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Deus inicia tudo | Gênesis 1.1

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 3 de ago.
  • 38 min de leitura

Atualizado: 11 de set.


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“No princípio, Deus criou os céus e a terra.” Esta sentença inaugural da Bíblia é ao mesmo tempo simples e profundamente rica. Com apenas sete palavras em hebraico, Gênesis 1:1 apresenta os dois grandes sujeitos de toda a Escritura: Deus, o Criador soberano, e o universo criado onde o ser humano habitará. Neste versículo-fundamento encontramos os pilares de uma cosmovisão bíblica: há um Deus eterno que dá início a tudo, e tudo quanto existe – tempo, espaço e matéria – procede desse ato criador divino. A seguir, faremos uma análise abrangente de Gênesis 1:1, abordando o texto original hebraico, a doutrina da criação ex nihilo, as comparações com cosmogonias antigas, as implicações teológicas da soberania divina, questões apologéticas contemporâneas e, por fim, reflexões pastorais que emergem deste “princípio” da revelação bíblica.


“Bereshit” – “No princípio”


A palavra inicial, berêʾšît (בְּרֵאשִׁית), significa “no princípio” ou “no começo”. Notavelmente, esse termo aparece sem o artigo definido, o que gerou debates sobre sua função gramatical. Alguns estudiosos clássicos (como Rashi, na tradição judaica medieval) sugeriram lê-la em estado construto, traduzindo o verso como “No princípio da criação de Deus dos céus e da terra, ...” – o que tornaria o v.1 uma cláusula temporal subordinada ao que se segue. Contudo, a maioria dos eruditos modernos rejeita essa leitura subordinada. Gordon Wenham observa que, em hebraico, expressões de tempo podem aparecer sem artigo e ainda assim ter sentido absoluto (cf. Is 46:10; 40:21). Além disso, Provérbios 8:22 emprega uma construção semelhante para falar do “princípio” de toda criação, indicando que rēʾšît pode sim ter sentido absoluto de “princípio de tudo”. Assim, a melhor tradução é a tradicional: “No princípio, Deus criou…”, entendendo “princípio” não como início de um evento qualquer, mas o início de tudo, o começo do próprio tempo e da história. Em outras palavras, “bereshit” aqui aponta para o momento em que o tempo passou a existir – antes disso, só há Deus eterno. Como comenta Warren Wiersbe, Deus é eterno em glória, sem começo ou fim, totalmente autoexistente e independente da criação. “No princípio” marca essa transição do eterno para o temporal, quando Deus inicia a contagem do tempo criando o universo.


É digno de nota que a primeira palavra da Bíblia (berêʾšît) e a segunda (bārāʾ, “criou”) compartilham as mesmas três primeiras letras em hebraico (ברא). Essa aliteração pode ser intencional, ilustrando literariamente que no “princípio” (bĕrēʾšît) Deus “criou” (bārāʾ) – o começo de tudo já está ligado intrinsecamente à ação criadora de Deus. Essa fineza literária do texto sagrado reforça que o início absoluto e o ato de criar andam juntos: o tempo inicia quando Deus age criando.


“Bara” – o verbo “criar”


O verbo hebraico bārāʾ (בָּרָא) significa “criar” e aparece aqui na forma verbal perfeita, indicando uma ação completa: Deus criou. Há algumas características importantes sobre bārāʾ: (1) em toda a Bíblia, bārāʾ tem como sujeito somente Deus – é um verbo especial reservado à atividade criadora divina. Nenhum agente humano jamais “bārāʾ” algo; criar no sentido pleno é atribuição exclusiva de Deus. (2) A Escritura nunca especifica diretamente a matéria-prima ou “do quê” Deus criou. Diferentemente de verbos como “formar” ou “fazer”, que às vezes mencionam materiais usados, bārāʾ nunca traz um objeto direto indicando material – ou seja, o texto bíblico não fala de Deus criando o mundo de alguma substância preexistente. Isso sugere fortemente a ideia que a teologia posteriormente chamará de creatio ex nihilo, criação a partir do nada. De fato, bārāʾ costuma enfatizar a produção de algo novo e inesperado: por exemplo, cria Deus os grandes animais marinhos (Gn 1:21), cria o ser humano (1:27), cria “novidades” como fenômenos assombrosos (Nm 16:30) ou um futuro novo céu e nova terra (Is 65:17). Embora bārāʾ em si não signifique tecnicamente “criar do nada” (pois pode referir-se a transformações dentro da história, como “criar Israel” em Is 43:15), o termo carrega a noção de liberdade e onipotência divina em originar coisas sem limitações. Como resume W. H. Schmidt, bārāʾ denota “a atuação livre e soberana de Deus, sem esforço. Nunca se menciona do quê Deus criou”. A ideia de creatio ex nihilo – embora não explicitada em Gênesis 1:1 com essas palavras – está coerente com o uso de bārāʾ. Outros textos bíblicos confirmam essa compreensão: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus” (Sl 33:6) e “Ele falou, e tudo se fez” (Sl 33:9); ou ainda Provérbios 8:22-27 mostrando que antes de qualquer coisa existir, Deus já era. Tais passagens implicam que Deus criou simplesmente pelo Seu comando, não moldando matéria eterna, mas chamando à existência o que não existia. Assim, “Deus criou” em Gênesis 1:1 pode ser entendido como Deus trazendo à realidade toda a matéria, energia e ordem do universo pelo exercício de Sua palavra e vontade soberana, sem depender de nada pré-existente além dEle próprio.


Ainda sobre bārāʾ, vale notar o contraste com verbos de criação em mitologias pagãs. Nas cosmogonias mesopotâmicas, os deuses “construíam” o mundo a partir dos restos de uma deusa do caos (como veremos), ou formavam a humanidade de barro etc. Em Gênesis, pelo contrário, a criação se dá sem qualquer esforço hercúleo ou uso de materiais primordiais rivais. Deus bārāʾ – cria livremente, apenas declarando. Isso comunica, desde o princípio, o imenso poder do Criador bíblico. Como comenta certa vez Derek Kidner, se conseguimos crer em Gênesis 1:1, nenhum outro milagre da Bíblia será inacreditável, pois o Deus que criou os céus e a terra do nada certamente é grande o bastante para fazer todo o restante que a Escritura nos relata.


“Elohim” – Deus, o Criador


O sujeito da frase é ʾElohim (אֱלֹהִים), termo hebraico geralmente traduzido por “Deus”. Logo de início, a Bíblia destaca Deus como assunto principal – “não por acidente Deus é o sujeito da primeira frase da Bíblia,” ressalta Kidner, observando que “‘Deus’ domina todo o capítulo, aparecendo cerca de 35 vezes em 35 versículos”. O nome Elohim é peculiar, pois está na forma plural, mas é usado com verbo no singular (“Deus criou”, não “criaram”). Isso ocorre porque, no hebraico bíblico, Elohim pode ser um plural de majestade ou intensidade, designando o único Deus verdadeiro com a força de um superlativo – isto é, “o grande Deus”, por assim dizer. Não há indicação de politeísmo aqui; pelo contrário, o verbo singular e todo o contexto afirmam que se trata de um só Deus. Wenham comenta que embora muito se discuta se esse plural alude à majestade ou à Trindade, o mais importante é perceber que Elohim é simplesmente o termo comum para Deus em hebraico, plural em forma mas singular em sentido. O autor de Gênesis escolheu Elohim (em vez de Yahweh, o nome pessoal do Senhor) porque aqui Deus Se revela primeiramente como o Criador universal, Senhor de toda a existência, e não ainda como o Deus de Israel em particular. Elohim transmite a ideia dAquele que está acima de tudo e tem todo poder – “o soberano criador de todo o universo, não apenas o Deus da aliança de Israel”.


Muitos comentaristas cristãos já enxergaram em Elohim uma possível sugestão da pluralidade de pessoas na unidade de Deus. De fato, mais adiante em Gênesis 1:26 Deus dirá “Façamos o homem à nossa imagem”, o que, à luz do Novo Testamento, fica claro ser um vislumbre da Trindade divina em ação. Matthew Henry aponta que Elohim, embora gramaticalmente plural, “é unido a verbos e pronomes singulares, insinuando o mistério de três pessoas em um único Deus”. O próprio Henry destaca que o Filho de Deus, um com o Pai, estava presente na criação – pois “o mundo foi feito por meio dEle, e nada do que foi feito se fez sem Ele” (cf. Jo 1:1-3) – assim como o Espírito de Deus, mencionado no versículo seguinte pairando sobre as águas. Ou seja, já no primeiro versículo e contexto subsequente, a revelação completa nos permite discernir que o Pai, o Verbo (Filho) e o Espírito Santo estão envolvidos na origem de tudo. Em Gênesis 1:1, porém, o foco imediato recai sobre Deus em Sua unidade e poder supremo: Elohim cria por Sua palavra e vontade. Diferentemente das noções filosóficas modernas de uma força impessoal ou deísmo distante, o Deus de Gênesis 1 é pessoal e ativo – “um Deus que age e fala” no tempo e espaço. Não é um conceito abstrato, mas uma realidade viva cujos feitos inauguram a história.


“Shamayim” e “Erets” – “os céus e a terra”


Os objetos da criação divina em 1:1 são “os céus e a terra” (haššāmayim wǝʾet hāʾāreṣ, הַשָּׁמַיִם וְאֵת הָאָֽרֶץ). Esta é uma expressão idiomática hebraica conhecida como merismo, em que dois polos opostos ou extremos abrangem o todo. Por exemplo, dizer “de dia e de noite” pode significar “o tempo inteiro”; ou “grandes e pequenos” quer dizer “todos sem exceção”. Do mesmo modo, “os céus e a terra” juntos indicam o universo inteiro, tudo que existe. É como se disséssemos “Deus criou o alto e o baixo, o acima e o abaixo” – isto é, absolutamente tudo. Em hebraico šāmayim por si só quer dizer “céu” ou “firmamento” (o domicílio de Deus e dos corpos celestes) e ʾāreṣ geralmente significa “terra” (o mundo habitável, o solo firme). Mas combinados, “céu e terra” não se limitam a céu atmosférico e planeta Terra, e sim abrangem a totalidade do cosmos ordenado por Deus (cf. Is 66:1: “os céus são o meu trono e a terra, o estrado dos meus pés”; ou Jr 23:24: “Encho eu, diz o Senhor, os céus e a terra”). Assim, podemos parafrasear Gênesis 1:1 como: “No princípio, Deus criou todo o universo.


Interessante notar que alguns intérpretes enfatizaram que “céus e terra” significa o cosmos já organizado completamente – o que os levaria a concluir que o v.1 descreve apenas de forma resumida o resultado final, e não um ato inicial separado. Contudo, Wenham argumenta que a ênfase aqui é na totalidade, não necessariamente na ideia de um cosmos já estruturado. Ou seja, tudo (matéria, espaço, tempo) foi trazido à existência por Deus no princípio, e os versículos seguintes desdobram como Ele deu forma e ordem a esse “tudo” inicial. É possível, portanto, ler o verso 1 como um ato inaugural absoluto: Deus cria a matéria e os elementos básicos do universo; então, nos dias criativos seguintes, Ele separa, organiza e desenvolve essa criação inicial em um cosmos habitável. Nesse sentido, a palavra “terra” (ʾāreṣ) pode ter um significado diferente em Gênesis 1:1 e 1:2: no v.1, fazendo parte do merismo “céus e terra”, ʾāreṣ indica o universo como um todo; já no v.2, “a terra era sem forma e vazia”, ʾāreṣ designa especificamente o globo terrestre ainda informe, em contraste com os “céus”. Ou seja, Gênesis 1:1 declara que Deus criou tudo; o v.2 foca no estado inicial do planeta Terra (parte desse “tudo”), e o restante do capítulo mostra Deus formando e preenchendo a terra, organizando também os céus. Essa leitura harmoniza o v.1 como um evento inicial de criação do todo com os demais versículos como descrição do processo de ordenação. Não há, portanto, contradição alguma em afirmar que Deus “criou a terra” (v.1) e logo em seguida dizer que “a terra estava sem forma” (v.2) – pois o termo “terra” pode ser entendido num sentido mais amplo no primeiro momento e mais específico no segundo. De qualquer forma, “os céus e a terra” juntos proclamam que nada escapou ao escopo criativo de Deus: Ele é o autor de cada elemento da realidade, “visível e invisível” (Cl 1:16). Isso se opõe frontalmente a qualquer cosmovisão em que partes do universo (os astros, por exemplo) tenham origem independente ou natureza divina própria.


Resumindo a exegese do verso inteiro: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” significa que em um momento inicial absoluto, o Deus eterno trouxe à existência todo o universo. Essa simples afirmação já nega várias noções contrárias: nega o ateísmo (pois Deus existe antes de tudo e age), nega o politeísmo (pois Deus, no singular, único, fez tudo) e nega o panteísmo (pois Deus é distinto da criação que Ele produziu). Nenhuma força ou matéria coeterna Lhe faz sombra: Ele é a origem única. Como afirma o teólogo Wiersbe, Deus estava só em Sua sublime glória antes do início de Gênesis 1:1, plenamente suficiente em Si mesmo, mas decidiu livremente criar e, inclusive, já tinha em mente um propósito sábio e amoroso ao fazê-lo. O versículo inicial, portanto, coloca Deus no centro de nossa cosmovisão – tudo começa com Ele e depende dEle.


Criação Ex Nihilo: Doutrina e Fundamentos Teológicos


A expressão latina creatio ex nihilo significa “criação a partir do nada”. Ela sintetiza a convicção, desenvolvida na teologia judaico-cristã, de que Deus não precisou de nenhuma matéria preexistente para criar o universo – Ele literalmente chamou do nada todas as coisas à existência. Embora Gênesis 1:1 não diga explicitamente “do nada”, a frase “criou os céus e a terra” indica a origem absoluta de tudo por Deus, sem mencionar qualquer material utilizado. Conforme vimos, o verbo bara sugere exatamente essa ausência de matéria-prima mencionada. No contexto em que Gênesis foi escrito, essa noção era revolucionária: as cosmogonias pagãs da época não concebiam uma criação de matéria do nada; geralmente supunham que alguma “matéria” ou caos já existia junto com as divindades. Por exemplo, mitos mesopotâmicos imaginavam um oceano primordial eterno ou deuses nascendo de elementos já presentes. Contra isso, Gênesis 1:1 afirma que até mesmo a matéria bruta e informe – os “céus e terra” iniciais – derivam da palavra criadora de Deus, não dEle tendo de lutar ou se unir a algo fora de Si mesmo.


Teologicamente, a doutrina da criação ex nihilo é fundamental por vários motivos. Primeiro, ela preserva a soberania e a liberdade absolutas de Deus: se algo coexistisse eternamente ao lado de Deus (matéria, energia, caos), então Deus não seria o único absoluto. Mas a Bíblia revela que somente Deus é eterno e autoexistente; tudo mais é contingente, ou seja, depende de Deus para existir (cf. Sl 90:2: “de eternidade a eternidade, tu és Deus”; Jo 1:3: “todas as coisas foram feitas por intermédio [do Verbo], e sem Ele nada do que foi feito se fez”). Assim, ex nihilo sublinha que Deus é a única fonte de todo ser – como diz Neemias 9:6: “Só tu és Senhor! Fizeste o céu... a terra e tudo quanto neles há. Tu dás vida a todas essas coisas”. Não há “dualismo” eterno entre Deus e matéria; não, no princípio só havia Deus, e tudo mais Ele decretou ser. Isso protege a fé de conceitos gnósticos ou gregos em que a matéria seria má e eterna em oposição a Deus – em vez disso, a criação é boa em sua origem (Gn 1:31) e inteiramente dependente de Deus.

Segundo, creatio ex nihilo ressalta que a criação é graciosa e intencional. Deus não estava compelido a criar porque precisava de algo – Ele era plenamente bem-aventurado em Si. Como comenta Wiersbe, Deus não necessita de nada externo a Ele para existir ou agir. Portanto, o fato de Ele criar o universo “do nada” demonstra Sua vontade livre e amor transbordante, desejando compartilhar existência e vida com criaturas, sem qualquer “ganho” para Si. A criação, nesse sentido, é um dom gracioso. Além disso, a ex nihilo enfatiza o poder da palavra de Deus. Somente uma onipotência infinita pode, por ordem verbal, fazer surgir matéria e luz onde nada havia. O Salmo 148:5 convoca: “Louvem o nome do Senhor, pois mandou Ele, e foram criados”. O Novo Testamento concorda: “Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hebreus 11:3). Ou seja, aquilo que vemos não foi feito de matéria visível prévia – forte alusão à criação a partir do invisível, do nada sensível.


Filosoficamente, a ex nihilo também tem implicações: significa que toda a realidade depende constantemente de Deus para continuar existindo. Se no princípio veio do nada pelo fiat divino, no presente também seria reduzida ao nada sem o contínuo sustento dEle. Isso se conecta à ideia de conservatio – Deus não apenas criou, mas “sustenta todas as coisas pela palavra do Seu poder” (Hebreus 1:3). Além disso, a doutrina responde à grande questão metafísica: “por que existe algo em vez de nada?”. Para a fé bíblica, existe algo porque Deus livre e poderosamente decidiu criar. Sem Ele, nada haveria; a existência não é necessária, mas contingente à vontade de Deus.


Historicamente, a igreja cristã firmou a doutrina da criação ex nihilo contra algumas heresias. No século II, teólogos como Teófilo de Antioquia já usavam explicitamente o termo “ex nihilo” para afirmar que Deus não se limitou a reorganizar matéria informe, mas verdadeiramente iniciou a existência de toda substância. Os gnósticos da época ensinavam que a matéria era eterna e má, e um demiurgo inferior a moldou – o cristianismo bíblico contrapôs Gênesis 1:1: Deus mesmo criou a matéria e declarou-a boa, portanto a matéria não é intrinsicamente má nem existe independentemente de Deus. Também no combate às filosofias gregas (Platão pensava numa matéria caótica eterna), a igreja insistiu: ex nihilo Deus fez tudo, de modo que somente Ele é eterno. Essa se tornou posição ortodoxa clássica, atestada em credos e concílios: “Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra” – enfatizando o todo-poderoso, que não necessita de material prévio.


Cabe mencionar que dentro do próprio texto de Gênesis, nada sugere que Deus tenha usado algo já existente no v.1. Pelo contrário, sempre que algo é formado de material, o texto o diz claramente (por exemplo, Deus formou o homem do pó da terra em Gn 2:7, ou formou a mulher da costela em 2:22). Em Gênesis 1, porém, não se diz que “Deus formou a terra do caos” ou “fez a luz da escuridão que já estava lá”. Antes, cada decreto divino chama e separa elementos. Logo, a leitura mais direta entende Gênesis 1:1 como o ato inicial de criar a própria matéria, energia e espaço. Alguns veem no versículo 2 (“a terra era sem forma e vazia”) uma descrição do estado da matéria logo após o ato inicial – um estágio ainda caótico que Deus em seguida organizará. Nessa leitura, temos ex nihilo no verso 1, seguido de formação nos dias. Outros, como já citado, veem o verso 1 como um título resumitivo e supõem implicitamente matéria pré-existente, mas essa visão levanta o problema: de onde veio tal matéria inicial? Como notou Wenham, as culturas da época assumiam a eternidade da matéria, mas Gênesis contradiz essa suposição ao declarar que Deus criou até mesmo a matéria “bruta”. Dificilmente um israelita monoteísta iria querer imitar os mitos pagãos mantendo um caos coeterno com Deus – o propósito teológico aqui é justamente engrandecer o Senhor como fonte única de tudo.


Portanto, embora a frase “criou... os céus e a terra” possa não responder a todas as curiosidades científicas modernas (como exatamente se deu tal criação em termos físicos), ela fundamenta o princípio teológico e metafísico básico: tudo veio a existir por Deus e do nada além de Deus. Essa doutrina salva a fé tanto do dualismo (Deus vs. matéria eterna) quanto do panteísmo (Deus = matéria), colocando-nos diante do mistério e majestade de um Deus que transcende a criação e a produz livremente. Não é de admirar que, mais tarde, Paulo exclamará sobre Deus: “...o que chama à existência as coisas que não existem” (Romanos 4:17). Tal é o poder do Criador revelado já em Gênesis 1:1.


Cosmogonias do Antigo Oriente Próximo: Gênesis 1:1 em Contraste


Ao entender Gênesis 1:1, é esclarecedor compará-lo com os relatos de criação de culturas vizinhas do antigo Oriente Próximo – como os babilônicos, assírios, egípcios e cananeus – pois o texto bíblico frequentemente se posiciona em diálogo (ou confrontação) com essas ideias. Gordon Wenham ressalta que Gênesis 1–3 parece assumir temas correntes no mundo antigo para comentá-los e transformá-los. Vejamos alguns exemplos:


Cosmogonia Babilônica (Enuma Elish): Um dos mitos mais conhecidos é o babilônico Enuma Elish, datado do segundo milênio a.C. e recitado em Babilônia durante a festa de Akitu. Ele começa com as palavras “Quando, nas alturas (Enūma eliš), o céu não tinha nome, e embaixo a terra não estava nomeada…”, descrevendo inicialmente um estado primordial onde existem duas entidades divinas: Apsu (deus das águas doces, “água de baixo”) e Tiamat (deusa das águas salgadas, “água do mar”, personificando o caos). Dessas “águas” surgem outros deuses, e eventualmente ocorre um conflito cósmico: Tiamat se rebela e é enfrentada pelo jovem deus Marduk. Marduk derrota Tiamat em batalha, mata-a e parte o seu corpo em dois – de uma metade faz o céu, da outra faz a terra. Em seguida, cria os luminares, estabelece ordem e, por fim, cria os seres humanos a partir do sangue de um deus menor (Kingu) para servirem aos deuses.


A diferença para Gênesis 1 não poderia ser mais marcante. Primeiro, Gênesis afirma um só Deus criador, enquanto Enuma Elish é politeísta ao extremo – fala de multidão de deuses, e a própria criação do mundo é resultado de uma guerra entre eles. A abertura bíblica “Deus criou os céus e a terra” declara enfaticamente a unidade e singularidade de Deus frente às mitologias em que vários deuses competem. Segundo, no mito babilônico a matéria (as “águas” primordiais) está presente desde o começo e a criação é, em essência, a organização do caos e a divisão do corpo de um monstro. Em Gênesis 1, como vimos, não há nenhuma deidade rival e nenhum monstro a ser abatido para que o mundo surja – Deus simplesmente cria e separa elementos por sua palavra, sem oposição. “Os grandes monstros marinhos”, que no mito são deuses caóticos (Tiamat, representada como dragão do mar), em Gênesis 1:21 são apenas criaturas feitas por Deus como qualquer outra, sem poder próprio contra Ele. De fato, o texto bíblico parece até evitar dizer “sol” e “lua” (Gn 1:16 refere-se a eles como “luzes maior e menor”) possivelmente para não usar os nomes de divindades pagãs associadas a esses astros (Šamaš, deus-sol, e Sîn, deus-lua, na Mesopotâmia). O recado é claro: o sol, a lua, as estrelas – todos cultuados como deuses em culturas antigas – para Israel não passam de lâmpadas que o Deus verdadeiro pendurou no céu. Gênesis 1:1 resumidamente já contém esse ataque aos panteões: “os céus e a terra” (isto é, tudo, até as coisas que outros veneram) foram criadas por Deus; logo, nada dentro da criação é divino. Como diz Wenham, Gênesis insiste que astros e até os temíveis “monstros marinhos” dos mitos são apenas criaturas de Elohim.


Terceiro, note-se a ausência de conflito em Gênesis. Onde os babilônios celebravam Marduk como herói guerreiro que vence Tiamat para impor ordem, a Bíblia retrata Deus enfrentando simplesmente a escuridão e o abismo (tehom). E Ele não “luta” com tehom – Ele apenas diz “Haja luz” e a luz passa a existir, Ele diz “Separem-se as águas” e elas obedecem. Alguns estudiosos já sugeriram que a palavra tehom (“abismo” em Gn 1:2) ecoa Tiamat do mito, mas a pesquisa demonstra que, embora as palavras tenham raiz comum (ambas derivam de um termo semítico para “profundezas”), tehom no hebraico bíblico não carrega nenhum sentido personificado ou divino. Não é a deusa do caos – é apenas a “profundeza das águas” comum. O autor de Gênesis usa deliberadamente uma linguagem desmitologizada: há um abismo aquoso inicial, sim, mas ele não é um poder rival – é apenas parte da criação embrionária que já está submissa a Deus. “Trevas cobriam o abismo” (Gn 1:2) e o Espírito de Deus pairava sobre ele, prestes a agir. Não há nenhuma sugestão de que tehom resistisse; pelo contrário, outras passagens deixam claro que para Deus o “abismo” não é ameaça (Jó 38:11, Salmo 104:6-7 mostram Deus pondo limites ao mar). Gênesis 1:2, portanto, não retrata Deus duelando com uma força maligna; antes, descreve poeticamente a situação caótica inicial que será logo transformada pela palavra divina. Como conclui o estudioso Heidel, não há como derivar Gênesis 1 de Enuma Elish – as diferenças são substanciais; ambos provavelmente refletem alguns conceitos antigos comuns (água primordial, etc.), mas o texto bíblico conscientemente purga o elemento mitológico de combate personificado.


Cosmogonia Egípcia: O Egito antigo possuía várias teologias de criação conforme as cidades e templos. Numa das versões (Heliópolis), no início havia apenas as águas indiferenciadas chamadas Nun. Desse caos aquoso emergiu a primeira divindade, Atum (ou Ré), que engendrou outras deidades: Shu (ar) e Tefnut (umidade), que por sua vez geraram Geb (terra) e Nut (céu), e assim por diante, até formar o mundo. Em outra versão (Mênfis), o deus Ptah teria concebido o mundo em seu coração e falado ele à existência – curiosamente próxima do conceito de criação pela palavra. Entretanto, mesmo nessa teologia, Ptah não cria do nada absoluto: ele organiza a Nun, e há todo um panteão envolvido. Os egípcios também falavam de um “monte primordial” que surgiu do mar original e sobre o qual o deus criador se manifestou. Comparando com Gênesis: novamente, a Bíblia apresenta Deus existindo sozinho antes de qualquer água ou monte; Ele cria os céus e a terra sem par, não “nasce” de um caos. A imagem de Gênesis 1:2 de “espírito de Deus pairando sobre as águas” pode ser uma delicada crítica: algumas tradições egípcias retratavam um falcão (símbolo de Ré) voando sobre as águas primordiais. Gênesis reaproveita a figura do pairar sobre as águas, mas quem paira é o Espírito de Deus – apontando que o verdadeiro Deus estava presente e ativo sobre aquele estado inicial, pronto para criar, diferentemente das histórias de deuses nascendo de Nun. Além disso, em Gênesis 1:6-8, Deus separa águas e ergue um firmamento, concepção que existe em mitos, porém sem mitologia: para os egípcios, o céu (Nut) era uma deusa arqueada sobre a terra; para Gênesis, o céu é uma expansão impessoal criada por Deus. Ou seja, o ato até pode ser similar (separar céu e terra das águas), mas a teologia é radicalmente distinta: nenhum elemento da natureza é divinizado.


Outras cosmogonias: Entre os cananeus, há fragmentos que falam do deus Baal lutando contra Yam (o mar) ou Lotan/Leviathan (um monstro marinho) para estabelecer sua ordem. Esses temas estão em Ugarit e refletem a ideia comum de “deus da tempestade vence deus do mar”. A Bíblia conhece esses motivos – Leviatã aparece em Jó e Salmos como uma criatura marinha. Porém, de modo interessante, em Gênesis não há menção de Deus “matando” Leviatã para criar. Pelo contrário, Isaías 27:1 e Salmo 74:13-14 evocam Deus derrotando monstros marinhos, mas em contexto poético, como metáfora do poder de Deus sobre caos e nações. Gênesis 1 não precisou narrar nenhuma batalha: a vitória de Deus sobre o caos está implícita em Sua autoridade tranquila ao mandar a luz brilhar e as águas se ajuntarem. “Ele falou e tudo se fez, Ele ordenou e tudo surgiu” – essa é a polêmica bíblica: não há rival à altura de Yahweh.


Em resumo, “No princípio, Deus criou os céus e a terra” soa quase como um manifesto contra os mitos do entorno. Onde povos vizinhos diziam: “no princípio, quando… [tais deuses estavam lá…]”, a Escritura diz: “no princípio, Deus (único) criou…”. Onde diziam “os deuses formaram o mundo de matéria eterna”, a Bíblia diz “Deus criou até a matéria”. Onde havia panteões brigando, a Bíblia tem o Elohim soberano comandando. Essa originalidade de Gênesis é notável. Wenham comenta que por assumirmos essas verdades (monoteísmo, racionalidade divina, etc.) muitas vezes não percebemos o quão revolucionário foi o relato bíblico em seu ambiente: ele afirma a unidade de Deus contra o politeísmo, a justiça de Deus contra o capricho dos deuses pagãos, o poder de Deus contra a impotência ou limitações dos mitos, e o cuidado de Deus com a humanidade (criada à Sua imagem e provida de alimento) contra a exploração humana pelos deuses nas lendas. Diferentemente de lendas onde os homens eram criados para servir de alimento aos deuses ou mão-de-obra para seus caprichos, Gênesis mostra Deus amorosamente preparando um mundo bom para o ser humano e dando a ele dignidade especial. Em vez de vários deuses localizados (sol, lua, mar), Gênesis introduz um só Deus universal e transcendente. Não há acaso, nem necessidade, nem conflitos sangrentos na origem – apenas a vontade soberana de um Deus bom.


Esse contraste também indica propósito apologético na narrativa bíblica. Ela é polêmica contra cosmogonias falsas, ao mesmo tempo em que comunica a fé de Israel. Ao ler “Deus criou os céus e a terra”, o ouvinte antigo já entendia: nada dos temidos ou adorados poderes cósmicos era divino ou autônomo; todos foram feitos pelo nosso Deus. Assim, o texto fortalece a confiança no Senhor sobre quaisquer outros “deuses”. E essa mensagem permanece atual: em cada geração, Gênesis 1 corrige nossas cosmovisões erradas – seja o paganismo antigo, seja o naturalismo moderno (que deifica o “acaso” ou “leis naturais” no lugar de Deus). Desde a primeira frase, a Bíblia declara que o universo não é fruto de disputas divinas, nem de acidente, mas do intento inteligente e poderoso de um único Deus verdadeiro.


Soberania de Deus sobre o Tempo, o Espaço e a Matéria


Gênesis 1:1 revela um Deus que é absolutamente soberano sobre as dimensões fundamentais da realidade: tempo, espaço e matéria. Isso transparece ao examinarmos com atenção cada elemento do versículo: “No princípio” (tempo), “criou Deus os céus” (espaço) “e a terra” (matéria). Não é forçado ver aqui uma estrutura deliberada. Como observou o cientista cristão Adauto Lourenço, a frase apresenta de forma didática esses três componentes: “Veja a ordem: No princípio [tempo], Deus criou os céus [espaço] e a terra [matéria]”. Ou seja, tudo aquilo que a física moderna reconhece – tempo, espaço e matéria (energia) – teve um começo e esse começo foi dado por Deus. Antes do “princípio”, o tempo não existia; Deus, eterno, decidiu iniciá-lo. “Princípio” denota o surgimento da sucessão de momentos – o relógio cósmico começou a tickar porque Deus assim o quis. Isso implica que Deus é Senhor do tempo: Ele próprio não está sujeito ao fluxo temporal, pois já era Deus antes do princípio (Sl 90:2), e é Ele quem dá início à história. Na prática, isso significa que passado, presente e futuro estão nas mãos dEle – Ele declara “o fim desde o começo” (Isaías 46:10) justamente porque Ele instaurou e trasncende o tempo. Diferente das divindades pagãs, que nascem dentro do tempo e estão limitadas a ele, o Deus bíblico reina sobre o tempo como Criador. Isso traz grande consolo e também responsabilidade: nossos tempos estão nas mãos dEle (Sl 31:15), Ele estabelece propósitos eternos que permeiam a história (Ef 1:4, 11).


Quando o texto diz que Deus criou “os céus”, aponta para o espaço. Não apenas o céu visível, mas o espaço sideral, a extensão sobre nós. O termo šāmayim no plural hebraico sugere tanto o céu atmosférico quanto o firmamento cósmico onde estão astros. Em linguagem moderna, poderíamos pensar que Deus criou o espaço-tempo do universo. Assim como o tempo, o espaço não é infinito por si – teve um ponto inicial, as “coordenadas” foram traçadas por Deus. Deus não é parte do espaço; Ele o transcede e o preenche conforme queira. Salomão orou: “Os céus e até os céus dos céus não te podem conter” (1Rs 8:27). Ou seja, o Criador não está confinado no universo físico, antes o universo existe “dentro” da imensidão do poder de Deus. Ele é Onipresente: está presente em toda parte do espaço criado e, ao mesmo tempo, além dele. Isso desfaz visões deísta ou panteísta – Deus não é ausente do cosmos (pois Ele o sustém e preenche), mas também não é idêntico ao cosmos (pois Ele o ultrapassa). Gênesis 1:1 implicitamente ensina que altura, profundidade, vastidão – nada escapa a Deus. O Salmo 139:7-10 celebra que não há aonde fugir de Sua presença, seja nos céus ou no mar profundo, porque Ele, o Criador do espaço, está em todos os lugares. Portanto, os “céus” criados nos lembram de Sua soberania sobre cada canto do universo.


Finalmente, “a terra” representa a matéria, o mundo físico concreto. Deus não apenas criou abstrações – Ele trouxe à existência matéria real: átomos, elementos, substâncias. Todo o mundo material é obra dEle e está sob Seu controle. Não há partícula rebelde que não pertença ao decreto “haja” de Deus. Isso implica que Deus tem autoridade sobre as leis da natureza e sobre a matéria em si. Ele pode, segundo Seu propósito, operar milagres, pois a matéria Lhe obedece (como Cristo posteriormente transformando água em vinho ou acalmando vento e mar, mostrando domínio sobre elementos). Implica também que não podemos dividir a realidade entre “matéria = reino autônomo” e “espírito = reino de Deus”; não, Ele é Senhor tanto do espiritual quanto do material. O material não é eterno, nem é maligno por natureza – veio à existência bom, pelo bom Deus, e serve aos Seus designíos. Por isso, a matéria pode ser santificada para propósitos nobres (ex: pão e vinho sacramentais, ou nosso próprio corpo, que é matéria consagrada a Deus). Saber que Deus fez a terra (matéria) do nada e governa sobre ela dá base para a ciência também: o mundo material segue leis e ordem justamente porque foi projetado pelo Logos divino. A inteligibilidade e regularidade da natureza derivam do fato de terem sido estabelecidas por uma Mente racional. Assim, fé e apreço pelo estudo da matéria (ciência) caminham juntos.


Resumindo, em Gênesis 1:1 entendemos que: Deus é o Senhor do tempo (Ele o iniciou e o conduz na história providencial); Deus é o Senhor do espaço (Ele criou os céus e é onipresente e transcendente); Deus é o Senhor da matéria (Ele originou toda a existência física e a governa plenamente). Tudo que configura nossa realidade – passado e futuro, alturas e profundezas, o pó da terra e as galáxias distantes – encontra seu princípio e propósito em Deus. Nenhuma dessas esferas é autônoma ou caótica; todas estão sob a autoridade dAquele que as chamou à vida.

Essa soberania total tem profundas implicações teológicas e para nossa fé prática. Significa que não há zonas fora do alcance de Deus: Ele pode intervir na história (pois Ele a dirige), pode estar presente conosco onde for (pois o espaço é dEle), pode prover e transformar necessidades físicas (pois a matéria é obra Sua). Também nos humilha e consola: humilha, porque nos mostra quão pequenos somos diante do Deus que abarca tempo, espaço e matéria – não podemos “encaixotá-Lo” em nosso templo ou entendimentos (como Salomão disse), nem exigir Dele contas; Ele é Deus, nós criaturas dependentes do Seu tempo e espaço. E consola, porque sabemos que nossa existência inteira está segura no poder dAquele que fez tudo – conforme Paulo pregou em Atenas: “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17:28). Tudo o que somos e temos está dentro do domínio amoroso do Criador. Nada pode nos separar desse Deus, nem alturas, profundidades, ou qualquer outra criatura (Rm 8:39), já que todas essas coisas Ele fez e controla.

Outra consequência interessante: se Deus criou o tempo, Ele já tinha Seus planos antes do tempo iniciar. Efésios 1:4 afirma que “antes da fundação do mundo” Deus nos escolheu em Cristo – indicando que antes de Gênesis 1:1, Deus em Sua eternidade já arquitetara a redenção. Wiersbe observa que o plano redentor em Cristo não foi um improviso; foi concebido “antes dos tempos dos séculos”. Assim, o Criador do tempo também é o Arquiteto da salvação que entra no tempo. Isso exalta mais ainda Sua soberania: nada O pega de surpresa na história, pois Ele está à frente de tudo. Ele inicia o relógio do mundo já com um propósito final em mente – a manifestação de Sua glória, seja na criação, seja na redenção.


Resumindo esta seção: ao declarar “No princípio, Deus criou os céus e a terra”, a Bíblia nos ensina que o tempo teve um começo, o espaço teve um Arquiteto, a matéria teve uma causa primeira. E essa causa é a pessoa do Deus vivo. A realidade não é eterna, cega ou fatalista – ela é obra de um Deus pessoal, eterno e soberano. Para nós, isso significa que todas as dimensões da vida são esfera do senhorio divino. Devemos reconhecer Deus em nosso tempo (consagrando nossos dias a Ele), em nosso espaço (fazendo de todo lugar um local onde Seu nome é honrado) e em nossos bens materiais (usando a criação conforme a vontade do Criador). Como expressou Henry, nosso “lugar como homens” – estar na terra mas olhando para o céu – deve lembrar-nos do dever de manter o céu em nossos olhos e a terra sob nossos pés, ou seja, viver sob a soberania de Deus, valorizando as coisas eternas acima das terrenas.


Debates Apologéticos: Criação x Evolução, Ciência e Fé, Historicidade


Gênesis 1:1 tem sido um versículo central em muitos debates contemporâneos que envolvem fé e ciência. Vamos considerar três aspectos inter-relacionados: (a) a controvérsia Criação vs. Evolução; (b) a harmonia (ou conflito) entre ciência e fé; (c) a questão da historicidade do relato bíblico da criação.


(a) Criação vs. Evolução: A afirmação “Deus criou os céus e a terra” posiciona a cosmovisão bíblica em contraste com a explicação puramente naturalista das origens (evolução darwiniana sem propósito divino). Para o crente, a origem do universo e da vida não é um acidente aleatório, mas um ato intencional de Deus. Isso não impede necessariamente a investigação de como Deus criou – há cristãos que interpretam Gênesis de modo não literal e conciliam a fé na criação divina com a teoria evolutiva (evolucionistas teístas). Por exemplo, podem ver Gênesis 1 como um texto teológico não voltado a detalhes científicos, e aceitar que Deus criou através de processos graduais ao longo de bilhões de anos, guiando a evolução. Por outro lado, há cristãos que entendem Gênesis de forma mais literal (particularmente os criacionistas de terra jovem) e rejeitam macroevolução, defendendo que Deus criou as diferentes “espécies segundo suas espécies” diretamente, e que o universo tem poucos milhares de anos conforme a cronologia bíblica. Entre esses, Adauto Lourenço é um nome que se destaca no Brasil – ele, que é físico, tem apresentado evidências científicas a favor de um modelo criacionista e contra pressupostos evolucionistas. Curiosamente, Lourenço relata que já seguiu a linha do evolucionismo teísta, mas mudou de posição diante do que entendeu serem dados científicos mais coerentes com a criação especial. Ele argumenta, por exemplo, que se o universo tivesse surgido via Big Bang e evolução cósmica lenta, então, olhando para as galáxias mais distantes (que nos mostram o “passado” do universo), deveríamos vê-las ainda em estado desorganizado. Porém, observações astronômicas revelam galáxias distantes surpreendentemente maduras e similares às próximas. Para Lourenço, isso indica que o universo já “nasceu” funcional e completo, confirmando a ideia de criação inteligente em vez de auto-organização aleatória. Ele cita também a descoberta de água em regiões remotas do cosmos, algo que os cientistas acham “surpreendente”, mas que, como ele diz, “a Bíblia já dizia que no início... o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Eles apenas estão provando a Bíblia”. Exemplos assim são usados pelos criacionistas para afirmar que os dados científicos, longe de contradizerem Gênesis, podem ser interpretados de modo a corroborar uma criação intencional e relativamente recente.


É importante notar que mesmo entre cristãos comprometidos com a autoridade bíblica há diversas perspectivas sobre como Deus criou (6 dias literais, longos períodos, evolução dirigida, etc.). O ponto em que todos concordam é o quem: Deus. E Gênesis 1:1 é inegociável nesse sentido – o universo não é obra do acaso impessoal, mas de Deus. Qualquer visão que exclua Deus como causa e sustentador final se choca frontalmente com a teologia de Gênesis. Assim, o debate criação vs. evolução, no âmbito apologético, costuma se concentrar principalmente em se a evolução naturalista é suficiente para explicar tudo ou se a evidência aponta para design. Gênesis 1:1 não entra em detalhes de mecanismos, mas estabelece o princípio: sem Deus, nada feito; com Deus, todas as coisas. Muitos apologistas cristãos apontam que a própria ciência moderna reforçou a ideia de um “princípio” absoluto: a teoria do Big Bang (amplamente aceita) diz que o universo – inclusive o tempo e o espaço – teve um início finito no passado. Essa descoberta, feita no século XX, derrubou a suposição secular de um universo eterno e estático. Não deixa de ser notável que “No princípio... criou Deus” já afirmava, milênios antes, que o universo não é eterno, mas teve um começo. Alguns cientistas, como o famoso astrônomo Edwin Hubble, resistiram inicialmente ao Big Bang exatamente porque parecia “dar muita abertura” para o teísmo (a ideia de um momento de criação). De fato, o próprio termo “Big Bang” foi criado por um cientista cético em tom jocoso. Porém, hoje há fortes evidências de que realmente tempo e espaço surgiram em um momento específico – o que harmoniza com a noção de Gênesis. Muitos cristãos apontam isso como exemplo de que não há verdadeiro conflito entre a verdade científica e a verdade bíblica quando ambas são devidamente compreendidas; o conflito reside entre filosofias naturalistas e a fé, não entre fatos e fé. Afinal, se a ciência descobre que o universo teve mesmo um “princípio”, a pergunta “o que ou quem causou esse princípio?” permanece. Para nós, crer em Gênesis 1:1 fornece a resposta que o naturalismo não consegue dar (pois “do nada, nada vem”, sem um agente).


(b) Ciência e Fé: Durante muito tempo vendeu-se a ideia de que ciência e fé estão em guerra irreconciliável. Contudo, uma análise mais acurada mostra que a relação é mais complexa e pode ser de harmonia. Gênesis 1:1 tem sido visto como um versículo que liga a fé à realidade do mundo físico de forma positiva. Ele motivou muitos pioneiros da ciência a estudar a natureza, crendo que um Deus racional a fez de modo ordenado e inteligível. A noção de leis da natureza deriva em parte da crença em um Legislador divino. Assim, historicamente, longe de travar a ciência, a cosmovisão criacionista a encorajou (vide Newton, Kepler, Boyle, etc., todos teístas). Hoje, o debate se concentra em áreas como a origem da vida, a complexidade do DNA, a sintonia fina do universo – assuntos onde muitos veem impressões digitais do Criador. Por exemplo, a “constante cosmológica” e dezenas de parâmetros físicos parecem calibrados de maneira precisa para permitir vida. Apologistas argumentam que tal fine-tuning dificilmente se explica pelo acaso; apontam para um Designer. Gênesis 1:1, nesse sentido, fornece o fundamento para uma visão teleológica: o universo foi intencionalmente preparado para um propósito (Isaías 45:18 chega a dizer que Deus formou a terra para ser habitada).


Entretanto, há tensões, sim, principalmente quando interpretações científicas e bíblicas parecem divergir em cronologia (idade da terra, evolução das espécies, etc.). Essas tensões geram diferentes abordagens entre cristãos: alguns revisitam as interpretações de Gênesis (seria “dia” figurado? o texto permite intervalo entre 1:1 e 1:2? etc.) para acomodar dados científicos; outros reavaliam a ciência vigente sob uma perspectiva crítica (por exemplo, questionando métodos de datação, ou propondo o dilúvio bíblico como fator geológico significativo). Adauto Lourenço, no artigo citado, afirma categoricamente que “a ciência não é contra a Bíblia; são alguns cientistas que não creem em Deus” – ou seja, o conflito não é intrínseco, mas fruto de pressupostos. Ele mostra como certos modelos científicos (como o uniformitarismo estrito, que assume que processos lentos atuais explicam todo o passado) têm sido contestados por evidências de catástrofes (como o Dilúvio) e que, na visão criacionista, explicariam melhor fenômenos geológicos. Também a menção de 2 Pedro 3:4-6 que Lourenço fez (zombadores ignorando a criação e o dilúvio, alegando que tudo sempre foi igual) é significativa: a Bíblia profeticamente identifica a postura naturalista uniformitarista e a refuta apontando a criação e o juízo de Deus na história. Isso mostra que a fé bíblica espera esse tipo de negação e provê resposta: Deus interveio no começo e interveio depois (dilúvio) e intervirá no futuro (consumação); o mundo não é um mecanismo autossuficiente eterno.


No diálogo ciência-fé, Gênesis 1:1 permanece um farol. Ele nos lembra de começar pelo princípio adequado: “Deus”. Se a nossa ciência começa com a suposição de nenhum Deus, possivelmente interpretaremos erroneamente evidências. Se começa com Deus, buscará compreender como Ele fez e faz as coisas, mantendo abertura à Sua ação. Muitos cientistas cristãos testificam que crer em Deus Criador lhes dá um sentido maior em suas pesquisas e não os impede de fazer descobertas – ao contrário, dá motivação e ética. Um exemplo interessante: Georges Lemaître, padre e astrofísico, propôs a ideia do “átomo primordial” (depois chamado Big Bang). Ele conciliou seu modelo cosmológico com a fé, vendo-o como descritor do momento inicial da criação (embora ele separasse bem a esfera teológica da científica). Quando a evidência do Big Bang se fortaleceu, o famoso ateu Antony Flew chegou a dizer que aquilo “parecia a linha de abertura do Gênesis escrita em linguagem científica”. De fato, isso levou Flew, décadas depois, a abandonar o ateísmo admitindo evidências de mente inteligente por trás do cosmos. Assim, longe de ser derrubada pela ciência, a frase “No princípio, Deus criou” tem ganhado até alguns apoiadores improváveis dentre pensadores seculares que veem dificuldade de explicar a origem absoluta sem um agente.


(c) Historicidade do texto: Outra arena de debate é se Gênesis 1 é para ser lido como história literal ou como algum tipo de poesia/alegoria teológica. Alguns críticos desde o século XIX classificaram Gênesis 1 como “mito hebreu” – não no sentido de fábula pagã, mas de gênero literário para expressar verdades em forma não literal. Apontam o estilo altamente organizado, repetitivo (ex.: refrões “E disse Deus… e assim se fez… e viu Deus que era bom… houve tarde e manhã, dia X”), a estrutura simétrica dos seis dias (três dias de formação, três de preenchimento correspondentes), e notam que esse estilo é diferente da narrativa histórica comum (por exemplo, de Gênesis 12 em diante, que tem menos paralelismos e repetições). De fato, Gênesis 1:1–2:3 tem características quase poéticas. Isso levou alguns a dizerem: “não é para ser entendido literalmente; importa o ensino teológico, não se houve seis dias reais, etc.”. Por outro lado, muitos eruditos argumentam que Gênesis 1 pertence ao gênero narrativo, mesmo que estilizado. A presença de verbos sequenciais no hebraico (wayyiqtol, típico de narrativa histórica), a continuidade com Gênesis 2 e seguintes (que claramente assumem um casal inicial real, eventos etc.), e o fato de que os Dez Mandamentos citam “em seis dias fez o Senhor o céu e a terra” (Êx 20:11) de modo normativo, tudo isso sugere que os autores bíblicos consideravam a semana da criação como um acontecimento real no passado. Jesus Cristo, ao discutir o casamento, referiu-se a “desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher” (Mc 10:6), aparentemente tratando Adão e Eva e o ato criativo divino como história real, fundamento para a ética do casamento. O apóstolo Paulo constrói doutrina (entrada do pecado no mundo, necessidade de Cristo como “segundo Adão”) com base em Adão como pessoa histórica (Rm 5:12-19; 1Co 15:21-22). Dessa forma, muitos teólogos asseveram: se removemos a historicidade de Gênesis 1–3, comprometemos a coerência de todo o resto da Bíblia. Wiersbe chega a dizer, sobre Gênesis 3 em particular, que se não houve uma queda real, então todo o edifício da redenção em Cristo desaba e Jesus morreu em vão. A mesma lógica pode ser aplicada a Gênesis 1: se não houve um Deus criando de fato, então a Bíblia começa com uma “estória” e não com a verdade, e quão confiável seria?


Por outro lado, compreender a “historicidade” aqui não significa que não haja elementos figurativos ou estilísticos. Por exemplo, quando Jó 38:7 diz que “as estrelas da alva juntas alegremente cantavam” na criação, entendemos isso poeticamente (estrelas não cantam literalmente, é uma metáfora para talvez seres celestiais louvando). Em Gênesis 1, há debate se o autor usou um arranjo literário de dias para ensinar a perfeição da obra de Deus (já mencionamos a correspondência de dias 1-3 com 4-6). Entretanto, mesmo que o texto tenha um arranjo artístico, não quer dizer que o conteúdo seja falso. Podemos compará-lo a um hino histórico: há cadência e paralelismo, mas ainda narra atos reais de Deus. Assim, muitos sustentam a verdade histórica fundamental de Gênesis 1– Deus realmente criou em “etapas” (sejam elas 24 horas ou longas eras) e na ordem geral apresentada – ainda que reconheçam a linguagem fenomênica (p.ex., “firmamento”, “separar águas de baixo e de cima” – que descreve o mundo na ótica humana antiga).


A “historicidade” de Gênesis 1 também implica que o autor pretendia registrar a origem do mundo de forma que seus leitores entendessem como factual dentro de sua cosmovisão. Ele não indica em nenhum lugar que é uma parábola ou um sonho; ao contrário, se conecta com genealogias e eventos posteriores, inserindo-se na narrativa contínua do Pentateuco. O próprio Jesus e os apóstolos, como dito, tomaram-no como fundamento real. Portanto, do ponto de vista da fé cristã ortodoxa, Gênesis 1 deve ser afirmado como historicamente verdadeiro, ainda que comunicando essa verdade com recursos estilísticos.


Do lado apologético, defender a historicidade de Gênesis 1 inclui responder às acusações de que seria apenas plágio de mitos antigos. Já vimos acima que, embora haja temas comuns, Gênesis diverge radicalmente do mito, a ponto de muitos estudiosos (até não religiosos) admirarem a originalidade e sobriedade do relato bíblico. Ele tem menos em comum com Enuma Elish do que as teorias do século XIX supunham. Além disso, o cuidado estrutural (como o uso repetido do número 7: sete palavras no versículo 1 em hebraico; “Deus” mencionado 35 vezes no capítulo; sete dias etc.) mostra um texto altamente intencional e refinado, o que é mais condizente com revelação teológica do que com vaga lenda oral. Em outras palavras, Gênesis 1 não tem o “caos literário” de um mito acumulado – ele é elegante e preciso, sugerindo inspiração e propósito.


Em última instância, a credibilidade histórica de Gênesis 1:1 está ligada à nossa confiança no próprio Deus que revela. Se cremos que Jesus ressuscitou e que Ele confirmava Moisés e os profetas, então Gênesis 1 faz parte desse pacote de confiança. Há lugar para diferentes interpretações dos detalhes, mas não para duvidar do fato central: “No princípio, Deus criou…”. O universo tem um Autor – esta é a verdade factual que Gênesis 1:1 proclama e que o restante da Bíblia assume (cf. Atos 17:24, Hebreus 11:3). Negá-la implicaria numa cosmovisão completamente distinta, incoerente com a fé cristã. Assim, apologeticamente, defendemos Gênesis 1:1 como alicerce verdadeiro sobre o qual o edifício da cosmovisão bíblica – criação, queda, redenção, consumação – está erigido.


Reflexões Pastorais e Devocionais


Além de seu rico conteúdo teológico e apologético, Gênesis 1:1 traz profundas lições devocionais para nossa vida com Deus. De fato, não é por acaso que a Bíblia começa por aqui – Deus quis que a primeira coisa que soubéssemos fosse que Ele é o Criador de tudo. A seguir, algumas reflexões edificantes que emergem desse texto:


  • Adoração e Reverência: “No princípio, Deus…”. A Bíblia não inicia debatendo a existência de Deus; ela simplesmente O apresenta em ação. Isso nos ensina que Deus é central e deve ter primazia em nosso pensamento e viver. Antes de pensarmos em nós mesmos, em nossas necessidades ou em qualquer outra coisa, devemos contemplar Deus e render-Lhe glória. A criação realizada por Ele motiva constante louvor: “Ó Senhor, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome!… Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos… que é o homem para que dele te lembres?” (Sl 8:1,3-4). Saber que Deus fez os céus e a terra nos leva a adorá-Lo pela grandeza do Seu poder e sabedoria manifestos na natureza. Cada pôr do sol, cada estrela no firmamento, é um convite à adoração do Criador. Ao recitarmos Gênesis 1:1, nossos corações devem encher-se de temor reverente, reconhecendo: “Este é o meu Deus, tão poderoso que apenas falando concebeu galáxias; tão sábio que ordenou leis perfeitas; tão bom que fez um mundo belo e adequado à vida.”. Essa reverência estabelece a postura correta para todo o restante da caminhada espiritual – começamos com Deus entronizado, nós prostrados em adoração.

  • Humildade e Dependência: Se Deus criou tudo, inclusive a nós (ainda que Gênesis 1:1 não mencione explicitamente o homem, ele está incluído no “terra” e será foco no v.26-27), então somos criaturas, obras das Suas mãos. Isso corrige nosso orgulho. Não somos autoexistentes nem autônomos; viemos do pó que Deus fez e ao pó retornaremos se Ele não nos sustentar. Paulo pregou aos filósofos atenienses: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe… a todos dá vida, respiração e tudo o mais” (At 17:24-25). Logo, dependemos dEle para cada batida do coração e molécula de ar. Essa consciência deve cultivar gratidão e fé diárias: “Obrigado, Senhor, porque existo por Teu querer; confio em Ti para suprir cada necessidade.”. Quando oramos “o pão nosso de cada dia nos dá hoje”, reconhecemos Deus como Criador-provedor que mantém a terra frutífera. Assim, Gênesis 1:1 nos ensina a viver em humilde dependência, abandonando a ilusão de autossuficiência. Também relativiza nossas pretensões – todos os impérios humanos, tecnologias e riquezas são ínfimos perante o Dono do universo. Por isso, só faz sentido vivermos para Ele e não centrados em nós mesmos.

  • Dignidade e Propósito Humanos: Ao mesmo tempo, ser criatura de Deus nos confere dignidade especial, pois não somos produto de mero acaso sem significado, mas feitura intencional do Criador. Deus pôs propósito em Suas obras. Gênesis 1 revelará que o homem foi criado à imagem de Deus (1:27), a coroa da criação. Mesmo sem chegar ainda nesse versículo, já em 1:1 sabemos que a existência humana não é um erro cósmico. Pastoralmente, isso fala muito ao coração moderno sedento de significado: você existe porque Deus quis que você existisse. Ele pensou em você desde o princípio (Ef 1:4) e inseriu você num universo criado por amor. Sua vida, portanto, tem valor e objetivo. Não precisamos buscar desesperadamente por um sentido inventado; podemos receber do Criador nosso chamado e missão. Para Adão e Eva seria encher a terra e sujeitá-la; para nós inclui glorificar a Deus e desfrutar dEle para sempre, usando nossos dons para cuidar da criação e amar ao próximo. Em resumo, Gênesis 1:1 nos dá uma identidade: criaturas de Deus – o que é humilde (não somos deuses) mas também honroso (somos obra de Deus, não dejetos cósmicos).

  • Confiança e Descanso: Saber que Deus criou tudo do nada inspira confiança absoluta nEle. Se Ele pôde fazer céus e terra, há algo em nossa vida que Ele não possa fazer ou reverter? Frequentemente, os profetas e salmistas apelam ao fato de Deus ser Criador para encorajar fé no Seu poder presente. Por exemplo, Isaías 40:26-31 diz: “Levantai os olhos e vede quem criou essas coisas… O Eterno Deus, o Senhor, o Criador dos confins da terra, não se cansa nem se fatiga… dá força ao cansado… os que esperam no Senhor renovam as forças.”. O raciocínio é: Aquele que criou estrelas às bilhões certamente pode cuidar de você; Ele não se esgota em poder ou sabedoria para socorrer. Assim, qualquer situação caótica em nossa vida pode ser transformada pela palavra de Deus, tal como o caos original foi transformado num cosmos belo. Podemos entregar nossas preocupações ao Criador fiel. Além disso, Gênesis 2:2-3 destacará que Deus descansou no sétimo dia, instituindo o sábado. Esse repouso divino se baseia na completude da criação. Devocionalmente, isso nos ensina a descansar em Deus e em Sua obra consumada. Espiritualmente, aponta também ao descanso da salvação consumada por Cristo (Hb 4:4,10). Mas mesmo no cotidiano, a ordem criação-trabalho-descanso nos convida a confiar no Provedor e dedicar tempo a Ele, não vivendo em ansiedade incessante.

  • Ordem e Beleza na Vida: “No princípio… criou” nos revela um Deus de ordem, intencionalidade e harmonia. Ele não é Deus de confusão (1Co 14:33), pois começou trazendo luz e separando águas, organizando tudo de maneira boa. Isso nos inspira a buscar ordem nas nossas vidas conforme o caráter de Deus. Por exemplo, Deus criou separações (luz/trevas, dia/noite, terra/mar) que permitiram um ambiente propício à vida. Analogamente, somos chamados a estabelecer na nossa vida boas distinções e limites (entre santo e profano, trabalho e descanso, etc.) e a valorizar a beleza e a bondade na criação. Podemos apreciar a beleza do mundo – um pôr-do-sol, uma floresta, o céu estrelado – como reflexos do Criador, e nosso coração adorar ao ver tais coisas. Há também uma ética ecológica implícita: se Deus criou a terra e viu que era boa, também confiando ao ser humano cuidado (Gn 1:28, 2:15), nós, como mordomos da criação de Deus, devemos tratar a natureza com respeito, evitando exploração destrutiva. Cuidar do meio ambiente é honrar o Criador e amar o próximo que depende dele.

  • Esperança de Nova Criação: O primeiro ato de Deus foi criar; e a Bíblia promete que Ele fará novos céus e nova terra (Is 65:17, Ap 21:1). Assim, Gênesis 1:1 lança a base para a esperança escatológica. O mesmo Deus que criou tudo sem esforço pode recriar e restaurar Sua criação caída. Para o cristão, isso se aplica também individualmente: quem criou o universo pode recriar nosso interior. Paulo escreve que quem está em Cristo é nova criação (2Co 5:17) – ou seja, a salvação é vista como um ato criador análogo ao do princípio. Matthew Henry faz uma bela analogia devocional: no início o mundo era “sem forma e vazio” até Deus dizer “Haja luz”; semelhantemente, o coração humano sem a graça de Deus é caos e trevas, mas quando a Palavra de Deus e o Espírito agem, fazem surgir luz e vida no pecador arrependido. Essa comparação nos lembra do nosso estado sem Cristo (escuridão, confusão) e do milagre da regeneração – um novo fiat lux (haja luz) dentro de nós. Todo cristão nascido de novo é prova viva do poder criador de Deus em operação hoje. Isso nos enche de humildade (eu era terra vazia até Deus me transformar) e de esperança pelos outros (Deus pode criar vida nova até no coração mais duro). Também antevemos o futuro: assim como a Bíblia começa com criação, termina com re-criação – um novo começo onde não haverá mais caos, trevas ou mar indomável (Ap 21:1, “o mar já não existe” simbolizando o fim do caos). Logo, meditar em Gênesis 1:1 nos aponta para o final glorioso onde o Criador completa Seu plano, e renova nossa confiança de que Ele faz tudo novo.

  • Prioridades e Sentido de Vida: Por fim, Gênesis 1:1 nos desafia a alinhar nossas prioridades com a realidade de que Deus é o princípio de tudo. Se Deus vem “no princípio” – antes de todas as coisas – Ele também deve ser “o princípio” em minha vida cotidiana. Jesus ecoou isso ao ensinar “buscai primeiro o Reino de Deus” (Mt 6:33). Se o universo começa com Deus, minha jornada diária também deve começar com Deus: em oração, em obediência, em entrega. Colocar Deus em primeiro lugar não é apenas mandamento, é reconhecer um fato – Ele é o Primeiro. Qualquer outra coisa que eu coloque no topo (dinheiro, eu mesmo, prazeres) é viver contra a corrente fundamental do ser. Como diz a sabedoria bíblica: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pv 9:10). Então, Gênesis 1:1 pressiona cada um de nós a perguntar: Deus está verdadeiramente no princípio de meus planos, sonhos e decisões? Estou construindo minha vida sobre o alicerce dEle como Criador e Senhor? Se sim, haverá sentido e estabilidade, pois está em conformidade com a ordem do universo; se não, é como ignorar a gravidade – uma hora tudo desmorona.


Concluindo, a exposição de Gênesis 1:1 não é apenas um exercício intelectual, mas um chamado à adoração sincera, à confiança filial e à obediência fiel. O mesmo Deus que no princípio criou os céus e a terra continua reinando sobre a criação e busca relacionamento conosco, as criaturas feitas para refletir Sua glória. Que possamos responder a essa revelação inicial da Escritura com louvor reverente e entrega de nossas vidas ao Criador. Como proclama Apocalipse 4:11: “Digno és, Senhor nosso e Deus, de receber a glória, a honra e o poder, porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade elas vieram a existir e foram criadas.” Amém.

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