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Genealogia de Rebeca | Gênesis 22:20-24

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 3 de set.
  • 11 min de leitura
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Logo após o intensíssimo relato do sacrifício interrompido de Isaque, Gênesis 22 dá uma guinada abrupta, oferecendo notícias familiares de parentes distantes de Abraão. Os versículos 20–24 funcionam como uma ponte literária para a próxima fase da história, introduzindo a genealogia da família de Naor (irmão de Abraão) da qual emergirá Rebeca. O parágrafo inicia-se com a expressão temporal “Algum tempo depois”, sinalizando uma transição após os eventos em Moriá. Foi comunicado a Abraão o nascimento de diversos filhos de seu irmão Naor, por meio de Milca e de sua concubina Reumá. Embora à primeira vista pareça apenas uma lista genealógica sem conexão com o drama anterior, essa inserção cumpre pelo menos três propósitos literários e teológicos claros.


Primeiramente, esta genealogia forma uma inclusão com o início da história de Abraão, fechando um grande ciclo narrativo. Assim como a história de Abraão começou em Gênesis 11:27-30 com a genealogia de Terá (mencionando Abraão, Naor e Harã) e o fato de Sara ser estéril, agora, ao término da narrativa de Abraão como patriarca principal, reaparece uma genealogia da família do irmão de Abraão. Em outras palavras, Gênesis 12–22 (a “história de Abraão”) fica enquadrada entre duas listas genealógicas familiares: a de Terá no início e a de Naor aqui no final. Essa construção literária é intencional. O próprio texto sugere o paralelismo: “Como a prova do sacrifício de Abraão ecoa o chamado de Abraão para a viagem (12.1-8), esta genealogia de Naor ecoa a genealogia de Terá (11.27-31), formando uma inclusão em torno da principal narrativa concernente a Abraão”. Assim, há um retorno à família deixada para trás lá em Harã quando Abraão partiu. Isso confere uma sensação de conclusão de ciclo e, ao mesmo tempo, aponta para a continuidade do propósito divino além de Abraão, agora envolvendo a próxima geração (Isaque) e novos personagens (Rebeca).


Em segundo lugar, essa passagem tem a função de preparar o terreno para os eventos do capítulo 24, onde Abraão buscará uma esposa para Isaque. Não por coincidência, a genealogia destaca Rebeca. Ela é mencionada explicitamente no verso 23: “Betuel gerou Rebeca”. É a única mulher listada entre os descendentes de Naor, um sinal claro de sua importância. O narrador, ao inserir quase como uma nota explicativa “(Betuel gerou Rebeca)”, deixa transparecer que o objetivo de registrar essa lista é justamente introduzir a futura matriarca de Israel. Rebeca será a esposa de Isaque e, posteriormente, mãe de Jacó e Esaú, dando continuidade à linhagem pactual. Observe-se que Rebeca é parente próxima de Abraão – neta de seu irmão Naor – garantindo que Isaque se case “dentro da família” e não com as cananéias (o que seria mal visto, cf. 24:3-4). A genealogia funciona, portanto, como a ponte narrativa para a história do servo de Abraão indo à Mesopotâmia buscar Rebeca (cap. 24). Em termos literários, podemos dizer que ela “arma o palco” para a entrada de Rebeca na história dos patriarcas. O crítico Robert Sternberg comenta que, justaposta imediatamente após a grande bênção de Deus a Abraão e estruturando-se em correspondência com outro casamento (o de Ismael, implícito em 21:21), essa lista “praticamente dá nome à futura esposa” de Isaque. Ou seja, o texto anuncia antecipadamente quem será a próxima grande figura feminina da narrativa, quase dizendo: “Veja, Rebeca já nasceu e está esperando, por assim dizer, para entrar em cena”. Essa é uma maneira sutil de demonstrar a providência divina em andamento: antes mesmo de Sara falecer (cap. 23) e de Isaque precisar de esposa, Deus já preparou Rebeca na parentela de Abraão. O leitor atento percebe que o fio da promessa não será interrompido – o mesmo Deus que proveu um cordeiro também proverá uma noiva para o filho da promessa. A tarefa inacabada de Abraão (assegurar a continuidade da descendência) agora entra em foco; a notícia dos filhos de Naor lembraria Abraão de que ainda precisa cuidar da “segunda geração da família prometida”.


Em terceiro lugar, a genealogia em si traz elementos estruturais e históricos interessantes, servindo para conectar a família de Abraão com outros povos e regiões. A lista é organizada como uma genealogia segmentada (isto é, ramificada), em contraste com as genealogias lineares usadas para traçar uma única linhagem principal. Aqui, busca-se mostrar os diversos ramos da casa de Naor, estabelecendo relações familiares e tribais. Apresenta-se primeiramente os filhos de Naor com sua esposa legítima Milca – oito ao todo – e depois os filhos com a concubina Reumá – mais quatro. Essa divisão destaca a proeminência dos filhos de Milca (a esposa principal), em relação aos da concubina. O próprio texto reforça isso, repetindo após listar os oito: “Milca deu à luz esses oito filhos a Naor, irmão de Abraão” (v.23b). Essa espécie de conclusão sublinha a legitimidade e a importância do ramo de Milca. Já os filhos de Reumá são listados separadamente no v.24, quase à parte. Há aqui um paralelo tipológico curioso com outras genealogias bíblicas: assim como Naor tem doze filhos (somando 8 + 4) que provavelmente deram origem a doze clãs ou tribos, também Ismael (filho de Abraão fora da linha da promessa) terá doze príncipes (Gn 17:20; 25:13-16), e Jacó (filho de Isaque) terá doze filhos, pais das doze tribos de Israel. Em cada caso, vemos um arranjo de doze dividido entre filhos de esposa(s) principal(is) e filhos de esposa(s) secundária(s): Naor tem 8 de Milca e 4 de Reumá; Jacó terá 8 filhos por Leia e Raquel (as esposas livres) e 4 pelas concubinas Zilpa e Bila; e mesmo na genealogia de Esaú em Gênesis 36 há um reflexo de organização tribal. O número doze torna-se, assim, um símbolo da abundância de povos e também da eleição divina (as doze tribos de Israel escolhidas, contrastando com os “doze” de Naor e Ismael que não fazem parte da linhagem da promessa). O autor sutilmente iguala e contrasta os destinos: Naor gera doze ancestrais de tribos arameias; Ismael gera doze tribos árabes; Jacó gera doze tribos israelitas – todos parentescos, mas com papéis diferentes no plano de Deus. Aqui em Gn 22, mencionar esses doze filhos de Naor logo após o juramento de Deus de multiplicar a descendência de Abraão (22:17) realça o tema da multiplicação de semente: Deus cumprirá Sua promessa não apenas dando muitos descendentes a Abraão, mas também já está prosperando a família ao redor (Naor). Contudo, a diferença crucial será que somente através da linhagem de Isaque-Rebeca é que virá a “descendência” portadora da bênção pactuada.


A lista dos nomes dos filhos de Naor também traz curiosidades histórico-arqueológicas dignas de nota. Muitos desses nomes parecem corresponder a tribos ou localidades conhecidas posteriormente, indicando que Gênesis preserva memórias antigas com possíveis alusões geográficas. Por exemplo: Uz, o primogênito de Milca, é nome que aparece em Gênesis 10:23 (um descendente de Sem) e mais tarde designa a região onde viveu Jó (Jó 1:1). Buz, o segundo filho, é mencionado pelo profeta Jeremias ao aludir a povos árabes do deserto (Jr 25:23). Há textos cuneiformes da Mesopotâmia que falam de uma terra chamada Bazu (ou Bazu), talvez relacionada a Buz, localizada a leste da Arábia. O nome Quemuel vem seguido de “pai de Arã” – provavelmente para distinguir esse Quemuel de outras figuras homônimas (por exemplo, um líder efraimita em Nm 34:24 e um levita em 1Cr 27:17). O filho de Quemuel chamado Arã também é distinguido de Arã filho de Sem (Gn 10:22) ou de outro Arã neto de Aser (1Cr 7:34). Já Quesede (ou Quesed) parece ser o antepassado epônimo dos caldeus (Kasdim em hebraico). Sabemos que “Ur dos Caldeus” (Ur Kasdim) era a cidade de origem de Abraão (Gn 11:28); o nome de Quesede indica que na tradição hebraica os caldeus descendiam de um parente da família de Abraão – o que é historicamente intrigante, visto que os caldeus historicamente surgem mais tarde na Mesopotâmia. Hazo possivelmente se relaciona com a região de Háza ou al-Hassa, na costa da Arábia oposta ao Bahrein, conforme sugere um dicionário hebraico (HALOT). Pildas e Jidlafe não temos outras referências – permaneceram obscuros. Betuel, por sua vez, é nome importantíssimo porque é pai de Rebeca. Ele será mencionado novamente quando o servo de Abraão for recebido em sua casa (Gn 24:15, 24:47) e posteriormente ao citar a parentela de Rebeca (Gn 25:20; 28:5). Betuel é apresentado aqui como filho de Milca, o que significa que Rebeca pertence ao ramo principal (de Milca) e não ao da concubina. Por isso ela é destacada: é sobrinha-neta de Abraão por parte de sangue (neta de seu irmão) e, ao mesmo tempo, também aparentada a Abraão pelo lado de Harã, pois Milca – mãe de Betuel – era filha de Harã (Gn 11:29). Rebeca, portanto, conecta Abraão duplamente a sua própria família, o que tornará seu casamento com Isaque um arranjo entre primos de segundo grau, preservando a linha escolhida dentro do clã de Terá. O nome Rebeca em si tem origem incerta; linguistas propõem que talvez derive de um termo associado a gado bovino (do acádico/árabe ribqa ou baqarat, “novilha”). Se assim for, seria similar a outros nomes femininos antigos ligados a animais graciosos. De todo modo, o autor talvez inclua a origem do nome para satisfazer a curiosidade etimológica, mas admite que “o significado é incerto”. É interessante que Rebeca é a única mulher citada, o que imediatamente “suscita antecipações acerca da esposa de Isaque” – o leitor sabe que ela será especial.


Finalmente, o verso 24 lista os quatro filhos que a concubina Reumá deu a Naor: Tebá, Gaã, Taás e Maacá. Pouco se sabe sobre eles, mas algumas pistas existem. Concubina (em hebraico pilegesh) designava uma esposa de status secundário, geralmente sem dote pago e com menos direitos legais. Os filhos de concubinas, embora legítimos, costumavam ter posição inferior na herança (isso se verá também com os filhos de Abraão com Quetura, em Gn 25:5-6). Tebá provavelmente vem de uma raiz que significa “matança” (do hebraico/ugarítico tabaha), talvez indicando “nascido em tempo de grande matança” – um nome estranho, mas há paralelos onomásticos antigos que ligam Tebá a um lugar chamado Tubihi mencionado nas cartas de El-Amarna, cidade importante ao sul da Síria. Gaã aparece como nome pessoal em inscrições de Arade (século VII a.C.), indicando que pode ter sido nome de antepassado de alguma família arameia ou árabe. Taás possivelmente relaciona-se a um local no vale do rio Orontes, perto de Cades, mencionado também em textos egípcios (conhecido como Takhsi). Maacá é mais conhecido: deu nome a um pequeno reino arameu ao sul do monte Hermom, vizinho a Gesur, mencionado várias vezes na Bíblia (Dt 3:14; Js 13:13; 2Sm 10:6). Os maacatitas eram aquele povo fronteiriço que, nos dias de Josué, não foram expulsos e continuaram habitando no norte de Gileade. Assim, vemos que pelo menos alguns desses nomes correspondem a regiões ou tribos historicamente atestadas, sugerindo que essa genealogia reflete memórias autênticas da expansão do clã de Terá em povos do norte da Mesopotâmia e da Síria. Tais detalhes “conhecidos pela geografia” corroboram a historicidade dessa lista. Evidentemente, é difícil para os estudiosos identificar com certeza todos os nomes, mas o fato de alguns baterem com dados extrabíblicos dá peso histórico ao registro. Em última análise, porém, para o autor sagrado a autenticidade dessa genealogia não depende de confirmação externa, mas da inspiração divina e da coerência interna com o propósito teológico da narrativa. E qual é esse propósito? Principalmente, mostrar que Deus já está preparando a próxima cena da história da salvação.


O capítulo 22, portanto, termina apontando para o futuro. Depois do alto clímax em Moriá, este breve relatório genealógico funciona como um respiro narrativo e uma transição: ele conclui a seção sobre Abraão e a semente prometida (16.1–22.19) e inicia a seção de transição para Isaque (22.20–25.11). Observemos que Gênesis 23 narrará a morte de Sara e a aquisição de um túmulo na Terra Prometida, e Gênesis 24 narrará amplamente o casamento de Isaque com Rebeca – temas de terra e descendência novamente. De fato, os editores de Gênesis estruturam os capítulos finais da história de Abraão como uma série de “cenas” que envolvem: genealogia de Rebeca (22:20-24), morte de Sara e compra do campo de Macpela (23:1-20), casamento de Isaque e Rebeca (cap. 24), genealogia dos filhos de Abraão com Quetura (25:1-6) e morte de Abraão (25:7-11). Nossa genealogia de Naor, então, é explicitamente chamada de Cena 1: “Genealogia de Naor, incluindo Rebeca (eleita)”. Note-se a palavra “eleita” associada a Rebeca nessa estrutura: ela será a segunda “mãe de Israel” (depois de Sara), escolhida por Deus para dar seguimento à linhagem do pacto. Em contraste, a Cena 4 listará os filhos de Abraão com Quetura, identificados como “não-eleitos”, e a Cena 5 narrará a morte de Abraão. Essa organização destaca que, embora Abraão tenha tido muitos descendentes (como os de Quetura), somente Isaque e sua esposa Rebeca carregam adiante a promessa divina da “semente” eleita.


Um ponto teológico sutil nessa genealogia de Rebeca é a ênfase, mais uma vez, na eleição graciosa de Deus em detrimento dos direitos de primogenitura humanos. Perceba-se que, dentre os oito filhos de Milca, o texto menciona Betuel quase por último – de fato, pelo que parece, Betuel é o caçula dos oito (ficando em oitavo lugar). Se Uz é o primogênito e Betuel o último, isso significa que Rebeca descende do filho mais novo de Naor. Curiosamente, essa será uma tendência na história patriarcal: Deus frequentemente escolhe o filho mais novo ou o improvável para realizar Seus propósitos (Isaque escolhido em vez do primogênito Ismael; Jacó escolhido em vez do primogênito Esaú; José exaltado sobre os irmãos mais velhos; Moisés, o caçula de três, chamado para libertar Israel; Davi, o menor dos irmãos, ungido rei, etc.). Aqui, implicitamente, Betuel – o último filho – torna-se o portador da bênção por ser pai de Rebeca. O narrador ressalta que a família de Deus baseia-se na eleição, não na primogenitura natural. Ou seja, não são os costumes humanos (onde o mais velho normalmente teria privilégio) que determinam a linhagem da promessa, mas a escolha soberana de Deus. Betuel, o mais moço, gera Rebeca – a qual se tornará matriarca na linha santa – demonstrando que “os últimos serão primeiros” no desígnio divino. Assim, a genealogia de Naor reforça de forma discreta um tema já visto em vários episódios: Deus escreve a história da salvação de maneira contrária às expectativas humanas, deixando claro que tudo procede da Sua graça eletiva.


Concluindo, a inclusão dessa pequena genealogia logo após o dramático “teste de Abraão” é mais significativa do que parece. Ela conecta a história de Abraão com a de Isaque, mostrando que a saga continua. Enquanto Abraão foi aprovado na prova de fé e recebeu a confirmação juramentada das promessas, imediatamente o texto nos informa que Deus já está providenciando os meios de cumprir a próxima etapa da promessa – garantindo descendência para Isaque. Sarah, a primeira matriarca, em breve sairá de cena (cap. 23, sua morte); mas Rebeca, a futura matriarca, já está a caminho (22:23). Isso evidencia a mão oculta de Deus guiando todos os eventos. O Senhor que proveu o cordeiro em Moriá agora provê uma esposa para Isaque em Padã-Arã. Não há lacunas no plano divino. Abraão pôde ter descido do monte Moriá confiante de que Deus cuidaria do futuro – e o final do capítulo 22 confirma essa confiança apresentando Rebeca como parte desse futuro. Em termos de estrutura literária global, este é um brilhante exemplo de transição narrativa: encerra-se o ciclo de Abraão e prenuncia-se o ciclo de Isaque-Jacó. Como comenta um estudioso, “depois da conclusão climática do Ato 2 (o teste de Abraão), tudo agora é preparação para a sucessão dos patriarcas”. Ou seja, Abraão está vivendo seus últimos capítulos, e Isaque, com Rebeca, assumirá o protagonismo adiante – até que, por sua vez, Isaque ceda lugar a Jacó, e assim por diante, na dinâmica geracional do Gênesis.


Em suma, Gênesis 22:20-24 não é um adendo trivial, mas um elo fundamental unindo a história de fé de Abraão à continuidade de seu legado. Nela vemos providência (Deus suscita Rebeca no seio da família), continuidade (a promessa de descendência segue viva através de parentes fiéis) e soberania divina (Deus elege quem Ele quer, independentemente da ordem de nascimento ou dos costumes). Também percebemos um aspecto pastoral: depois da tempestade emocional em Moriá, Deus traz a Abraão uma boa notícia familiar, talvez para confortá-lo – a família de seu irmão prosperou, crianças nasceram, e até uma possível esposa para Isaque desponta no horizonte. O texto não diz, mas podemos imaginar Abraão, aliviado por ter Isaque de volta são e salvo, recebendo essas novidades e louvando a Deus que “faz o solitário habitar em família” (Sl 68:6) e que cumpre fielmente Suas promessas de multiplicação. De fato, Abraão não viveria para ver netos (ele falece antes do nascimento de Esaú e Jacó), mas morre com a certeza de que Isaque está casado com a mulher que Deus provê, garantido assim o cumprimento da aliança. A genealogia de Rebeca, portanto, fecha com esperança o capítulo do sacrifício: o Deus que testou a fé de Abraão é o mesmo que prepara o futuro da fé através de Rebeca. Cada geração encontrará suas próprias provas e suas provisões de Deus; e a história da salvação prosseguirá infalivelmente, conduzida pelo Senhor da aliança.

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