): A instituição estatal é chamada a fazer exatamente o que é proibido ao indivíduo: exercer a vingança e a ira como um agente de Deus no âmbito civil.
Compreender esta distinção é a chave para resolver muitas das tensões éticas sobre o uso da força. O policial que, no cumprimento do seu dever, usa a força necessária para subjugar um criminoso violento não está violando o Sermão da Montanha. Ele não está agindo por vingança pessoal, mas como um diakonos de Deus, um "ministro" que "porta a espada" para proteger os inocentes e punir os malfeitores. Criticar a ação policial legítima com base na ética pessoal do cristão é cometer um erro de categoria teológica, confundindo as esferas e as vocações que Deus mesmo distinguiu.
No caso das facções narcoterroristas, que praticam o mal de forma sistemática e organizada, a ação do Estado em "portar a espada" contra elas não é apenas legítima, é um dever sagrado. A omissão do Estado em usar a força necessária para desmantelar tais organizações seria uma falha em seu mandato divino, uma abdicação de seu papel como "vingador para castigar o que faz o mal", deixando os cidadãos de bem à mercê do terror.
"Dai a cada um o que deveis" - Os Deveres Cívicos do Cristão (Romanos 13:6-7)
A lógica do argumento paulino é recíproca. Se o Estado tem deveres divinamente ordenados para com o cidadão (proteger o bem e punir o mal), o cidadão, por sua vez, tem deveres para com o Estado. A submissão à ordem de Deus não é passiva; ela se manifesta em ações concretas de apoio e respeito à autoridade legítima.
Análise Exegética de Romanos 13:6-7
Paulo conclui sua exposição sobre o governo civil com instruções práticas: "Por esta razão também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo. Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra".
A primeira conexão que o apóstolo faz é fundamental: o pagamento de impostos (phoros) está diretamente ligado à função do Estado como "ministros de Deus" (leitourgoi Theou). A palavra leitourgoi é significativa; ela frequentemente se refere a um serviço sagrado, quase sacerdotal. Ao pagar impostos, o cidadão está, na prática, financiando o ministério que Deus instituiu para a manutenção da ordem e da justiça. Isso inclui, evidentemente, o financiamento das forças de segurança – a polícia e as forças armadas – que são o braço do Estado que "porta a espada".
Mas o dever do cristão vai além do suporte material. Paulo exige também temor (phobos) e honra (timē). "Temor" aqui não significa pavor, mas um profundo respeito pela autoridade e pelo poder que ela representa. "Honra" refere-se ao reconhecimento da dignidade do ofício. O cristão deve respeitar a instituição da autoridade civil, mesmo quando discorda de seus ocupantes ou de suas políticas, pois está honrando a ordenação de Deus.
A Submissão como um Ato de Consciência
Crucialmente, Paulo fundamenta esses deveres não no medo da punição, mas na consciência. No versículo 5, ele afirma: "Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas também por causa da consciência" (dia tēn syneidēsin). O cristão obedece às leis, paga seus impostos e respeita as autoridades não primariamente para evitar multas ou prisão, mas porque sua consciência, informada pela Palavra de Deus, reconhece que ao fazer isso ele está agindo em harmonia com a vontade de Deus para a ordem social.
As implicações para o debate atual são profundas. Uma perspectiva cristã que advoga por minar, desfinanciar ou deslegitimar as forças de segurança do Estado em seu combate legítimo ao crime organizado está em contradição direta com o ensinamento apostólico. O mandato bíblico não é de antagonismo, mas de apoio crítico e consciente. O cristão tem o dever de orar pelas autoridades (1 Timóteo 2:1-2), de contribuir para o seu sustento através dos impostos e de lhes render o devido respeito.
No contexto de uma operação como a "Contenção", isso se traduz em uma postura de princípio. Enquanto se lamenta toda perda de vida e se exige que a ação policial seja conduzida dentro dos limites da justiça e da proporcionalidade, o princípio fundamental é o de apoio à ação do Estado em cumprir seu mandato de punir o mal. Apoiamos a função, mesmo que tenhamos que fiscalizar a sua execução. A recusa em apoiar a capacidade do Estado de "portar a espada" contra o narcoterrorismo, em nome de uma falsa piedade, é, na realidade, uma falha no dever de consciência de apoiar os "ministros de Deus" em seu trabalho de preservar a paz.
Parte III: Questões Polêmicas e Equilíbrio Teológico
A afirmação de que o Estado possui um mandato divino para usar a força coercitiva, fundamentada em Romanos 13, não existe em um vácuo teológico. Ela deve ser colocada em diálogo e, por vezes, em tensão com outros ensinamentos bíblicos igualmente importantes. Uma teologia robusta não foge das aparentes contradições, mas busca uma síntese equilibrada que honre a totalidade da revelação bíblica. Os críticos de uma postura de "lei e ordem" frequentemente levantam objeções poderosas baseadas em três áreas principais: os ensinamentos de Jesus sobre o amor aos inimigos no Sermão do Monte, o clamor dos profetas do Antigo Testamento por justiça social, e a tradição do pacifismo cristão.
Esta terceira parte do nosso estudo enfrentará diretamente essas objeções. O objetivo não é minimizar a importância desses temas, mas demonstrar que eles não invalidam a doutrina do Estado apresentada em Romanos 13. Argumentaremos que essas diferentes vertentes da Escritura se aplicam a esferas distintas – a pessoal e a institucional, a da Igreja e a do Estado – e que, quando devidamente compreendidas, formam um quadro coerente e equilibrado da ética cristã na vida pública.
Amor ao Inimigo vs. Justiça Pública: Reconciliando o Sermão do Monte com Romanos 13
A objeção mais comum e poderosa contra o uso da força pelo Estado vem das próprias palavras de Jesus Cristo no Sermão do Monte. Como conciliar o mandamento de "amar os vossos inimigos" e "oferecer a outra face" com a imagem de um Estado que "porta a espada" para executar a ira sobre os malfeitores? A resposta reside na distinção fundamental entre a ética pessoal do discípulo e o dever institucional do magistrado.
A Ética Pessoal Radical do Reino
No Sermão do Monte (Mateus 5-7), Jesus estabelece a ética do Reino de Deus, que frequentemente inverte a lógica do mundo. Ele diz: "Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra" (Mateus 5:38-39). E mais adiante: "Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem" (Mateus 5:44).
Esses são mandamentos radicais e inegociáveis para a conduta pessoal do seguidor de Cristo. Eles são projetados para quebrar o ciclo de vingança, demonstrar um amor redentor que espelha o caráter de Deus Pai, e dar testemunho de uma realidade superior – o Reino dos Céus. O cristão, em suas relações interpessoais, é chamado a absorver o mal, a perdoar a ofensa e a buscar a reconciliação, não a retaliação. Esta é a ética da Cruz, onde Cristo não respondeu à violência com violência, mas com perdão (Lucas 23:34).
O Dever Corporativo da Justiça Retributiva
Como já estabelecido na análise de Romanos 13, o papel do Estado é diametralmente oposto. Ele não foi instituído para "oferecer a outra face" à injustiça, mas para resistir ao mal com a força da espada. Sua função não é primariamente redentora, mas preservadora e retributiva. Ele age de forma impessoal, em nome da coletividade, para manter a ordem e garantir que o mal seja punido, criando um ambiente de justiça e segurança para todos.
Resolvendo a Aparente Contradição: Esferas Distintas
A contradição se dissolve quando reconhecemos que a Bíblia estabelece diferentes mandatos para diferentes esferas. A ética do Sermão do Monte aplica-se à esfera pessoal e eclesial. A ética de Romanos 13 aplica-se à esfera institucional e civil.
O cristão como indivíduo é chamado a perdoar o criminoso que o assaltou.
O Estado como instituição é chamado a prender, julgar e punir esse mesmo criminoso.
Essas duas ações não são contraditórias; são complementares e operam em níveis diferentes. O policial cristão que participa de uma operação contra o Comando Vermelho não está agindo por ódio pessoal ou desejo de vingança. Ele está agindo como um agente do Estado, um "ministro de Deus", cumprindo o dever institucional de proteger a sociedade. Como indivíduo, ele pode e deve orar pela salvação dos criminosos que enfrenta, amando suas almas mesmo enquanto se opõe às suas ações malignas com a força necessária.
Confundir essas duas esferas leva a dois erros perigosos: ou a Igreja tenta usurpar a espada do Estado, caindo na tentação da teocracia violenta; ou a Igreja tenta impor a ética da não-retaliação ao Estado, o que levaria à anarquia e ao abandono dos inocentes à mercê dos predadores. O equilíbrio bíblico mantém a Igreja como uma comunidade de graça e o Estado como uma instituição de justiça, ambos ordenados por Deus para seus propósitos distintos em um mundo caído.
Justiça Social Profética vs. Ordem Pública: Reconciliando Amós com o Magistrado Civil
Outra objeção significativa vem da poderosa tradição dos profetas do Antigo Testamento. Profetas como Amós, Miqueias e Isaías denunciaram com veemência a opressão dos pobres, a corrupção nos tribunais e a hipocrisia de uma religião divorciada da justiça. Como pode uma defesa da ação policial, muitas vezes vista como uma força opressora nas comunidades pobres, ser compatível com o clamor profético por justiça social? A resposta exige uma redefinição do que constitui a verdadeira justiça social no contexto das favelas dominadas pelo crime.
A Mensagem Profética: Justiça como Essência da Fé
Os profetas do Antigo Testamento deixaram claro que a verdadeira adoração a Deus é inseparável da prática da justiça nas relações humanas. Amós, por excelência o profeta da justiça social, declarou a repulsa de Deus por um culto vazio: "Odeio, desprezo as vossas festas, e as vossas assembleias solenes não me dão prazer... Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos... Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça como o ribeiro impetuoso" (Amós 5:21, 23-24). Para os profetas, Deus é o defensor dos órfãos, das viúvas e dos pobres, e a exploração dos vulneráveis era não apenas um problema social, mas um pecado gravíssimo contra a Aliança com Deus.
A Injustiça da Anarquia e a Tirania do Crime
Agora, transportemos essa mensagem profética para a realidade de uma favela controlada pelo Comando Vermelho. Quem é o principal opressor dos pobres, dos pequenos comerciantes, das crianças e dos vulneráveis nesse território? Não é, primariamente, o Estado ausente, mas o poder paralelo e tirânico da facção criminosa presente.
É a facção que impõe o "imposto" da extorsão, que recruta à força os jovens para a guerra do tráfico, que executa sumariamente aqueles que desobedecem às suas leis, que proíbe a livre circulação e que cria um ambiente de medo constante que impede o desenvolvimento social e econômico. A situação nas favelas dominadas pelo crime é a encarnação moderna da injustiça que Amós denunciava: um sistema onde "vendem o justo por prata, e o necessitado por um par de sapatos" (Amós 2:6). A maior injustiça social nesses locais é a ausência da lei e da ordem.
A Ordem como Pré-requisito para a Justiça
Neste contexto, a ação do Estado para desmantelar o poder das facções não é um ato contra a justiça social; é o ato mais fundamental e necessário para que a justiça social se torne possível. Não pode haver acesso efetivo à educação, saúde, saneamento básico ou oportunidades de emprego em um território onde a vida é regida pela lei do mais forte e do mais armado. A segurança é o alicerce sobre o qual todos os outros direitos sociais são construídos.
Portanto, a operação policial que visa restaurar a soberania do Estado e o império da lei não está em contradição com a mensagem profética. Pelo contrário, ela é a pré-condição para que "o juízo corra como as águas". A Igreja, seguindo o exemplo dos profetas, deve sim denunciar todas as formas de injustiça, incluindo eventuais abusos cometidos por agentes do Estado. Mas sua denúncia profética deve ser primariamente dirigida contra o sistema de opressão e morte imposto pelo narcoterrorismo. A verdadeira justiça social para os moradores das favelas começa com a libertação da tirania do crime. A ação legítima do Estado, portanto, torna-se um instrumento para essa libertação.
A Objeção Pacifista - Uma Crítica Apologética à Posição Anabatista
Uma terceira corrente de pensamento cristão que se opõe fundamentalmente a qualquer uso da violência é a tradição pacifista, mais proeminentemente representada pelos Anabatistas. Nascidos da Reforma Radical do século XVI, os Anabatistas defendem uma recusa total em participar da violência, seja no serviço militar ou na aplicação da lei, baseando-se em um seguimento literal dos ensinamentos de Jesus sobre a não-resistência. Esta posição, embora minoritária, merece um engajamento respeitoso e uma crítica teológica.
A Posição Anabatista: Uma Ética de Não-Violência Radical
A teologia Anabatista é uma "teologia vivida", centrada no discipulado radical de Jesus Cristo. Para eles, o amor a Deus e ao próximo, o Sermão do Monte e o exemplo de Cristo na cruz são normativos para toda a vida cristã, sem distinção entre esferas pessoal e pública. Acreditam que cristianismo e violência são incompatíveis. Portanto, recusam-se a portar armas, a participar de guerras ou a ocupar cargos no governo que exijam o uso da força coercitiva (o ofício de magistrado). A Igreja, para eles, é uma comunidade alternativa e contracultural que testemunha ao mundo através do sofrimento e da não-violência, separada das estruturas de poder "deste mundo".
Crítica Teológica: A Confusão entre as Vocações da Igreja e do Estado
A força da posição Anabatista reside em sua consistência e em seu compromisso com os ensinamentos de Jesus. No entanto, sua principal fraqueza teológica é a falha em reconhecer a distinção bíblica entre a vocação da Igreja e a vocação do Estado. Como argumentado anteriormente, Romanos 13 atribui ao Estado uma função – "portar a espada" – que é explicitamente negada ao cristão em Romanos 12. A teologia Anabatista, ao aplicar a ética da Igreja (não-retaliação) ao Estado, efetivamente apaga o mandato específico de Romanos 13.
Enquanto a Igreja é chamada a ser uma comunidade de graça, perdão e testemunho pacífico, o Estado foi instituído por Deus em um mundo caído com a tarefa de restringir o mal através da coerção. A vocação da Igreja é redimir; a vocação do Estado é preservar a ordem. Tentar forçar o Estado a operar segundo a ética da Igreja é pedir-lhe que abdique de sua função divinamente ordenada.
A Inviabilidade do Pacifismo como Política de Estado
Na prática, a aplicação de uma ética pacifista ao Estado levaria a consequências desastrosas. Um Estado que se recusa a usar a força para se defender de agressores externos ou para punir criminosos violentos internamente está, na realidade, abandonando seus cidadãos inocentes à violência e à anarquia. Seria uma abdicação do dever mais fundamental do governo: proteger a vida e a propriedade de seu povo.
Diante de uma organização maligna como o Comando Vermelho, um Estado pacifista seria impotente. A recusa em "portar a espada" não resultaria em paz, mas na vitória da tirania. Embora o pacifismo possa ser uma convicção pessoal válida para um indivíduo que escolhe sofrer o mal em vez de cometê-lo, ele não pode ser uma política normativa para o magistrado, que tem a responsabilidade por outros e o dever, dado por Deus, de proteger a comunidade. A legítima defesa, como veremos, é não apenas um direito, mas um dever grave para quem é responsável pela vida de outrem. A posição Anabatista, portanto, embora nascida de uma piedade sincera, representa uma compreensão incompleta do plano de Deus para a ordem social em um mundo que ainda aguarda a redenção final.
Parte IV: A Grande Tradição: Doutrinas Denominacionais sobre o Estado e a Força
A tese central deste estudo – de que o Estado possui um mandato divino para usar a força coercitiva a fim de manter a ordem e punir o mal – não é uma inovação teológica ou uma interpretação radical. Pelo contrário, ela está profundamente enraizada no pensamento cristão majoritário ao longo de dois milênios. A "Grande Tradição" da Igreja, expressa nos escritos dos Pais da Igreja, nas confissões de fé da Reforma e nos catecismos das principais denominações, demonstra um consenso notável sobre a legitimidade e a necessidade do poder civil.
Esta quarta parte explorará essa tradição, mostrando que a visão defendida aqui é consistente com o ensino histórico da Igreja Católica, Reformada (Calvinista), Luterana e Batista. Ao examinar a Doutrina da Guerra Justa e os documentos confessionais oficiais, construiremos um caso cumulativo que solidifica a base teológica para a ação estatal legítima contra o narcoterrorismo.
A Doutrina da Guerra Justa: De Agostinho e Aquino à Ação Policial
Antes mesmo das confissões de fé da Reforma, a teologia cristã já havia desenvolvido um robusto arcabouço ético para lidar com a questão do uso da força: a Doutrina da Guerra Justa. Formulada inicialmente por Santo Agostinho de Hipona e posteriormente sistematizada por São Tomás de Aquino, essa doutrina busca estabelecer critérios morais para determinar quando o recurso à guerra é justificável e como ela deve ser conduzida. Embora tradicionalmente aplicada a conflitos entre nações, seus princípios podem ser adaptados para analisar a legitimidade de ações estatais de alta intensidade contra inimigos internos paraestatais, como as facções criminosas.
Os Princípios Clássicos da Guerra Justa
A doutrina se divide em duas categorias principais de critérios :
Jus ad Bellum (O Direito de Ir à Guerra): Refere-se às condições que devem ser atendidas para que a decisão de usar a força seja moralmente legítima.
Causa Justa: A guerra só pode ser travada para reprimir um mal grave e duradouro, como a autodefesa contra uma agressão ou a proteção de inocentes da opressão.
Autoridade Legítima: Apenas uma autoridade pública devidamente constituída (um Estado soberano) tem o direito de declarar guerra. A violência privada é ilegítima.
Intenção Reta: O objetivo deve ser a restauração de uma paz justa, e não a vingança, a ganância ou a conquista territorial.
Último Recurso: Todas as opções pacíficas e diplomáticas para resolver o conflito devem ter sido esgotadas ou serem claramente inviáveis.
Probabilidade de Sucesso: Deve haver uma chance razoável de que a ação militar atingirá seus objetivos justos. Uma guerra fútil que apenas causa mais sofrimento é imoral.
Proporcionalidade dos Fins: O bem total a ser alcançado pela vitória deve superar o mal e os danos que a guerra inevitavelmente causará.
Jus in Bello (O Direito na Guerra): Refere-se às regras de conduta moral que devem ser observadas durante o conflito.
Distinção (ou Discriminação): Os atos de guerra devem ser dirigidos apenas contra combatentes inimigos. Civis e não-combatentes nunca devem ser alvos intencionais.
Proporcionalidade dos Meios: A força utilizada deve ser proporcional ao objetivo militar. Deve-se evitar o uso de força excessiva que cause destruição e sofrimento desnecessários.
Aplicação à Ação Policial Contra o Narcoterrorismo
Este arcabouço ético é extremamente útil para avaliar a moralidade de uma operação como a "Contenção". Ao tratar o conflito não como policiamento comum, mas como uma "guerra justa" contra um agressor interno, podemos aplicar sistematicamente esses critérios para discernir a legitimidade da ação estatal.
A tabela a seguir sistematiza essa aplicação, utilizando a "Operação Contenção" como nosso estudo de caso.
A aplicação da Doutrina da Guerra Justa demonstra que, em princípio, uma operação como a "Contenção" pode ser moralmente justificada. No entanto, ela também destaca a importância crucial da conduta durante a operação (jus in bello), especialmente o princípio da distinção, que exige um compromisso rigoroso para proteger a vida de inocentes em meio ao conflito.
O Consenso Confessional sobre o Magistrado Civil
A Reforma Protestante do século XVI, embora tenha rompido com Roma em muitas doutrinas, manteve e até reforçou a visão tradicional sobre a legitimidade do Estado. As grandes confissões de fé que emergiram desse período – Luterana, Reformada e, posteriormente, Batista – articularam de forma clara e sistemática a doutrina do magistrado civil, baseando-se diretamente na exegese de Romanos 13.
A Doutrina Católica
A Igreja Católica, em seu Catecismo, reafirma a doutrina tradicional. Os parágrafos 2263-2267 tratam da legítima defesa. A Igreja ensina que a defesa do bem comum exige que um agressor injusto seja impedido de causar dano. Por essa razão, "os detentores legítimos da autoridade têm o direito de recorrer mesmo às armas para repelir os agressores da comunidade civil confiada à sua responsabilidade" (§2265). O Estado tem não apenas o direito, mas o "dever de infligir penas proporcionais à gravidade do delito" para defender a ordem pública e tutelar a segurança das pessoas (§2266). Esta doutrina fornece um fundamento católico claro para o uso da força pelo Estado na proteção de seus cidadãos.
A Doutrina Reformada (Calvinista)
A Confissão de Fé de Westminster, o padrão doutrinário para muitas igrejas presbiterianas e reformadas, é explícita em seu capítulo XXIII, "Do Magistrado Civil". Ela afirma que Deus "ordenou os magistrados civis" e, para o fim de promover o bem público, "os armou com o poder da espada, para defesa e incentivo dos que fazem o bem, e para castigo dos malfeitores". A confissão vai além, declarando que, sob o Novo Testamento, é lícito para os magistrados "empreender guerra em ocasiões justas e necessárias". Esta é uma das mais fortes afirmações confessionais sobre o direito do Estado de usar a força letal tanto interna quanto externamente.
A Doutrina Luterana
A Confissão de Augsburgo, o documento fundador do Luteranismo, aborda o tema no Artigo XVI, "Da Ordem Civil". Ela ensina que "toda autoridade no mundo e todos os governos e leis ordenados são ordenações boas, criadas e instituídas por Deus". O texto afirma inequivocamente que os cristãos podem, sem pecado, ocupar cargos de autoridade e "punir malfeitores com a espada, fazer guerras justas, combater...". A confissão explicitamente condena os Anabatistas por ensinarem o contrário, solidificando a posição luterana majoritária em favor do papel coercitivo do Estado.
A Doutrina Batista
Embora os Batistas historicamente enfatizem a separação entre Igreja e Estado e a liberdade de consciência, suas declarações de fé majoritárias afirmam a legitimidade do governo civil. A Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira, por exemplo, afirma que tanto a Igreja quanto o Estado "foram ordenados por Deus" e que cabe ao Estado "o exercício da autoridade civil, a manutenção da ordem e a promoção do bem-estar de todos". Ela ensina que os cristãos devem "aceitar suas responsabilidades de sustentar o estado e obedecer ao poder civil" e que a Igreja deve ao Estado "o reforço moral e espiritual para a lei e a ordem". Essa posição, embora não use a linguagem da "espada" tão explicitamente quanto as confissões reformadas e luteranas, claramente apoia a função do Estado na manutenção da ordem e espera que os cristãos sejam cidadãos cumpridores da lei.
Este levantamento demonstra um consenso ecumênico esmagador. As principais tradições do cristianismo histórico, com a notável exceção das igrejas pacifistas como os Anabatistas, concordam que Deus instituiu o Estado com o poder e o dever de usar a força coercitiva para punir o crime, proteger os inocentes e manter a ordem. A ação legítima do Estado contra o narcoterrorismo, portanto, não encontra apoio apenas em um texto isolado de Romanos, mas em um coro de testemunho teológico que ecoa através dos séculos.
Parte V: Aplicação Devocional e Conclusão
Um estudo teológico-jurídico desta magnitude correria o risco de se tornar um mero exercício intelectual se não fosse traduzido em implicações práticas para a vida da Igreja e do cristão individual. A doutrina não existe para ser apenas afirmada, mas para ser vivida. Como, então, os princípios bíblicos e teológicos aqui explorados devem moldar nossa atitude e ação diante da complexa realidade da violência urbana e da resposta do Estado?
Esta parte final buscará construir essa ponte entre a teoria e a prática. Primeiro, ofereceremos uma ética cristã prática para o cidadão, para o profissional de segurança e para a Igreja como um todo. Em seguida, concluiremos com uma síntese poderosa do argumento central do estudo, reafirmando o papel da ordem como um pressuposto fundamental para o florescimento da vida humana e a proclamação do Evangelho.
Vivendo entre a Espada e a Cruz: Uma Ética Cristã Prática
A realidade cristã é vivida em uma tensão criativa entre a ética do Reino de Deus, simbolizada pela Cruz (amor, perdão, não-retaliação), e as realidades de um mundo caído, onde Deus ordenou a Espada do magistrado para conter o caos. Navegar essa tensão exige sabedoria, equilíbrio e uma compreensão clara das diferentes vocações.
Para o Cidadão Cristão
A responsabilidade do cidadão cristão vai além de uma crítica simplista ou de um apoio acrítico ao governo. A fé nos chama a uma cidadania ativa e consciente.
Orar pelas Autoridades: O primeiro dever, conforme instruído por Paulo em 1 Timóteo 2:1-2, é orar "pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade". Devemos orar por sabedoria, justiça e coragem para nossos governantes e para os agentes de segurança que arriscam suas vidas.
Apoiar a Lei e a Ordem: Conforme Romanos 13, devemos apoiar a função legítima do Estado através do pagamento de impostos, do respeito às leis e do reconhecimento da honra devida à autoridade. Isso significa cultivar uma cultura que valoriza a ordem e rejeita a anarquia, ensinando esses princípios em nossas famílias e comunidades.
Ser uma Voz Profética Equilibrada: O apoio não significa silêncio. O cidadão cristão tem o dever de denunciar a injustiça, seja ela cometida por criminosos ou por agentes do Estado. Devemos clamar por uma polícia que seja não apenas forte, mas também justa, que respeite os direitos dos cidadãos e atue com o máximo de profissionalismo para proteger os inocentes.
Para o Policial Cristão
O profissional de segurança pública que é cristão se encontra na linha de frente dessa tensão teológica. Sua fé pode e deve ser a fonte de sua força e de seu discernimento ético.
Entender a Vocação como um Ministério: O policial cristão deve ver sua profissão não apenas como um emprego, mas como uma vocação divina, um ministério (diakonia) de Deus para a sociedade. Ele é, literalmente, um "ministro de Deus" que "porta a espada" para proteger o bem e punir o mal. Essa perspectiva confere dignidade e propósito ao seu trabalho.
Exercer a Autoridade com Justiça e Retidão: A espada é um instrumento de Deus e deve ser usada com temor e tremor. O policial cristão deve se esforçar para agir com integridade, coragem, autocontrole e um profundo senso de justiça. Ele deve combater o mal sem se deixar corromper por ele, lembrando-se de que prestará contas não apenas a seus superiores, mas ao Juiz de toda a terra.
Manter a Humanidade do Inimigo em Perspectiva: Embora enfrente o mal em suas formas mais brutais, o policial cristão deve se lembrar de que cada indivíduo, inclusive o criminoso mais perverso, foi criado à imagem de Deus. Ele deve usar a força necessária para neutralizar a ameaça, mas sem ceder ao ódio pessoal. Ele combate a ação maligna, mas pode, em seu coração, orar pela alma do malfeitor.
Para a Igreja
A Igreja, como corpo de Cristo, tem um papel único e multifacetado na sociedade.
Ser uma Comunidade de Paz e Ordem: A Igreja deve ser um modelo para a sociedade, uma comunidade onde a lei de Cristo é vivida, os conflitos são resolvidos pacificamente e a justiça e a misericórdia florescem.
Pregar o Evangelho Completo: A Igreja deve pregar o Evangelho que transforma o coração do pecador, a única solução definitiva para o problema do crime. Ao mesmo tempo, deve ensinar a doutrina bíblica completa sobre o Estado, ajudando seus membros a se tornarem cidadãos responsáveis.
Ministrar a Todas as Vítimas: A Igreja deve ser um lugar de refúgio e cura para todas as vítimas da violência: os moradores das favelas oprimidos pelo tráfico, as famílias dos criminosos e também os policiais e suas famílias, que carregam o pesado fardo físico e emocional do combate ao crime. Ela deve oferecer apoio pastoral, social e espiritual, sem tomar partido na guerra, mas ficando ao lado de todos que sofrem.
Apoiar a Justiça e Fiscalizar o Poder: A Igreja deve apoiar as instituições de justiça e segurança em seu mandato legítimo. Ao mesmo tempo, deve atuar como a consciência da nação, denunciando a corrupção, a brutalidade e os abusos de poder, e clamando para que a espada do Estado seja sempre guiada pela balança da justiça.
Conclusão - A Ordem como Pré-requisito para o Evangelho
Chegamos ao fim de nossa jornada teológico-jurídica. Partimos da realidade brutal de uma guerra urbana no Rio de Janeiro, personificada na "Operação Contenção" contra a entidade paraestatal maligna conhecida como Comando Vermelho. Vimos como o arcabouço jurídico tradicional se mostra insuficiente, exigindo o recurso a conceitos como o Direito Penal do Inimigo para compreender a natureza do conflito.
Ancoramos nossa análise na rocha da Escritura, realizando uma exegese detalhada de Romanos 13, que estabelece de forma inequívoca o Estado como uma instituição divinamente ordenada, cujo propósito é manter a ordem e a justiça, portando a "espada" como ministro de Deus para punir o mal. Demonstramos que essa visão não é contraditória com os ensinamentos de Jesus sobre o amor ou com o clamor dos profetas por justiça, mas se harmoniza com eles quando compreendemos as distintas esferas de atuação da ética pessoal e do dever institucional.
Finalmente, percorremos a Grande Tradição da Igreja, confirmando que a visão do Estado como portador legítimo da espada representa um consenso esmagador entre as principais denominações cristãs históricas, da Igreja Católica às igrejas da Reforma.
A tese final que emerge deste estudo pode ser sintetizada da seguinte forma: a manutenção da paz e da ordem pelo Estado não é um "mal necessário", mas um bem positivo e fundamental, uma pré-condição para o florescimento da sociedade humana e para a livre proclamação do Evangelho.
Em um mundo marcado pela desintegração do pecado, onde as forças do caos e da violência ameaçam constantemente a vida, a família e a comunidade, o Estado justo atua como um dique de contenção, uma muralha de proteção ordenada por Deus. A espada do magistrado, quando empunhada com justiça, não se opõe à Cruz de Cristo. Pelo contrário, ela cria um espaço de relativa paz e segurança no qual a mensagem da Cruz pode ser pregada, ouvida e vivida. Onde a tirania do crime reina, o medo sufoca a fé e a violência silencia o testemunho. Onde a lei e a ordem prevalecem, a Igreja encontra a liberdade para cumprir sua missão.
Portanto, o apoio do cristão à ação legítima e enérgica do Estado contra as forças do narcoterrorismo não é um compromisso com o "mundo" ou uma traição aos ideais do Evangelho. É um ato de fidelidade à ordem criada por Deus, uma contribuição para o bem comum e uma defesa do espaço necessário para que a única solução verdadeira e eterna – a graça redentora de Jesus Cristo – possa ser oferecida a um mundo desesperadamente necessitado de paz, tanto temporal quanto eterna.




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