Genealogia de Ismael | Gênesis 25:12–18
- João Pavão
- 5 de set.
- 25 min de leitura

Gênesis 25:12–18 apresenta “a história da família (toledot) de Ismael”, inserindo-se na estrutura de Gênesis onde genealogias mais breves dos ramos não-eleitos antecedem os relatos extensos da linhagem escolhida. Assim como a lista de Caim precedeu a linhagem de Sete (Gn 4–5) e a de Esaú precederá a de Jacó (Gn 36–37), aqui a descendência de Ismael – o primogênito de Abraão fora da aliança – é delineada antes da história de Isaque (Gn 25:19ss). Isso “amarra as pontas soltas” da narrativa de Abraão, mostrando que foi cumprida a parte da promessa divina referente a Ismael, enquanto o foco principal passa a recair sobre Isaque, herdeiro do concerto. Geograficamente e historicamente, esses versículos localizam os ismaelitas como povos seminômades no deserto ao sul e leste de Canaã, ancestrais de tribos árabes mencionadas posteriormente na Bíblia e em registros do Antigo Oriente Próximo.
Do ponto de vista teológico, a inclusão dessa genealogia ressalta a fidelidade de Deus em cumprir todas as promessas feitas a Abraão e sua família, mesmo aquelas relacionadas ao filho que não herdaria a aliança. A breve história de Ismael em 25:12–18 lembra que Deus havia prometido abençoá-lo com uma grande descendência e doze príncipes (Gn 17:20) e predito sobre ele: “ele habitará diante (ou contra) de todos os seus irmãos” (Gn 16:12). Esse trecho demonstra o cumprimento exato dessas palavras – do crescimento do clã ismaelita em doze tribos até sua fixação territorial independente – preparando o leitor para o que virá a seguir. Se o Senhor cumpriu essas promessas secundárias a respeito de Ismael, quanto mais cumprirá as promessas maiores feitas quanto a Isaque e seus descendentes, a linha da aliança. Desse modo, a genealogia de Ismael serve de ponte narrativa e teológica entre a história de Abraão e a de Isaque, reforçando a confiança de que Deus não esquece nenhuma promessa.
Título e Introdução da Genealogia
O verso 12 inicia a seção com a fórmula característica: “Estas são as gerações (toledot) de Ismael, filho de Abraão”. Essa expressão ocorre dez vezes em Gênesis para introduzir registros familiares ou históricos (cf. Gn 2:4; 5:1; 6:9; 10:1; 11:10, 27; etc.). Aqui, sua função é identificar Ismael como o progenitor da linhagem que será listada e conectá-la à narrativa anterior. O texto enfatiza que Ismael foi “filho de Abraão, gerado por Hagar, a egípcia, serva de Sara” (25:12b) – uma referência direta às dramáticas histórias dos caps. 16 e 21. Ao mencionar Hagar e Sara, o narrador relembra o contexto do nascimento de Ismael, sublinhando que ele veio ao mundo por meio da serva egípcia dada a Abraão, em contraste com Isaque, filho da esposa livre e legítima. Este detalhe pouco usual – citar a mãe e sua nacionalidade em um título genealógico – destaca o status peculiar de Ismael: ele é filho de Abraão, mas nascido fora do casamento principal, fruto de uma solução humana apressada de Abraão e Sara para obter descendência (cf. Gn 16:1-4).
Do ponto de vista da composição, é provável que esse verso de introdução tenha sido inserido pelo editor final de Gênesis para ligar a lista genealógica ao enredo maior do livro. A linguagem (“filho de Abraão, que Hagar… deu a Abraão”) possui forte correspondência verbal com as seções anteriores escritas na tradição javista (J), sugerindo que mesmo material de estilo sacerdotal (P) foi editado e complementado para harmonizar com o contexto narrativo. Alguns estudiosos veem aqui a mão do redator mosaico unindo fontes: as promessas e histórias de J sobre Hagar agora recebem seu desfecho com os dados genealógicos típicos de P. Em todo caso, o título estabelece claramente de quem se trata a genealogia – Ismael, filho mais velho de Abraão – preparando-nos para o catálogo de seus descendentes.
Os Doze Filhos de Ismael e Suas Tribos
Versos 13–16. A passagem lista os doze filhos de Ismael, apresentando-os “pelos seus nomes, conforme as suas gerações” (v.13) – isto é, cada nome aponta tanto para o indivíduo quanto para o clã tribal dele derivado. A estrutura literária forma uma inclusão: começa com “Estes são os nomes dos filhos de Ismael...” e conclui no v.16 reafirmando “São estes os filhos de Ismael e estes são os seus nomes...”, marcando o bloco como uma unidade genealógica completa. Possivelmente, os nomes estão em ordem de nascimento, dado que o primeiro mencionado é Nebaiote, explicitamente chamado de primogênito de Ismael. Essa sugestão de tradução (“segundo a ordem de seu nascimento”) é adotada por algumas versões e comentaristas, embora não seja absolutamente comprovada. De todo modo, Nebaiote encabeça a lista como filho primogênito, seguido por mais onze irmãos, totalizando doze – número significativo que ecoa a promessa divina e aponta para uma organização tribal completa.
Cada um desses nomes corresponde a grupos étnicos ou tribos que habitaram o deserto árabe ao leste e sul de Canaã, muitos dos quais são mencionados em outras partes da Bíblia ou em textos antigos. A seguir resumimos cada nome e seu possível referencial histórico:
Nebaiote – Citado novamente em Gênesis 28:9 e 36:3 como cunhado de Esaú (este se casou com Maalate, filha de Ismael e irmã de Nebaiote). É geralmente identificado como antepassado de uma tribo árabe. Os assiriólogos associam Nebaiote aos Nabayate (ou Nabaiateu), mencionados nos registros do rei Assurbanipal (século VII a.C.) como tribos árabes conquistadas. Alguns pensam que possa estar ligado ao povo histórico dos Nabateus (que floresceram entre o século IV a.C. e II d.C., famosos em Petra), mas não há consenso seguro quanto a isso.
Quedar (Qedar) – É o segundo nome, frequentemente pareado a Nebaiote em listas bíblicas (cf. 1Cr 1:29; Is 60:7) e bastante atestado. Quedar tornou-se um dos principais povos árabes do norte: aparece em vários oráculos proféticos (Is 21:16–17; 42:11; Jr 2:10; 49:28; Ez 27:21; Sl 120:5) e, extrabiblicamente, nos anais assírios dos séc. VIII–VII a.C.. As inscrições assírias chamam-nos Qidri ou Qidarri, situando-os no deserto sírio-arábico, entre Babilônia e o planalto transjordaniano. De fato, a tribo de Quedar ganhou proeminência histórica do tempo de Senaqueribe até pelo menos o séc. IV a.C., sendo às vezes até sinônimo de “árabes” em geral. Na Bíblia, Quedar é representativo de nômades beduínos e suas tendas (Ct 1:5 fala das “tendas de Quedar”).
Adbeel – Mencionado também em 1Crônicas 1:29, este nome corresponde provavelmente à tribo chamada Idiba’ilu nos registros do rei Tiglate-Pileser III (744–727 a.C.). Esses documentos situam essa tribo no norte do Sinai ou na periferia do Egito. O nome também aparece em inscrições árabes antigas do sul da Península (Sabá) como ABD’il. Assim, Adbeel representa um clã árabe na região do Sinai ou Noroeste da Arábia.
Mibsão (Mibsam) – Citado novamente só em 1Cr 1:29, pouco se sabe desta tribo. A semelhança fonética com a palavra hebraica para “bálsamo” levou estudiosos a sugerir que Mibsām signifique “aroma (bálsamo)”. Pode ter sido um grupo menor, talvez associado à produção ou comércio de especiarias aromáticas. Curiosamente, há também um Mibsão como nome de um membro da tribo de Simeão (1Cr 4:25), o que indica que o termo poderia ter conotação de fragrância/bálsamo mesmo.
Misma (Mishma) – Além de 1Cr 1:30, aparece como nome de um descendente de Simeão (1Cr 4:25–26). Possivelmente, a presença de “Mishma” nas genealogias tribais de Simeão indica alguma ligação histórica ou etimológica. No contexto ismaelita, Misma parece apontar para um grupo árabe oriental: há um local chamado Jebel Misma cerca de 250 km a leste de Tema, sugerindo conexão com o nome. Fontes cuneiformes mencionam uma tribo Isammê, que alguns associam a Mishma, embora a localização exata permaneça incerta.
Dumá (Dumah) – Referenciado em 1Cr 1:30. Provavelmente corresponde à região de Duma ou Dumat Al-Jandal, um importante oásis no norte da Arábia (atual noroeste da Arábia Saudita). O profeta Isaías faz um enigmático oráculo contra “Dumá” (Is 21:11–12) que alguns relacionam a Edom, talvez por um jogo de palavras (Edom/Dumá). No século VII a.C., registros assírios de Senaqueribe falam de uma fortaleza chamada Adummatu conquistada no deserto, muito possivelmente a mesma Duma. De fato, Dumah quer dizer “silêncio” ou “deserto”, e o oasis de Dumat al-Jandal era estrategicamente localizado entre o Levante e a Mesopotâmia. Esses dados confirmam a associação de Ismael com regiões desérticas, embora Dumá possa ter tido influência edomita em algum período.
Massá (Massa) – Também em 1Cr 1:30, é notável por aparecer possivelmente em Provérbios 30:1 e 31:1, onde “Massá” pode ser entendido como nome próprio (rei ou região) associado a oráculos de Agur e Lemuel. Extra-biblicamente, Tiglate-Pileser III menciona um povo chamado Mas’a subjugado em conjunto com Tema. A residência de Massá estaria próxima a Tema, outra grande cidade-oásis árabe. Os assírios relatam tributos pesados de Mas’a e Tema, inclusive caravanas, camelos e especiarias. Assim, Massá representa um clã do norte da Arábia envolvido no comércio de caravanas, talvez célebre por sua sabedoria (daí os provérbios atribuídos a reis de Massá).
Hadade (Hadad) – Em algumas versões aparece como Hadade ou Hadar. Aparece em 1Cr 1:30. O nome Hadad lembra o deus da tempestade adorado na Síria e Mesopotâmia, mas aqui provavelmente designa uma tribo. Não há referência bíblica além da genealogia. Arqueologicamente, menciona-se uma tribo aramaica chamada Hudadu, mas sem confirmação de tribo árabe com esse nome. Pode ser que Hadade fosse um clã menor cujo nome se perdeu ou confundiu-se com tradições arameias, já que Hadade era um nome comum entre sírios (por exemplo, Ben-Hadade). Há quem note um Wadi el-Hadad ao norte de Tebuk, possivelmente ligado a este nome.
Tema – Talvez o mais conhecido destes nomes. Tema é citado várias vezes na Bíblia: era uma importante cidade-oásis na Arábia do Norte, cerca de 250 milhas (400 km) ao sudeste de Ezion-Geber/Eilat. Jó 6:19 fala das caravanas de Tema; Isaías 21:14 e Jeremias 25:23 mencionam Tema junto com Dedã e Bus, indicando sua fama como ponto de parada de caravanas. De fato, Tema situava-se em rota estratégica ligando a Arábia ao Mediterrâneo e à Babilônia. No século VII–VI a.C., o rei babilônico Nabonido chegou a residir em Tema por anos, delegando o trono a seu filho em Babilônia. Inscrições assírias também mencionam Tema pagando tributos a Tiglate-Pileser III. Tema era sinônimo de região rica e próspera em pleno deserto, e sua inclusão aqui reforça o peso histórico dos ismaelitas no cenário do comércio árabe antigo.
Jetur (Ietur) – Mencionado em 1Cr 1:31 e também em 1Crônicas 5:19, onde os jeturitas (junto com Nafis e outros hagarenos) guerrearam contra as tribos de Rúben, Gade e Manassés no tempo de Saul. Jetur é geralmente identificado como antepassado dos iturenos (Itureus), um povo árabe do norte que habitou a região sul do Líbano e Síria (o Antilíbano), conhecido no período intertestamentário e romano (Lucas 3:1 menciona “Ituréia”). O nome “Iathūr” aparece em inscrições nabateias em Haurã, o que confirma essa associação. A menção de Jetur e Nafis junto com “hagarenos” nos sugere que descendentes de Hagar (ou seja, ismaelitas) foram reconhecidos no leste do Jordão. Embora a relação exata entre o termo hagarenos e ismaelitas seja incerta, parece que Jetur gerou um clã significativo cujo legado perdurou até o período do Novo Testamento.
Nafis (Naphish) – Também aparece em 1Cr 1:31 e 1Crônicas 5:19 associado a Jetur. Pouco se sabe além disso. Possivelmente, Nafis formou uma tribo parceira dos iturenos (Jetur) e partilhou destino semelhante. O nome pode ter raiz no árabe com sentido de “serpentear” ou “expandir-se”, mas carece de confirmação histórica direta além das notas bíblicas. Em todo caso, Nafis figura entre os clãs árabes a leste de Gileade combatidos pelos israelitas tribais, indicando sua presença no Transjordão oriental na Idade do Ferro.
Quedemá (Qedemah) – Último da lista (1Cr 1:31 repete-o). Significa literalmente “Oriente” ou “O Leste”. É possível que não represente um grupo étnico claramente distinto, mas sim um simbolismo geográfico, apontando para povos do leste. Alguns especulam se Quedemá poderia ser associado aos “filhos do oriente” (bene-qedem) citados em Gênesis 29:1 ou aos “queneus do oriente” (Kadmonitas, Gn 15:19). Entretanto, não há evidência sólida de identificação específica. Quedemá pode simplesmente enfatizar que toda a região oriental (Arábia oriental) estava incluída entre os descendentes de Ismael. Sendo o último nome, “Oriente” fecha a lista possivelmente como uma generalização do domínio tribal ismaelita estendido a leste de Canaã.
O verso 16 resume: “Esses são os filhos de Ismael, e estes são os seus nomes segundo as suas aldeias e acampamentos; doze príncipes de suas tribos”. Aqui aparecem termos reveladores da vida nômade dos ismaelitas. A palavra traduzida por “aldeias” ou “assentamentos” (ḥaṣēr, no hebraico) refere-se a habitações permanentes sem muros, semelhantes a pequenos povoados de tendas ou cercados rústicos no deserto. Textos da antiga Mari usam o termo ḥaṣarum para acampamentos tribais, indicando tais assentamentos de nômades pastorais. Já “acampamentos” (ṭīrōt, plural de ṭîrāh) literalmente são “recintos” ou acampamentos fortificados por cercas ou muros baixos de pedra – possivelmente currais e estruturas de proteção montadas pelos beduínos (cf. Nm 31:10; Ez 25:4, onde ṭîrōt se refere a acampamentos de nômades). Ou seja, os descendentes de Ismael viviam em habitações típicas de pastores seminômades, ora fixando-se em campos cercados para o gado, ora mudando-se com suas tendas entre assentamentos abertos nas estepes do Crescente Fértil. A menção dessas formas de habitação demonstra conhecimento da cultura tribal do deserto.
Ainda no v.16, diz-se que os doze filhos foram “príncipes segundo as suas tribos”. A palavra hebraica para “tribos” aqui é ummot (de ummah), termo raro no AT – ocorre apenas em Nm 25:15 e Sl 117:1 além deste contexto. Curiosamente, ummatum é comum em textos acadianos de Mari e de Tell Rimah para designar povos ou clãs. Isso reforça que estamos lidando com linguagem típica de genealogias antigas do Oriente Médio, possivelmente preservando tradições tribais reais. Já “príncipes” traduz nasí’ (plural nasí’îm), título hebraico de líder tribal. Israel mais tarde usaria o mesmo termo para os cabeças das 12 tribos de seu povo. O fato de Ismael também gerar “doze príncipes” (número enfatizado no texto) aponta para um paralelo intencional: assim como haverá doze tribos de Israel provenientes de Jacó, o filho da promessa, também houve doze tribos de Ismael provenientes do filho primogênito de Abraão. Esse paralelismo não é acidental. Ele reflete tanto o cumprimento específico da palavra de Deus a Abraão – “dele farei doze príncipes e dele farei uma grande nação” (Gn 17:20) – quanto sugere um padrão de soberania divina na história, em que o número doze simboliza plenitude organizacional dos povos. De fato, nota-se que Abraão torna-se pai de várias “dúzias” de nações: além dos doze príncipes ismaelitas, a linhagem de Naor (irmão de Abraão) produziu doze clãs arameus (ver Gn 22:20-24), e Esaú, descendente de Isaque, gerou chefes de Edom em número semelhante. O próprio Cristo no Novo Testamento escolheria doze apóstolos, refletindo as doze tribos de Israel (Mt 19:28). Assim, os “doze príncipes” de Ismael testemunham a graça comum de Deus fazendo prosperar também os descendentes do não-eleito, conferindo-lhes estrutura e permanência nacionais, embora sem a bênção específica da promessa messiânica.
Em síntese, os vv.13–16 pintam um quadro de prosperidade e expansão para Ismael. Ele não ficou restrito a um único clã obscuro, mas tornou-se o patriarca de uma confederação de tribos árabes. Essa confederação provavelmente corresponde aos povos do deserto sírio-arábico dos quais emergiram os antepassados dos árabes do Norte (muitas tribos beduínas posteriores se orgulhavam de descender de Ismael). A ausência de qualquer menção a um reino unificado posterior chamado “Ismael” sugere que essa lista genealógica reflete um período antigo – antes de Daví e dos impérios neo-assírios – quando ainda se falava nos “ismaelitas” como um grupo reconhecível. De fato, após o período de Davi e Salomão, as tribos árabes passam a ser identificadas mais pelos nomes específicos (Quedar, Nabaiote, etc.) do que pelo epônimo Ismael, e em textos assírios “Ishmael” não aparece como designação tribal, ao passo que Quedar e outros sim. Isso indica a antiguidade do registro bíblico, conservando memórias de época em que os clãs árabes eram vistos como unidos sob o nome do antepassado comum, Ismael. Por outro lado, o desenvolvimento histórico fez com que cada tribo seguisse seu rumo, algumas ganhando maior destaque (como Quedar) e outras se diluindo ou integrando-se a povos vizinhos.
A Morte de Ismael e Fecho de sua História
Verso 17. Após nomear os doze filhos, a narrativa apresenta um resumo da vida de Ismael, nos moldes dos obituários dos patriarcas bíblicos: “Este é o tempo de vida de Ismael: cento e trinta e sete anos; e ele expirou, morreu e foi reunido ao seu povo”. Essa fórmula lembra diretamente o necrológio de Abraão registrado poucos versículos antes (Gn 25:7–8) e antecipa expressões semelhantes na morte de Isaque (Gn 35:28–29) e Jacó (Gn 49:33). O uso desse formulário típico dos patriarcas para Ismael é significativo, pois o equipara em dignidade como um importante filho de Abraão. Embora fora da linhagem da aliança, Ismael não deixa de ser abençoado como descendente de Abraão e é tratado com respeito pelo narrador sagrado.
O texto informa que Ismael viveu 137 anos, e então “deu o último suspiro” (lit. caiu em agonia, expirou), “morreu” e “foi reunido a seus antepassados”. A menção de sua idade é algo incomum para personagens secundários; normalmente a Bíblia registra idades avançadas apenas de figuras-chave da promessa (patriarcas da linha escolhida) ou ancestrais antediluvianos. Ismael é exceção: indicar que alcançou 137 anos sugere seu prestígio e cumprimento de bênção (longevidade era sinal da graça divina). Curiosamente, 137 anos também foi a idade de Levi e de Amrão (pai de Moisés) segundo Êxodo 6:16-20, porém provavelmente não há conexão intencional além de mostrar uma vida longa e plena.
A expressão “reunido ao seu povo” merece atenção teológica. Não implica sepultamento junto aos seus pais físicos, pois Ismael obviamente não foi enterrado na mesma tumba de Abraão (a caverna de Macpela em Canaã, onde Isaque e Jacó seriam enterrados). Em vez disso, “reunir-se a seus pais” ou “a seu povo” é entendida como referência à reunião da alma/fantasma do falecido à companhia dos ancestrais no Sheol, o mundo dos mortos. Denota, portanto, que Ismael partiu para o destino comum de seus antepassados, preservando a continuidade familiar mesmo na morte. Para um israelita leitor de Gênesis, essa frase demonstrava que Ismael, apesar de não ser parte do povo da aliança, não era considerado um perdido sem nome – ele tinha um povo (seus descendentes e antepassados) ao qual pertencia e com o qual foi reunido espiritualmente ao morrer. Em vida, de fato, Ismael manteve laços com a família: Gênesis 25:9 registra que Isaque e Ismael juntos sepultaram Abraão, indicando que, ao menos nesse momento, os meio-irmãos cooperaram em honra ao pai. Após cumprir essa última responsabilidade filial, Ismael aparentemente voltou para suas terras ao sul, onde viveu muitas décadas mais até falecer aos 137 anos. Ele sobreviveu a Abraão por 48 anos (Abraão morreu aos 175 anos, quando Ismael tinha 89), o que significa que viveu para ver os filhos de Isaque (Esaú e Jacó) crescerem, ainda que as Escrituras não relatem contato posterior entre eles além do funeral de Abraão.
Assim, o v.17 encerra a trajetória pessoal de Ismael de forma digna e completa. A narrativa não menospreza Ismael – pelo contrário, confere-lhe uma morte honrada à maneira dos patriarcas. Isso reforça o tema subjacente de que Deus não se esqueceu do filho de Abraão nascido da serva: Ismael foi abençoado com longevidade, muitos descendentes e terminou seus dias em paz, entrando para a história como pai de uma grande nação. No entanto, a menção explícita de sua morte aqui também serve para delimitar o papel de Ismael na economia divina: com seu falecimento e registro genealógico completo, a atenção das Escrituras pode agora se voltar inteiramente para Isaque, o filho da promessa, cuja história começa imediatamente no versículo seguinte (Gn 25:19).
Território dos Ismaelitas e Cumprimento Profético
Verso 18. Por fim, a perícope conclui descrevendo em linhas gerais a região ocupada pelos ismaelitas e sua relação com os povos aparentados: “Eles habitaram desde Havilá até Sur, que está diante do Egito, na direção de Assur. Ele se estabeleceu diante de todos os seus irmãos”. Este versículo pode ser dividido em duas partes: (a) a delimitação geográfica da área ismaelita – “de Havilá a Sur, na direção do Egito, indo para Assur” – e (b) a afirmação de que Ismael (ou seus descendentes) habitou “diante (ou à vista/oposição) de todos os seus irmãos”, ecoando a antiga profecia do anjo do Senhor a Hagar em Gn 16:12.
A expressão “de Havilá a Sur” é uma forma bíblica de delimitar uma região vasta através de dois pontos de referência. Aparece similarmente em Gn 2:11 para o curso do rio Pisom (“que rodeia toda a terra de Havilá”) e em 1Sm 15:7 para a área de operação dos amalequitas (“desde Havilá até Sur, que está adiante do Egito”). Havilá, nesse contexto, deve referir-se a uma região na Arábia oriental. Gênesis 10:7 menciona um descendente de Cão chamado Havilá (filho de Cuche), e outra genealogia relaciona Havilá a Jocsã (filho de Quetura, Gn 25:1-4), sugerindo que o nome podia designar parte da Arábia Meridional ou Oriental. Tradicionalmente, entende-se que “terra de Havilá” aponta para o leste da Arábia, talvez a área em torno do Golfo Pérsico ou interior do deserto arábico. Já Sur é mais claramente identificável: era o nome de um deserto na fronteira leste do Egito, em direção à península do Sinai (Gn 16:7 cita “o deserto de Sur” onde Hagar fugiu; também Êx 15:22 fala do “deserto de Sur” imediatamente após o Mar Vermelho). Sur corresponde à região costeira do Sinai, possivelmente ao noroeste da Arábia Saudita moderna, próximo ao Golfo de Suez. Assim, dizer que os ismaelitas habitaram “de Havilá até Sur” sugere que eles ocupavam toda a faixa do norte da Arábia, desde o leste distante até o sudeste do Egito. Em outras palavras, seus acampamentos estendiam-se do Golfo Pérsico ou interior da Arábia (Havilá) até a fronteira do Egito na região sinaítica (Sur). Trata-se de uma área enorme, cobrindo a península Arábica setentrional. Esse domínio é coerente com o estilo de vida beduíno: os ismaelitas seriam povos seminômades espalhados nas estepes ao sul da Palestina e a leste do Egito, controlando rotas caravaneiras que ligavam o Oriente (Mesopotâmia, Persa) ao Egito e à costa do Mediterrâneo.
A frase “que está diante do Egito, na direção de Assur (Assíria)” complementa a localização de Sur e Havilá. “Diante do Egito” reforça que Sur é próximo ao Egito (defronte a sua fronteira oriental). “Na direção de Assur” indica que Havilá ficava rumo à Assíria, ou seja, no sentido nordeste. Muitos entendem “Assur” aqui simplesmente como Assíria, o grande império mesopotâmico, pois do ponto de vista de quem está em Canaã, o extremo oriente árabe leva em direção à Assíria. Contudo, é possível que “Assur” se refira não ao império Assírio em si (que ficava mais ao norte da Mesopotâmia), mas a um povo árabe localmente chamado Assurim. Em Gênesis 25:3, entre os descendentes de Quetura (outra linhagem de Abraão), menciona-se um clã chamado Assurim (talvez “assuritas”). Alguns estudiosos sugerem que essa tribo Assurim poderia habitar a área oriental da Arábia e ser alusiva aqui. De qualquer forma, “na direção de Assur” implica o limite oriental da habitação ismaelita. Assim, combinando tudo: os ismaelitas se estabeleceram desde a extremidade ocidental da Arábia (perto do Egito/Sinai) até as regiões orientais voltadas à Assíria, efetivamente abrangendo a maior parte do deserto arábico setentrional. Essa vasta distribuição cumpre a promessa divina de multiplicar grandemente os descendentes de Hagar, “de modo que não se poderiam contar” (Gn 16:10) – eles de fato se espalharam por amplas áreas.
A segunda metade do versículo – “E caiu (assentou-se) diante de todos os seus irmãos” – é praticamente uma citação de Gn 16:12, onde o anjo profetizou sobre o caráter de Ismael: “ele será, entre os homens, como um jumento selvagem; a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele, e ele habitará frente a frente (‘al pene) a todos os seus irmãos”. A repetição dessa frase em 25:18 enfatiza o cumprimento cabal da palavra profética. O hebraico ‘al penê pode significar tanto “ao oriente de” (geográfico) quanto “em oposição a” (atitude hostil). É provável que haja aqui um duplo sentido intencional: os ismaelitas se fixaram ao lado de seus povos irmãos (os demais descendentes de Abraão como os filhos de Quetura e os edomitas, além dos israelitas), porém em conflito frequente com eles. Diversas traduções optam por verter ‘al penê como “em hostilidade contra todos os seus irmãos”, visto o contexto de Gn 16:12 e a história subsequente. De fato, a convivência entre israelitas e ismaelitas (no sentido amplo de tribos árabes aparentadas) foi marcada por tensão e antagonismo periódicos. Warren Wiersbe ressalta que embora Deus abençoasse todos os descendentes de Ismael, “as hostilidades entre judeus e árabes ao longo dos séculos são demasiado conhecidas para serem ignoradas”.
Historicamente, vemos os ismaelitas e povos associados atuando às vezes como aliados comerciais de Israel, mas muitas vezes como inimigos militares. Por exemplo, foram ismaelitas/midianitas que compraram José e o levaram ao Egito em sua caravana de especiarias (Gn 37:25-28), ilustrando seu papel de mercadores do deserto em tempos de paz. Por outro lado, no período dos Juízes, tribos nômades oriundas do deserto faziam incursões em Israel: no caso de Gideão, são mencionados os midianitas e “ismaelitas” com quem pelejou – os próprios midianitas usavam brincos de ouro “porquanto eram ismaelitas” (Jz 8:24), indicando que as tribos de Midiã e de Ismael estavam misturadas ou genericamente identificadas. Esses saqueadores do leste “caíam sobre os acampamentos de Israel” nas épocas de fraqueza, cumprindo literalmente a imagem do “jumento selvagem” independente e bravio que Ismael simbolicamente representa. Em síntese, “habitar frente a todos os irmãos” significa que os ismaelitas permaneceram próximos dos outros descendentes de Abraão geograficamente, porém guardando sua autonomia feroz e frequentemente rivalizando com eles por território e recursos.
Convém destacar que a frase está no singular no hebraico: “nafál ‘al penê kol-ekháv (ele caiu/assentou-se diante de todos os seus irmãos)”. Isso pode ser entendido de duas maneiras: ou referindo-se ao próprio Ismael como indivíduo (que viveu afastado dos irmãos Isaac e filhos de Quetura, estabelecendo-se independentemente), ou referindo-se coletivamente ao povo ismaelita (nesse caso traduzido “habitaram” ou “caíram”, no plural, como fazem algumas versões antigas). A versão grega (LXX) e a Vulgata latina trazem o verbo no singular, talvez entendendo que é um epílogo biográfico sobre Ismael: ele se fixou longe dos irmãos (Isaac e os outros), cumprindo seu destino de vida separado. Já nosso texto Massorético pode ser lido como um sumário da situação tribal: os descendentes de Ismael habitaram confrontando todos os povos vizinhos aparentados. De um modo ou de outro, o sentido geral converge – aponta para a realização plena da palavra profética divina e encerra a genealogia amarrando-a de volta à profecia do capítulo 16.
Adicionalmente, há aqui um indicativo de que, com a morte de Abraão, as relações entre seus filhos tomaram rumos distintos. Bruce Waltke observa que, embora Isaque e Ismael tenham se unido temporariamente para o funeral do pai (mostrando algum laço fraterno), depois cada um seguiu seu destino de acordo com a promessa ou sua falta: Isaque permaneceu na Terra Prometida e entrou no centro dos planos redentores de Deus, ao passo que Ismael “não herdou a Terra” e se espalhou fora dela, tornando-se politicamente independente. Os irmãos em vida acabaram separados espiritualmente e geograficamente, e essa distância só aumentaria com o tempo – a hostilidade política crescente entre Israel e os “irmãos” árabes (de Ismael e dos filhos de Quetura) é traçada ao longo da história bíblica, desde conflitos com amonitas e moabitas (descendentes de Ló) até guerras com arameus de Damasco e árabes do deserto. Os profetas mais tarde mencionam as nações ismaelitas e relacionadas (Midian, Quedar, Nebaiote, etc.) tanto como adversárias que seriam julgadas, quanto em vislumbres de esperança em que esses povos também um dia honrariam ao Deus de Israel (cf. Is 60:6-7 menciona especificamente Nebaiote e Quedar trazendo ofertas a Deus). Isso ecoa a tensão já presente no texto de Gênesis: bênção e conflito lado a lado no relacionamento entre Israel e Ismael.
Interessante notar que a porção “Havilá a Sur” abrange exatamente a região posteriormente ocupada pelos amalequitas, inimigos de Israel. Em 1Samuel 15:7, o rei Saul derrota os amalequitas “desde Havilá até Sur, fronteira do Egito”, a mesma faixa de terra atribuída aqui a Ismael. Os amalequitas eram descendentes de Esaú (Gn 36:12), mas vivendo nessa zona talvez se misturaram com tribos ismaelitas, ou substituiram-nas em parte. Isso sugere que, com o passar do tempo, houve realocações tribais, mas inicialmente a terra era de Ismael. Assim se cumpre outra palavra a Abraão: que ele seria pai de muitas nações (Gn 17:4–6). Ismael tornou-se pai dos árabes do norte; mais tarde Esaú originou Edom/Amaleque; e os filhos de Quetura (Midiã, por exemplo) também originaram outros povos. Gênesis 25:1-18 mostra Abraão efetivamente gerando um conjunto de nações ao seu redor, ainda que apenas uma – a de Isaque – fosse a nação da promessa.
Implicações Teológicas e Conexões com a História Bíblica
Fidelidade de Deus às Suas Promessas: Primeiramente, o texto ressalta que Deus cumpriu exatamente o que prometera acerca de Ismael. Anos antes, Abraão intercedera por seu primogênito dizendo: “Oxalá Ismael viva diante de ti!” (Gn 17:18). Deus respondeu que o pacto seria com Isaque, mas que abençoaria Ismael, multiplicando-o grandemente, fazendo-o pai de doze príncipes e de uma grande nação (Gn 17:20). Também a aflita Hagar recebera de Deus a promessa de uma posteridade inumerável (Gn 16:10) e a profecia do temperamento indomável de seu filho, convivendo em pé de guerra com os irmãos (Gn 16:12). Cada detalhe encontra sua realização em Gênesis 25:12–18: Ismael teve doze príncipes exatamente, seus descendentes se multiplicaram em tribos árabes incontáveis e independentes, e eles habitaram “diante” de seus irmãos (os outros povos abraâmicos), frequentemente em rivalidade. Esse cumprimento literal atesta a confiabilidade da palavra divina. Se Deus honrou até mesmo as promessas secundárias feitas sobre o filho da serva – que não era o herdeiro do concerto principal – quanto mais não cumpriria as promessas centrais feitas a Abraão sobre Isaque, a Terra Prometida e a bênção messiânica!. Assim, o leitor de Gênesis é encorajado a prosseguir a história dos patriarcas com plena certeza de que nenhuma palavra de Deus cai por terra. A história de Isaque que começa logo após é, portanto, iluminada por esse lembrete: o Deus de Abraão vela pelo cumprimento de Suas alianças, seja com o filho da promessa, seja com o filho “não eleito”.
Bênção x Aliança – Eleição Divina: Ao mesmo tempo, a genealogia de Ismael estabelece um contraste fundamental entre bênção comum e bênção da aliança. Ismael foi abençoado por Deus com prosperidade, fertilidade e longevidade – frutos da bondade divina e do vínculo de sangue com Abraão. Porém, ele não foi incluído na aliança abraâmica que passaria por Isaque. Warren Wiersbe sintetiza: “As bênçãos da aliança não faziam parte da herança de Ismael. Somente Isaque herdaria todas as coisas”. Ou seja, Ismael recebeu dons terrenos (uma grande nação, doze líderes, território), mas não herdou a Terra Prometida de Canaã nem a linha messiânica da redenção – privilégios estes reservados soberanamente a Isaque (Gn 25:5–6; cf. Rm 9:6–8). Essa distinção ilustra o princípio da eleição divina: Deus escolhe instrumentos específicos para Seus propósitos salvíficos (no caso, Isaque e depois Jacó), sem com isso abandonar o cuidado providencial sobre os demais. O Novo Testamento, especialmente Romanos 9:6–13, usa exatamente o exemplo de Isaque e Ismael (bem como Jacó e Esaú) para ensinar que não é a descendência natural que garante a promessa, mas a chamada graciosa de Deus. Paulo explica que Ismael, embora filho de Abraão, representava “a descendência segundo a carne”, enquanto Isaque, nascido pela intervenção divina em Sara, representava “o filho da promessa” (Gl 4:22-23, 28). Os dois meninos, com suas mães Hagar e Sara, tornam-se alegorias das duas alianças em Gálatas 4:21–31 – Ismael simbolizando o pacto do Sinai (escravidão da lei) e Isaque simbolizando a liberdade da promessa graciosa. Portanto, Gênesis 25:12–18, ao delimitar a genealogia de Ismael antes de narrar a de Isaque, também salienta a soberania de Deus em escolher Isaque como o portador da aliança, sem negar a Ismael suas próprias bênçãos e lugar na história. É notável que Abraão amava Ismael e chegou a pedir que ele fosse o herdeiro (Gn 17:18); Deus, contudo, deixou claro que Seu plano redentor seguiria outro rumo – “a minha aliança estabelecerei com Isaque” (Gn 17:21) – ao mesmo tempo em que disse “quanto a Ismael, eu te ouvi: abençoá-lo-ei” (17:20). Assim, a narrativa honra Ismael, mas mantém a ênfase de Gênesis na linhagem escolhida que levará à formação do povo de Israel e, por fim, a Cristo (ver Mt 1:1–2 onde Isaque e Jacó aparecem na genealogia do Messias, não Ismael ou Esaú).
Relação com os povos vizinhos (Israel e nações árabes): A genealogia de Ismael tem também importância para entendermos a origem de diversos povos vizinhos de Israel e as complexas relações entre eles. Os “ismaelitas” no sentido amplo tornaram-se tronco de muitos povos árabes. Tradicionalmente, os árabes reivindicam descendência de Ismael, vendo nele seu patriarca comum (daí o uso da expressão “filhos de Ismael” para povos árabes). De fato, algumas nações e tribos que surgem mais tarde descendem direta ou indiretamente dele: por exemplo, os midianitas (descendentes de outro filho de Abraão, Midiã, mas que se entrelaçam com os ismaelitas a ponto de os termos às vezes se confundirem), os hagarenos mencionados em Salmos e Crônicas (provavelmente tribos árabes do deserto sírio chamados assim por serem filhos de Hagar), os já citados iturenos (descendentes de Jetur, filho de Ismael) que tiveram um tetrarquia no Líbano no séc. I a.C., entre outros. Essa ramificação ampla cumpre a palavra do Anjo: “Multiplicarei sobremaneira a tua descendência, de modo que não será contada” (Gn 16:10). Os povos árabes que emergiram desta família tiveram papéis variados no Antigo Oriente Médio. Alguns, como Quedar e Nebaiote, prosperaram no comércio de especiarias e rebanhos, tornando-se fornecedores e mercadores em mercados como o de Tiro (Ez 27:21). Outros, como tribos descendentes de Midiã e Ismael, desenvolveram reputação de guerreiros e saqueadores nas fronteiras de Israel (como visto nos dias dos Juízes). A Bíblia registra tanto conflitos militares – ex: Gideão guerreando contra eles, Saul enfrentando agarenos (1Cr 5:10) e Davi derrotando zibeus e outros árabes do norte (2Sm 8:12) – quanto interações pacíficas – ex: os mercadores ismaelitas levando José ao Egito, ou tribos árabes prestando tributo ao rei Salomão (2Cr 9:14 menciona “reis da Arábia”).
Arqueologicamente, inscrições assírias e babilônicas confirmam a existência e relevância de muitos descendentes de Ismael. O império neo-assírio (séc. IX–VII a.C.) registrou várias campanhas contra tribos árabes: reis como Tiglate-Pileser III e Assurbanipal mencionam explicitamente tribos equivalentes a Nebaiote, Quedar, Massá e Tema, listando-as entre os adversários subjugados ou tributários. Por exemplo, Tiglate-Pileser III relata ter recebido tributos de “Mas’a, Tema, e Saba” incluindo ouro, prata, camelos e especiarias – refletindo o mesmo trio de nomes que vemos na família de Abraão (Midian/Sabá em Gn 25:1-3, Tema e Massá filhos de Ismael). Assurbanipal, por sua vez, narra vitória sobre os Nabayate e Qidri (Nebaiote e Quedar) na Arábia do Norte. Essas fontes externas demonstram que os ismaelitas e seus parentes controlavam importantes rotas e oásis no deserto, tornando-se suficientemente poderosos para chamar a atenção dos impérios. Também corroboram detalhes bíblicos: Isaías 21 e Jeremias 49 profetizam contra Quedar, Tema e Dumá, exatamente povos atestados nas inscrições. Tudo isso confere lastro histórico à breve lista de Gênesis – não se trata de nomes míticos, mas de antepassados reais de tribos ativas na história.
Ismael na História da Salvação: Por fim, do ângulo da teologia bíblica, Ismael representa aqueles “outros filhos” de Abraão que, embora não sejam portadores da promessa messiânica, são abrangidos pela misericórdia divina. Deus cuidou de Ismael no deserto, fez dele uma nação, e até lhe deu o nome significativo “Deus ouve” (Gn 16:11). Seu destino, porém, foi correr paralelo ao de Isaac, sem se cruzar na linha da eleição. Derek Kidner observou que Ismael e seus doze príncipes formam uma espécie de “sombra” da história de Israel, uma caricatura de seu pai Abraão. Ele teve doze tribos como Israel; viveu peregrino no deserto como Israel; porém sem a promessa da Terra ou a vocação de benção universal. Seus descendentes formaram reinos e tribos importantes “no seu tempo”, mas não na história da salvação redentora. Sua inquietude nômade diferia da peregrinação de fé de Abraão e Isaac: enquanto estes buscavam a Terra Prometida e aguardavam a cidade de Deus, Ismael e seus filhos vagueavam pelo deserto sem essa direção espiritual, fazendo da própria liberdade e sobrevivência seu fim em si mesmo. Ainda assim, a compaixão divina não os excluiu de Seu plano maior: por meio dos profetas, Deus prometeu que um dia resgataria também um remanescente dessas nações aparentadas. Há indicações proféticas de inclusão dos árabes na adoração a Deus – p.ex., Isaías 60:7 antevê os rebanhos de Quedar e os carneiros de Nebaiote servindo no altar do Senhor, sinal de que povos ismaelitas trariam glória ao Deus de Israel. Em Amós 9:12, Deus anuncia que o “restante de Edom e de todas as nações chamadas pelo meu nome” seria possuído pelo povo do Senhor, palavra que o Novo Testamento aplica à missão aos gentios (At 15:17). Assim, Waltke comenta que o soberano Deus, após usar essas confederações tribais para disciplinar Israel nos tempos do AT, no fim trará todos esses povos sob o senhorio de Cristo. Na perspectiva cristã, portanto, os “filhos de Ismael” não estão fora do alcance da redenção: eles também podem, e serão, abençoados em Abraão por intermédio do descendente de Isaque, Jesus Cristo – cumprindo-se assim plenamente a promessa “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3).
Em conclusão, Gênesis 25:12–18, longe de ser um apêndice genealógico irrelevante, é um trecho rico em significado. Ele conclui a história de Abraão demonstrando a fidelidade de Deus no passado (cumprindo promessas a Ismael) e prepara o cenário para o futuro (a história de Isaque, portador da aliança, começa em 25:19). Didaticamente, ensina sobre a diferença entre receber dádivas de Deus e ser escolhido para o propósito de Deus, contrastando Ismael e Isaque. Historicamente, documenta a origem de nações árabes e suas conexões com Israel, fornecendo pano de fundo para muitos conflitos e interações posteriores nas Escrituras.
Teologicamente, aponta para a abrangência final do plano divino, que não se limita a Israel, mas acabará por incluir também os “primos” de Israel entre as nações.
Assim, a genealogia de Ismael completa o ciclo do patriarca Abraão, mostrando que nenhum ramo de sua família ficou sem um registro ou sem uma bênção apropriada. Ismael, o filho da escrava que poderia ter sido esquecido, recebe um capítulo na história sagrada, provando que Deus “ouviu” (Ismael) e lembrou-se dele. O leitor atento vê neste breve relato um reflexo da graça providencial de Deus, que cuida de muitos e cumpre Suas palavras, e ao mesmo tempo a graça eletiva, que traça uma linha específica de promessa que conduz à redenção em Cristo. Gênesis 25:12–18, portanto, enriquece a narrativa patriarcal ao preservar a memória de Ismael e situá-lo no grande mapa dos desígnios divinos, para a instrução do povo de Deus através dos tempos.




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