Descendência de Caim e civilização | Gênesis 4:17-24
- João Pavão
- 22 de ago.
- 6 min de leitura

A narrativa dá um salto para focar na linhagem de Caim. Mesmo sob punição, Caim teve descendentes. “E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Enoque.” Aqui surge a clássica pergunta: de onde veio a mulher de Caim? A resposta provável é que se tratava de uma de suas irmãs (ou sobrinhas). Gênesis 5:4 menciona que Adão gerou “filhos e filhas” além de Caim, Abel e Sete. No início da humanidade, irmãos casaram-se entre si – algo necessário então, embora posteriormente proibido na Lei (Lv 18:9). Assim, Caim casa-se, tem um filho chamado Enoque (não confundir com o Enoque piedoso da linhagem de Sete, em Gn 5:18). O nome “Enoque” (Hanokh em hebraico) significa “dedicado” ou possivelmente “iniciado”/“treinado”. Interessante, o texto diz que Caim “estava construindo uma cidade, e chamou o nome da cidade conforme o nome de seu filho, Enoque”. Este breve verso levanta questões: Como Caim, condenado a ser errante, constrói uma cidade? Há algumas possibilidades discutidas: (1) Pode ser que, apesar de condenado a vagar, Caim tenha tentado se fixar em desafio à sentença divina, iniciando a construção de um assentamento urbano para buscar segurança e permanência. (2) Outra leitura (apoiada por alguns estudiosos) propõe que Enoque, o filho, foi o construtor da cidade, e não Caim – dependendo de como se traduz o sujeito da frase. Alguns sugerem até emendar o texto para “Ele (Enoque) tornou-se construtor de uma cidade”. Seja como for, o ponto é que aqui temos o primeiro vislumbre de urbanização: uma cidade, ainda incipiente, nasce com o nome do filho de Caim. Isso indica o início da organização social mais complexa além do núcleo familiar rural. A cidade de Enoque, porém, também carrega a marca de origem de seu fundador ancestral – um homem afastado de Deus. A narrativa parece contrastar implícitamente os esforços humanos de civilização com a realidade do pecado: Caim funda a primeira cidade, mas ele o faz como um fugitivo marcado.
Segue-se então uma genealogia resumida dos descendentes de Caim até a sétima geração (contando Adão como primeira, Caim segunda, Enoque terceira, etc., chegando a Lameque na sétima de Adão). Após Enoque, vem seu filho Irad; Irad gera Meujael; Meujael gera Metusael; Metusael gera Lameque (v.18). Não temos detalhes sobre esses primeiros nomes além da sonoridade que talvez indique algo (por exemplo, Meujael pode significar “Ferido/Eliminado por Deus” e Metusael “Homem de Deus” ou “Homem de Sel”, mas não é seguro). O foco do texto é Lameque, sobre quem há mais informações, indicando sua importância. Lameque inaugura duas coisas notáveis na narrativa:
Poligamia: “Lameque tomou para si duas esposas” (v.19). Os nomes delas são Ada e Zilá. Este é o primeiro registro bíblico de poligamia – Lameque quebra o padrão monogâmico estabelecido no Éden de um homem e uma mulher (Gn 2:24). Provavelmente, essa menção não é casual; implica que a corrupção social está aumentando. Lameque, descendente de Caim, não se contenta com uma só esposa, mas multiplica esposas, talvez por luxo ou desejo de prole numerosa. A poligamia logo traria conflitos e sofrimentos nas histórias bíblicas, indicando que não era o ideal de Deus, mas tolerada em certa medida nas culturas caídas.
Avanço cultural: Os filhos de Lameque (com suas duas esposas) são apresentados como pioneiros de ofícios:
De Ada nasceu Jabal (v.20). Ele é descrito como “pai dos que habitam em tendas e possuem gado”. Jabal se torna o ancestral dos pastores nômades, aqueles que viviam em tendas migratórias com rebanhos. Isso indica o desenvolvimento da pecuária nômade como modo de vida, talvez distinguindo-se da agricultura fixa.
O irmão de Jabal, filho de Ada, é Jubal (v.21). Ele é dito ser “pai de todos os que tocam harpa e flauta” – ou seja, o fundador das artes musicais. Jubal introduz a música instrumental (cordas e sopro), mostrando que já nos primórdios havia criatividade artística e entretenimento/culto através da música.
De Zilá, a outra esposa, nasceu Tubalcaim (v.22). Ele é descrito como “forjador (artífice) de todo instrumento cortante de bronze e de ferro”. Tubalcaim é, portanto, o pioneiro da metalurgia, dominando técnicas de trabalhar metais (cobre/bronze e ferro). Isso é significativo, pois aponta para um avanço tecnológico – a Idade do Bronze/Ferro nascendo na linha de Caim. Curiosamente, o nome Tubalcaim incorpora “Caim”, possivelmente significando “Caim forjador” ou “descendente de Caim do metal”, imortalizando o ancestral no ofício.
Menciona-se também Naamá, irmã de Tubalcaim (v.22). Não há informação sobre ela, mas é raro o nome de uma mulher aparecer em genealogias breves, o que sugere que Naamá era conhecida pelos leitores antigos. Algumas tradições posteriores especulam que Naamá tornou-se esposa de Noé (isso não está na Bíblia, apenas em relatos extrabíblicos), mas o texto não diz. Pode ser que Naamá seja citada apenas para completar o quadro familiar de Lameque ou talvez porque seu nome tivesse algum significado (Naamá significa “agradável”).
Esses desenvolvimentos mostram o surgimento de pilares da civilização humana: vida urbana (cidade de Enoque), organização familiar/clânica complexa (poligamia), agro-pastoreio, música/artes e ferramentas/metais. Gênesis indica, assim, que a descendência de Caim contribuiu para o progresso cultural e material da humanidade. Entretanto, é notável que todo esse progresso técnico-artístico não é acompanhado de progresso moral ou espiritual – pelo contrário, a corrupção aumenta. A própria estrutura do texto sugere isso: repare que Lameque (sétima geração de Adão via Caim) concentra tanto os avanços (seus filhos) quanto a exacerbação do pecado (seu caráter violento). Há possivelmente uma mensagem teológica aqui: a cultura humana prospera, mas está manchada pela natureza caída. O autor bíblico parece querer mostrar que conquistas como cidades, criação de gado, artes e tecnologia, embora valiosas, nasceram em um contexto separado de Deus, pela linhagem do homicida Caim. Cassuto, por exemplo, sugere que o narrador está desmitologizando tradições pagãs – onde os invenções culturais vinham de deuses ou semi-deuses – ao atribuir essas inovações a meros humanos (descendentes de Caim), enfatizando assim que a técnica é fruto do engenho humano, não dádiva de deuses. Contudo, vinculando-as à linha de Caim, indica-se que mesmo as maiores realizações humanas não eliminam o pecado; pelo contrário, o pecado permeia a cultura (tecnologia, arte e sociedade também podem ser usadas para o mal).
Depois de listar os filhos, a narrativa foca novamente em Lameque, que profere uma espécie de poema/cântico arrogante às suas esposas. Ele diz: “Ada e Zilá, ouvi minha voz; vós, mulheres de Lameque, escutai o meu dito: Matei um homem porque me feriu; e um jovem porque me machucou. Se Caim há de ser vingado sete vezes, Lameque, setenta e sete.” Este poema (provavelmente um cântico antigo preservado) é breve, mas revelador. Nele, Lameque gaba-se para suas esposas de sua violência extrema. Ele aparentemente matou dois indivíduos (ou um indivíduo descrito de duas maneiras: “um homem por me ferir, um rapaz por me pisar/ferir”). Pode ser interpretado que Lameque matou alguém que o feriu levemente (por uma contusão ou golpe), insinuando vingança desproporcional – ele retribuiu um machucado com homicídio. Ele então exulta que, se a proteção de Deus sobre Caim era de sete vezes, ele, Lameque, se vinga “setenta e sete vezes” (ou “setenta vezes sete”, uma expressão de vingança completa e exorbitante). Em outras palavras, Lameque está dizendo: “Sou muito mais impiedoso e feroz que Caim. Ninguém ouse me atacar, pois retribuirei com vingança muito maior!” É um cântico de espada, celebrando a violência e a intimidação. Isso mostra quão longe a depravação chegou na linhagem de Caim: o tataraneto de Caim supera o antepassado em crueldade e orgulho. Enquanto Caim precisou da proteção de Deus por temer vingança, Lameque se coloca ele mesmo como o agente da vingança impiedosa. Nota-se também a rima e estrutura poética no original, com jogos de palavras e o uso intensivo do pronome “meu/minha” – evidenciando o foco egoísta de Lameque. Sua fala está repleta de “eu” e “mim”, revelando ego e sede de poder.
Teologicamente, o cântico de Lameque funciona como clímax da corrupção pré-diluviana: ele representa a glorificação da violência e da vingança ilimitada, o total oposto do caráter divino (que valoriza a justiça equilibrada – olho por olho, dente por dente – e, mais adiante em Cristo, ensina o perdão ilimitado em vez da vingança ilimitada, cf. Mt 18:21-22). A jactância de Lameque de vingança “77 vezes” contrasta com a legislação posterior de Êxodo 21: “vida por vida, ferida por ferida, golpe por golpe” (lei de talião), bem como com a instrução de Jesus de perdoar “70 vezes 7” (Mt 18:22), que inverte a maldição de Lameque em graça ilimitada. O editor de Gênesis possivelmente colocou as palavras de Lameque aqui para enfatizar que a linha de Caim estava sob julgamento divino, caminhando de mal a pior, e isso apontava para um desfecho de juízo. De fato, ao finalizar o relato dessa genealogia, o narrador já insinua “o desastre por vir” – isto é, o dilúvio no tempo de Noé, como consequência da perversidade humana. Observemos também que Lameque é a sétima geração desde Adão via Caim, e na simbologia bíblica o sétimo descendente às vezes ressalta um aspecto (aqui, compleção da impiedade). Em contraste, na linhagem de Sete (cap. 5), o sétimo a partir de Adão será Enoque (piedoso, que “andou com Deus”). Assim, as duas linhagens (Caimita e Setita) são colocadas em contraponto: a de Caim atinge o ápice da violência em Lameque; a de Sete atinge o ápice da comunhão com Deus em Enoque, preparando para a salvação através de Noé.




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