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Aliança com Abimeleque | Gênesis 21:22–34

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 3 de set.
  • 29 min de leitura
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O relato de Gênesis 21:22–34 narra a aliança estabelecida entre Abraão e Abimeleque, rei de Gerar, a respeito de um poço em Berseba. Trata-se de uma breve história inserida logo após o clímax do nascimento de Isaque (Gn 21:1–21) e antes do grande teste do sacrifício de Isaque (Gn 22) – funcionando quase como um intervalo de calmaria na narrativa. O texto inicia com a expressão “naquele tempo” (verso 22), a qual conecta este episódio com eventos anteriores, embora de forma não totalmente explícita. Alguns estudiosos entendem que “naquele tempo” se refira ao período do capítulo 20 (quando Abraão tivera seu primeiro encontro com Abimeleque). Nessa linha, Coats sugere que o tratado de Berseba ocorreu por volta da mesma época em que Abimeleque devolveu Sara a Abraão em Gerar. Já outros, como o comentarista U. Cassuto (mencionado por Jacob), argumentam que a frase se relaciona à ocasião do desmame de Isaque (descrita imediatamente antes, em Gn 21:8) – o que explicaria por que Abimeleque e seu comandante Ficol “vieram” a Abraão: eles já estariam na região para o banquete de desmame de Isaque. Uma terceira sugestão, de Nahum Sarna (e apoiada por Calvino), é que esses eventos ocorreram logo após Abraão despedir Agar e Ismael (Gn 21:14). Em todo caso, a expressão “naquele tempo”, usada também em Gn 38:1, parece indicar um episódio à parte da sequência principal dos eventos. Assim, o narrador pode estar introduzindo aqui um incidente lateral – possivelmente para dar uma pausa narrativa entre o júbilo do nascimento de Isaque e a provação dramática que virá no capítulo 22.


Do ponto de vista literário, Gênesis 21:22–34 consiste em um único episódio com uma cena contínua em Berseba. A estrutura interna pode ser delineada pela alternância de falas entre Abimeleque e Abraão, intercaladas por breves descrições narrativas:


  • Introdução (v.22a): Abimeleque e Ficol vêm falar com Abraão, situando a cena em “naquele tempo”.

  • Primeiro discurso de Abimeleque (v.22b–23): O rei propõe um juramento de não-agressão mútua, reconhecendo a bênção divina sobre Abraão.

  • Resposta de Abraão (v.24): Abraão concorda sucintamente em jurar.

  • Desenvolvimento: Reclamação de Abraão (v.25): Abraão aproveita para queixar-se sobre um poço tomado por servos de Abimeleque.

  • Segundo discurso de Abimeleque (v.26): O rei alega ignorar o incidente do poço.

  • Ação: Aliança formalizada (v.27): Abraão entrega gado a Abimeleque e firmam um pacto.

  • Ação: Sete cordeiras separadas (v.28): Abraão distingue sete cordeiras à parte, gesto que desperta dúvida em Abimeleque.

  • Terceiro discurso de Abimeleque (v.29): Ele pergunta o significado das cordeiras.

  • Explicação de Abraão (v.30): As sete cordeiras servirão de testemunho de que Abraão cavou o poço disputado.

  • Conclusão do acordo (v.31–32): O lugar é nomeado Berseba (“Poço do Juramento/Sete”) e Abimeleque retorna à terra dos filisteus.

  • Epílogo devocional (v.33): Abraão planta um tamarisco em Berseba e invoca o nome de Yahweh El-Olam (SENHOR, “Deus Eterno”).

  • Fecho narrativo (v.34): “Abraão permaneceu na terra dos filisteus por muitos dias”, indicando um período prolongado de paz naquela região.


Essa fluidez, contudo, apresenta dificuldades interpretativas. Especialistas notam certa incoerência interna ou sobreposição de camadas no texto. Por exemplo, a transição do verso 24 para o 25 é abrupta: Abraão mal acaba de jurar concordando com o pacto geral, e imediatamente passa a confrontar Abimeleque sobre o problema do poço. Fica incerto se os versos 25–26 descrevem algo ocorrido antes do juramento (como um flashback explicando porque Abraão respondeu secamente) ou se ocorrem depois, como uma condição levantada durante as negociações. Outra tensão aparece na explicação do nome Berseba: os versos 31 e 32 associam o nome ao juramento (shevu’ah em hebraico), enquanto os versos 28–30 parecem ligá-lo às sete (sheva‘) cordeiras oferecidas – uma espécie de dupla etimologia no próprio texto.


Devido a essas repetições e aparentes incoerências, teóricos da crítica das fontes têm sugerido que nossa passagem pode ser uma combinação de duas tradições diferentes. Diversas hipóteses foram propostas: Gunkel, por exemplo, atribuiu os trechos sobre juramento/aliança (vv.22–24, 27, 31) a uma fonte (provavelmente “E”), enquanto as partes sobre o poço disputado e as sete cordeiras (vv.25–26, 28–30, 32–34) viriam de outra fonte (“J”). Van Seters, por sua vez, sugeriu que a narrativa original seria apenas a disputa do poço seguida de juramento (vv.25–26, 28–31a), como continuação direta do capítulo 20, e que os vv.22–24, 27, 31b–34 teriam sido acréscimos posteriores do redator jahwista. Westermann comparou com o episódio análogo de Isaque em Gn 26:26–33 e concluiu que a explicação de Berseba em Gn 26 seria mais antiga, enquanto Gn 21:31b (etimologia do nome) teria sido secundariamente importada de lá; ele considera vv.25–26, 28–31a como expansões tardias, restando como núcleo primário apenas os vv.22–24, 27.


Contudo, essas reconstruções variam muito, refletindo incerteza nos critérios de divisão. Não há consenso definido, e muitos comentaristas preferem ler o texto como o produto final coerente de uma teologia intencional. Nahum Sarna, por exemplo, argumenta que a perícope foi deliberadamente construída com unidade e propósito, especialmente na posição em que se encontra. Ele observa padrões numéricos e temáticos sutis: o nome Abraão e o nome Abimeleque ocorrem sete vezes cada no relato (reforçando o tema do “sete” já presente nas cordeiras). Além disso, Sarna destaca como o episódio pressupõe o conhecimento do encontro anterior em Gerar (Gn 20) – espera-se que o leitor lembre quem é Abimeleque, e como ele havia agido corretamente com Abraão e Sara. De fato, há paralelos evidentes entre os dois capítulos: em Gn 20 Abimeleque toma Sara indevidamente e depois a devolve inocentando-se; aqui, seus servos tomam indevidamente um poço de Abraão, e Abimeleque igualmente protesta inocência ao devolver os direitos. Em ambos os casos, Abimeleque se mostra íntegro porém desinformado dos fatos, seja sobre o casamento de Sara ou sobre as ações de seus empregados. Nos dois relatos ocorre troca de presentes (Abimeleque dera ovelhas e bois a Abraão em Gn 20:14, e agora Abraão dá ovelhas e bois a Abimeleque em 21:27) com a mesma expressão hebraica “tomou… e deu” usada em ambos. Esses ecos narrativos intencionais sugerem que o redator final quis que víssemos Gn 21:22–34 como um complemento ao capítulo 20, mostrando um novo encontro entre os dois personagens, desta vez resolvido em cooperação pacífica e benefício mútuo (em contraste com o mal-entendido anterior). Assim, independentemente de teorias de fonte, nossa tarefa é compreender o sentido teológico deste episódio tal como transmitido no texto final.


Uma última observação contextual: há clara semelhança entre esta passagem e o futuro relato de Isaque com Abimeleque (provavelmente um descendente ou sucessor homônimo) em Gênesis 26:12–33. Nos dois casos, um patriarca (Abraão/Isaque) faz acordo de paz com um Abimeleque acompanhado de Ficol, culminando na nomeação do poço de Berseba após juramento. Devido a isso, alguns críticos veem Gn 21:22–34 e Gn 26:26–33 como duplicatas da mesma tradição contadas de formas diferentes (um exemplo de “histórias paralelas” atribuídas a fontes distintas). No entanto, diferenças significativas sugerem que são eventos diversos: em Gn 21 o foco é um poço cavado por Abraão e tomado por servos de Abimeleque; já em Gn 26, os servos de Isaque disputam vários poços até chegarem a um acordo em Berseba. Ademais, é bem possível que “Abimeleque” não seja um nome próprio único, mas sim um título dinástico dos reis filisteus (similar a “Faraó” no Egito) usado por diferentes governantes. O próprio texto de Gn 26:1 menciona “Abimeleque, rei dos filisteus, em Gerar” muitos anos depois da época de Abraão, sugerindo ou um reinado muito longo (improvável) ou a repetição do título real. O general Ficol poderia igualmente ser um título ou nome recorrente de comando (poderia até designar um posto, assim como “Faraó” designa o rei). Logo, em vez de contradição, a repetição desses nomes pode indicar continuidade histórica (uma tradição familiar ou política mantida na região de Gerar). O redator bíblico aparentemente não viu problema em haver dois tratados similares em Berseba – possivelmente quis mostrar que Isaque revivenciou situações de seu pai, confirmando as bênçãos divinas em cada geração (Abraão, depois Isaque também faz pacto de paz com vizinhos, etc.). Em suma, o episódio de Gn 21:22–34, lido em seu contexto canônico, destaca-se como um vislumbre da vida cotidiana pacífica do patriarca, consolidando promessas divinas por meio de relações diplomáticas, antes que o drama volte a subir no capítulo seguinte.


Deus é com Abraão: Proposta de Aliança e Juramento


No início do episódio (v.22), Abimeleque, acompanhado de seu comandante militar Ficol, vem ao encontro de Abraão para propor um pacto. Abimeleque já aparecera no capítulo 20 como rei de Gerar, território ao sul de Canaã. Seu nome em hebraico ('Avimelekh) significa “meu pai é rei”, mas como já mencionado, pode ter sido um título hereditário. Ficol (Pikol) é identificado como “chefe do exército” (literalmente sar-tzava, comandante das tropas) – o que indica que Abimeleque veio escoltado por autoridade militar, sugerindo a importância estratégica dessa reunião. A presença do general Ficol implica que Abraão era considerado uma figura poderosa: um clã seminômade com muitos servos armados (lembremos que Abraão mobilizara 318 homens em Gn 14:14). Abimeleque reconhece, portanto, que Abraão é uma força a ser respeitada e com quem vale a pena firmar amizade.


A primeira fala de Abimeleque é notável: “Deus é contigo em tudo o que fazes” (v.22) – um testemunho explícito do pagão a respeito do patriarca. Abimeleque deve ter observado, ao longo do tempo posterior ao incidente de Sara, que tudo ia bem para Abraão. De fato, possivelmente alguns anos tinham se passado desde o capítulo 20 (estima-se até uns 4 anos). Nesse intervalo, Abraão permaneceu morando na região do Neguebe, nas proximidades de Gerar, e Deus o abençoara: seus rebanhos e riquezas cresceram, e sobretudo nasceu Isaque, o “filho do milagre”, cujo desmame havia sido celebrado (Gn 21:1–8). Tudo isso certamente correu “boca a boca” entre os habitantes locais – a chegada de um herdeiro na velhice de Abraão e Sara teria sido um assunto que causou comentários entre os vizinhos.


Abimeleque, portanto, vem convencido de que a mão de Deus está sobre Abraão. Essa frase “Deus é contigo em tudo o que fazes” (em hebraico: Elohim ‘imkha bekhol asher attah ‘oseh) ecoa posteriormente na vida dos patriarcas: será dita acerca de Isaque (pelos próprios homens de Abimeleque, em Gn 26:28), sobre Jacó (por Labão, em Gn 30:27) e sobre José (pelo seu senhor egípcio, em Gn 39:3). É um reconhecimento de prosperidade abençoada, de sucesso evidente que só se explica pela presença do Divino. Na Bíblia, essa expressão aparece quando alguém está cumprindo o propósito de Deus e, portanto, experimenta Sua assistência em cada empreitada. No caso de Abraão, o texto não especifica a que sucesso Abimeleque se referia – poderia ser à intercessão eficaz de Abraão pela casa de Abimeleque (Gn 20:17, já que Abimeleque e sua família foram curados e puderam ter filhos novamente), ou ao simples fato de Abraão ter se estabelecido com estabilidade e tido um filho. De qualquer forma, Abimeleque admira e talvez teme essa bênção divina sobre Abraão. Com isso, ele inicia a conversa propondo uma aliança: “Agora, pois, jura-me aqui por Deus que não agirás falsamente comigo, nem com meus filhos, nem com meus descendentes; trata-me com a mesma bondade com que te tenho tratado, na terra em que tens habitado” (v.23).


Vemos que Abimeleque deseja formalizar um pacto de não-agressão e lealdade. Ele pede que Abraão jure por Deus (o Deus de Abraão, Yahweh, a quem Abimeleque reconhece como garantidor) que não o tratará enganosamente (lo tašqor, lit. “não mentirás/enganarás”) e que retribuirá a benignidade (ḥesed) que ele, Abimeleque, demonstrou. Aqui há clara referência ao episódio anterior: Abimeleque lembra Abraão de que ele o tratou bem – de fato, em Gn 20:14–15 Abimeleque devolveu Sara ilesa, deu presentes (ovelhas, bois, servos) e permitiu que Abraão habitasse em suas terras. Essa generosidade agora é evocada: Abimeleque espera reciprocidade. No conceito cultural do Antigo Oriente e da Bíblia, ḥesed (traduzido por “bondade”, “benevolência” ou mesmo “lealdade”) é uma atitude de fidelidade mútua, frequentemente base de alianças e relacionamentos pactuais. Abimeleque diz em suma: “Assim como eu fui leal e bondoso contigo, seja também comigo e com minha posteridade”. Ele está pensando a longo prazo – note que menciona “meus filhos e netos” (literalmente “meu filho e meu neto” no v.23, indicando descendência). Ou seja, deseja um tratado duradouro, entre suas casas através das gerações, assegurando que as relações entre os descendentes de Abimeleque e os descendentes de Abraão sejam pacíficas.


É significativo Abimeleque demonstrar essa preocupação com o futuro de Abraão, visto que naquele momento Abraão tinha apenas um filho legítimo (Isaque, ainda criança). Isso indica que Abimeleque crê nas promessas dadas a Abraão – ele assume que Abraão terá numerosos descendentes, mesmo que atualmente essa promessa dependa de um único menino. Assim, paradoxalmente, um rei filisteu é mostrado exibindo fé (ainda que incipiente) no destino grandioso de Abraão, enquanto o próprio patriarca havia rido em dúvida anos antes ao ouvir que teria um filho de Sara. Essa cena cumpre em parte o que Deus dissera: “engrandecerei o teu nome” (Gn 12:2). Agora um governante local busca ativamente ser amigo de Abraão por reconhecer que Deus está com ele e que sua família perdurará. De certo modo, Abraão já começou a “se tornar uma bênção” às nações ao redor (cf. Gn 12:2–3), pois vizinhos querem associar-se a ele para compartilharem de sua paz e prosperidade. Há aqui um princípio: “É bom estar nas graças daqueles que estão nas graças de Deus”, como comenta Matthew Henry – Abimeleque percebe que aliar-se ao servo de Deus pode trazer benefício a ele próprio e a seu povo. Lembra o dito de Zacarias 8:23: “Nós iremos convosco, porque temos ouvido que Deus é convosco”.

Outro detalhe: Abimeleque pede que Abraão não lide falsamente com ele. Essa solicitação provavelmente reflete a lembrança do incidente constrangedor em Gerar, quando Abraão mentiu dizendo que Sara era sua irmã, quase causando grande pecado na casa do rei (Gn 20:2,9–10). Abimeleque havia repreendido Abraão severamente por aquela trapaça (Gn 20:9–10) e deve ter ficado com certa desconfiança do patriarca. Agora, ao firmar aliança, ele explicitamente exige sinceridade e jogo limpo daqui para frente. É como se dissesse: “Abraão, eu te perdôo pelo engano passado, mas me prometa diante de Deus que nunca mais farás isso comigo ou com meus descendentes”. Isso mostra como uma falta moral (no caso, a mentira de Abraão) pode afetar a credibilidade do crente perante os de fora. Abraão tinha manchado um pouco seu testemunho, de modo que seus vizinhos agora buscam garantias de sua honestidade. Wiersbe destaca: “O fato de [Abimeleque] querer uma garantia da fidelidade de Abraão indica que a falsidade do patriarca levara à falta de confiança por parte de seus vizinhos”. Mesmo depois de restaurado a comunhão com Deus, Abraão precisou reconquistar a confiança dos homens. Felizmente, Abimeleque ainda reconhece a presença divina em Abraão e não rompe relações; pelo contrário, busca formalizar um pacto. Aqui aprendemos que, embora nossas falhas possam prejudicar nosso testemunho, uma vida restaurada e abençoada por Deus pode eventualmente mudar a percepção dos que nos cercam. Abraão, após seu lapso de fé, “colocou sua vida em ordem com Deus e começou de novo”, e agora recebe este testemunho positivo de Abimeleque.

Diante da longa e polida proposta de Abimeleque, a resposta de Abraão (v.24) é surpreendentemente curta e seca: “Eu jurarei”. Em hebraico, ele responde apenas duas palavras: ’anokhi ’iššave‘a – literalmente “Eu, sim, juro”. O contraste é nítido: Abimeleque se alongou num discurso incluindo apelo religioso, referências ao passado e ao futuro, enquanto Abraão responde laconicamente com um monossílabo afirmativo. Essa brevidade suscita especulações: Estaria Abraão relutante ou pouco entusiasmado com o pacto? Sentiu-se ofendido pela alusão ao seu erro passado? Ou talvez estivesse distraído, pensando em outro assunto pendente (o poço)? O texto não explica, mas deixa no ar a estranheza dessa resposta minimalista. Alguns enxergam aqui um trocadilho intencional: a palavra “jurarei” (’iššave‘a) deriva da mesma raiz de Berseba (Be’er Ševa‘ – poço de “sete”/šéva‘ ou poço do “juramento”/ševu‘á). Assim, Abraão literalmente diz “eu me sete-arei”, isto é, “vou prestar juramento”, fazendo eco ao tema do sete que dominará a cena. De fato, a economia de palavras de Abraão contrasta com a loquacidade de Abimeleque (“o sempre loquaz Abimeleque”, brinca Wenham), talvez caracterizando Abraão aqui como reservado ou cauteloso.


É possível que Abraão tenha respondido de forma curta porque tinha algo importante em mente para tratar. O versículo seguinte mostra que Abraão aproveita a ocasião para mudar de assunto e abordar uma queixa pessoal pendente. Sua resposta rápida “eu juro” pode significar “Ok, concordo com tua aliança – porém, tem um problema que preciso resolver primeiro…” (que é exatamente o que ele faz no v.25). Assim, a narrativa cria certo suspense: por que Abraão não responde com a mesma cordialidade? O que o estaria incomodando? Isso nos prepara para a revelação do conflito não resolvido sobre o poço.


A Reclamação de Abraão: Disputa por um Poço


Tão logo consente em fazer o juramento de amizade, Abraão traz à tona uma querela latente: “Abraão repreendeu Abimeleque por causa de um poço de água que os servos de Abimeleque haviam tomado pela força” (v.25). Aqui descobrimos que havia ocorrido um incidente de usurpação de propriedade: os empregados de Abimeleque haviam se apropriado indevidamente de um poço cavado por Abraão. Água é um recurso preciosíssimo no clima árido do Neguebe, e poços tinham grande valor econômico e estratégico. Mesmo hoje, nessa região, a gestão de água é crucial (embora atualmente existam sistemas modernos de irrigação). Nos tempos de Abraão, encontrar e cavar um poço era tarefa árdua; quem conseguisse água precisava defendê-la. Poços desprotegidos podiam ser roubados por tribos rivais, ou até entulhados para prejudicar inimigos (como farão os filisteus com os poços de Abraão em Gn 26:15).


A linguagem usada indica que os servos de Abimeleque “tomaram à força” o poço (do hebraico gazal – tirar algo de alguém com violência). Esse verbo é forte, significando roubar com agressão ou usurpar pela força do mais forte. Aparece, por exemplo, em Levítico 19:13 para proibir tirar algo do próximo injustamente, ou em Miquéias 2:2 para denunciar aqueles que usurpam casas e campos de outros. Ou seja, do ponto de vista de Abraão, houve injustiça e abuso de poder por parte de gente de Gerar contra ele, um estrangeiro residente.


O texto original hebraico tem uma peculiaridade sintática nesse verso 25. Literalmente, ele diz: “E repreendeu Abraão a Abimeleque...” – numa ordem de palavras incomum (o verbo antes do sujeito “Abraão”), o que alguns gramáticos interpretam como um pretérito frequentativo em narrativa histórica. Isso sugere que Abraão costumava repreender Abimeleque a respeito do poço, ou seja, já o havia feito mais de uma vez. Poderíamos traduzir, então, “Abraão vinha reclamando com Abimeleque”. Essa construção dá a entender que não era a primeira vez que Abraão tentava resolver essa questão, talvez enviando mensagens ou intermediários anteriormente, mas sem sucesso. De fato, Derek Kidner comenta: “O verbo hebraico dá a ideia de que Abraão teve de fazer a queixa várias vezes. Talvez Abimeleque fosse perito na tática de evasivas”. Ou seja, Abimeleque podia estar postergando ou fingindo ignorar o assunto, até que Abraão resolveu confrontá-lo pessoalmente nesta reunião.


Essa possibilidade – de que Abraão já vinha tentando resolver pacificamente – mostra seu senso de justiça e paciência. Ele não havia declarado guerra ou retaliado pela força; tampouco desistira de seu direito. Esperou um momento oportuno (agora, diante do próprio rei e sob a negociação de aliança) para expor o problema de uma vez por todas. Há sabedoria prática nisso: “Se teu irmão pecar contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele só” (Mt 18:15). Abraão fala diretamente com Abimeleque, de forma franca, buscando uma solução pacífica, sem esconder o ressentimento. O comentário de Matthew Henry destaca a brandura de Abraão ao tratar do tema: ele expôs o ocorrido sem briga, “com a brandura da sabedoria”, a fim de resolver corretamente a questão. É um bom exemplo de confrontação respeitosa: Abraão não explode nem faz exigências arrogantes; apenas “repreende” Abimeleque relatando o fato e implícita ou explicitamente pedindo providências.


No verso 26, Abimeleque reage com uma resposta defensiva porém plausível: “Eu não sei quem fez isso; tu não mo fizeste saber, e nem tampouco ouvi falar disso senão hoje.” Em outras palavras, Abimeleque alega total ignorância do ocorrido. Ele se isenta em três pontos: (1) “Não sei quem poderia ter feito tal coisa” – nega ter autorizado ou sabido da ação de seus servos; (2) “Também tu não me informaste” – devolve a Abraão a observação de que ele não recebera nenhuma queixa formal antes (talvez Abraão reclamara a subordinados mas não diretamente a Abimeleque? Ou Abimeleque afirma que não houve comunicação oficial); (3) “Nem ouvi falar disso até hoje” – reforça que só está tomando ciência naquele momento. Essa tríplice defesa lembra a atitude de Abimeleque em Gn 20, quando protestou inocência a Deus dizendo: “na sinceridade do coração e na minha inocência fiz isto... não sabia que ela era casada” (Gn 20:5). Assim como lá Deus confirmou que Abimeleque agiu sem intenção, aqui também não temos razão para duvidar de sua palavra. O retrato bíblico de Abimeleque é o de um governante bem-intencionado porém nem sempre ciente de tudo que ocorre em seu reino. Talvez seus servos tivessem agido por conta própria, abusando da ausência de Abraão ou de sua fraqueza política, sem reportar ao rei. De todo modo, Abimeleque parece sinceramente surpreso e talvez um pouco agastado por Abraão não ter trazido antes a questão diretamente (“você não me contou”).


É interessante que o narrador não relata nenhuma promessa explícita de Abimeleque de corrigir o problema. Ele apenas se defende. Entretanto, o fato de Abraão se dar por satisfeito e prosseguir para selar a aliança sugere que Abimeleque deve ter dado alguma garantia tácita de não mais haver disputa sobre o poço. Possivelmente, Abimeleque concordou em incluir o status do poço no tratado de paz ou reparou o erro de outra forma implícita. De qualquer forma, a essa altura Abraão parece convencido da boa fé do rei. “Então, Abraão tomou ovelhas e bois e os deu a Abimeleque” (v.27) como gesto de confirmação da amizade, e os dois “fizeram um pacto” ali mesmo.


Firmando a Aliança: Presentes, Sacrifício e Sete Cordeiras


O verso 27 descreve o rito formal da aliança: Abraão oferece a Abimeleque alguns animais do rebanho (ovinos e bovinos), e ambos “fizeram um concerto” (heb. karat berith, literalmente “cortaram uma aliança”). A expressão “cortar uma aliança” remonta à prática antiga de selar pactos mediante o sacrifício de animais – como visto em Gênesis 15, quando Deus “cortou” uma aliança com Abraão passando entre animais divididos (cf. Gn 15:9–18). Aqui em Gn 21 não é narrado o ritual completo, mas é provável que as ovelhas e bois dados por Abraão fossem sacrificados para sancionar o acordo. Isso era comum em tratados do Oriente Próximo: as partes passavam entre as partes dos animais mortos, simbolizando que assim lhes acontecesse (morte) se quebrassem o pacto. De fato, Abraão e Abimeleque “cortaram” a aliança, o que sugere esse elemento sacrificial implícito. Warren Wiersbe comenta: “Dessa vez, os homens foram além de um simples juramento: fizeram uma aliança que incluía o abate de animais... Ao andar no meio das carcaças, Abraão e Abimeleque estavam dizendo: ‘Que Deus nos faça o mesmo e mais, se não cumprirmos nossa aliança’”. Era algo muito sério.


É notório que somente Abraão dá presentes a Abimeleque; o texto não menciona reciprocidade do rei (possivelmente por já ter presenteado Abraão antes, ou por Abraão ser o principal interessado agora). Isso indica que Abraão se coloca como o beneficiário maior do acordo – afinal, é ele quem habita como estrangeiro nas terras de Abimeleque e tem a ganhar com a não-agressão e com a garantia de uso da terra e da água. O gesto de presentear o superior ou anfitrião era uma forma de mostrar gratidão e boa vontade. Matthew Henry observa que Abraão não deu nada “curioso ou elegante”, mas algo valioso e útil – “ovelhas e bois” – “como sinal da sincera amizade que havia entre eles”. Trocar presentes assim consolidava laços (cf. 1Rs 5:1; 1Rs 15:19). Ao receber os animais, Abimeleque também demonstra aceitar Abraão sob sua proteção e reconhecer a aliança.


Um ponto teológico importante: mais tarde, a Lei de Moisés proibirá explicitamente fazer tratados com os povos de Canaã (ver Ex 23:32; Dt 7:2), determinando separação rigorosa. O fato de Abraão aqui firmar uma aliança com um governante local (certamente cananeu ou filisteu) mostra que estamos lidando com um período muito anterior àquelas prescrições legais. Abraão age segundo os costumes de sua época, sem qualquer reprovação divina nesse sentido – pelo contrário, Deus já o usara antes para abençoar cidades pagãs (Gn 14) e aqui não intervém negativamente. Isso indica a antiguidade e contexto patriarcal dessa tradição, reforçando que o relato reflete memórias genuínas de um tempo pré-sináitico. O próprio termo “filisteus” no texto é anacrônico do ponto de vista do leitor original (pois os filisteus históricos só se estabeleceriam em Canaã muito depois, ca. 1200 a.C.), mas aqui a narrativa aplica esse nome ao povo de Abimeleque de forma antecipatória ou editorial. Uma hipótese é que pequenos grupos de povos do mar (ancestrais dos filisteus) já estivessem presentes na região de Gerar no tempo de Abraão, fazendo comércio, e que Abimeleque fosse um líder local associado a eles. De qualquer modo, para o público leitor do Gênesis (provavelmente já na época de Israel formado), “terra dos filisteus” (v.32) era uma referência geográfica familiar para situar a história.


Voltando ao pacto: depois de selado o acordo geral, ocorre uma cena peculiar nos vv.28–30. Abraão separa sete cordeiras do rebanho e as coloca à parte. Abimeleque, confuso, pergunta: “Que significam essas sete cordeiras que puseste à parte?” (v.29). Essa pergunta demonstra que esse gesto não havia sido acordado previamente e não seguia o protocolo usual. Até então, Abraão já entregara gado suficiente para o pacto; por que então separar sete fêmeas jovens a mais? A dúvida do rei ressalta que Abraão estava introduzindo um elemento extra no trato.

A resposta de Abraão (v.30) esclarece: “Aceita, da minha mão, essas sete cordeiras, para que me sirvam de testemunho de que eu cavei este poço.” Aqui entendemos que Abraão está exigindo formalmente um reconhecimento de propriedade. As sete cordeiras funcionam como uma espécie de “recibo” ou testemunhas vivas do acordo específico sobre o poço. Ao aceitar as cordeiras, Abimeleque estaria concordando que o poço pertence a Abraão, pois somente assim ele teria o direito de oferecer aqueles animais como sinal. É interessante a formulação: “para que seja por testemunho para mim” – ou seja, Abraão pode apontar para aquelas sete ovelhas e dizer: “estas provam que aquele poço é meu, pois o rei as aceitou como prova”.

Por que sete cordeiras? O número sete tinha importância simbólica de perfeição ou completude em muitas culturas. Além disso, em hebraico a palavra “sete” (sheva‘) soa quase idêntica à palavra “juramento” (ševu‘á) – ambas derivam da raiz š-b-‘, relacionada à ideia de compromisso fortalecido por sete coisas. De fato, uma teoria é que nos tempos antigos juramentos solenes envolviam o número sete de algum modo (sete ofertas, repetir algo sete vezes, etc.), de onde viria a expressão hebraica “fazer um juramento” (nišba‘, literalmente “sete-ar-se”). Assim, Abraão pode ter escolhido intencionalmente sete cordeiras para enfatizar que aquele pacto incluía um juramento especial quanto ao poço. Wiersbe comenta: “A palavra hebraica para ‘jurar’ (šāva‘) significa ‘ligar-se com sete coisas’, e as palavras ‘juramento’ (šeḇu‘āh) e ‘sete’ (šeḇa‘) são muito parecidas”. A própria etimologia do nome Berseba combina essas ideias: Be’er = poço; šeḇa‘ = sete ou ševu‘āh = juramento. Aqui no texto, o narrador explicará o nome Berseba dizendo: “porque ali juraram os dois” (v.31), privilegiando o sentido de juramento. Mas o diálogo de Abraão e Abimeleque ressalta o sete das cordeiras. Não é incomum na Torá haver duplo sentido nos nomes de lugar (por exemplo, “Massá e Meribá” em Êxodo 17:7 têm dois significados complementares). Portanto, parece que Berseba foi lembrada tanto pelo juramento feito ali quanto pelas sete cordeiras que selaram a disputa do poço.

Uma questão debatida é se essas sete cordeiras faziam parte do gado que Abraão já tinha dado (v.27) ou se eram um presente adicional. O texto hebraico introduz as cordeiras com artigo definido (“as sete cordeiras”), o que alguns interpretam como referência às já mencionadas. Contudo, o uso do artigo pode ser catafórico, apontando para algo que será citado em seguida (“tomou sete cordeiras, as quais colocou à parte”). Wenham nota que a gramática não resolve se eram extra ou separadas do presente original. Mas a explicação de Abraão no verso 30 – “há de receber de minha mão estas sete cordeiras” – indica que Abimeleque ainda não as tinha recebido e precisava tomá-las como parte do acordo específico. Isso sugere que sim, tratava-se de um dádiva adicional: sete fêmeas jovens de valor, entregues como contrapartida pela concessão formal do poço. Em termos legais, Abraão quis garantir por escrito, por assim dizer, seu direito à água que descobrira. Sem água, de nada valeria poder habitar na terra; logo, ele buscou assegurar a infraestrutura básica para sua permanência.


Abimeleque aparentemente aceita as cordeiras nos termos ditos (o texto não relata suas palavras, mas subentende-se pelo verso 31 que o acordo foi concluído). Ao aceitar, ele concordou oficialmente que Abraão era o cavador e legítimo dono daquele poço. Foi, portanto, uma solução criativa e pacífica para um potencial conflito de território: em vez de brigar, Abraão “compra” o reconhecimento com um presente simbólico. Note-se que nenhum dinheiro é mencionado – diferentemente da compra do campo de Macpela em Gn 23, aqui tudo se resolve em termos de gado e juramentos. É possível que Abimeleque considerasse aquelas cordeiras como uma indemnização pelo mal-entendido, ou simplesmente como um extra de boa vontade de Abraão.


O Nome Berseba e a Partida de Abimeleque


Com o pacto concluído, o narrador registra: “Por isso se chamou aquele lugar Berseba, porque ali juraram ambos” (v.31). O hebraico faz um jogo de palavras: al-ken qara shem hammaqom ha-hu’ Be’er Ševa‘, ki šam nišbe‘u šenehem. Vê-se o som semelhante de Ševa‘ (Berseba) e nišbe‘u (juraram). Assim, o nome Berseba é explicado como “Poço do Juramento” (be’er = poço; šeḇu‘āh = juramento). Essa etimologia destaca a importância do juramento mútuo na história. Contudo, o texto já insinuou a outra possível origem: “Poço dos Sete” (pelas sete cordeiras). De fato, Gênesis 26:33, quando Isaque reafirma o nome Berseba numa aliança semelhante com outro Abimeleque, diz: “Por isso chamou-se o nome da cidade Berseba, até ao dia de hoje”, logo após mencionar que os servos de Isaque acharam água ali. Em Gn 26:33, alguns manuscritos antigos (como a Septuaginta) explicitam “chamou-se Berseba porque ambos juraram ali” – quase idêntico ao nosso verso. Isso dá a entender que a tradição principal associa Berseba ao juramento. Entretanto, o número sete não poderia passar despercebido: o próprio verbo “jurar” (šāva‘) deriva dessa raiz, possivelmente porque se fazia um juramento ao sétimo repeteco ou oferta. O narrador, então, parece conjugar os dois conceitos: sete e juramento estão intrinsecamente ligados e ambos fazem alusão ao nome do lugar. O “por isso” (‘al ken) no início do v.31 refere-se principalmente ao verso 30 (as sete cordeiras como testemunho), mas a explicação dada refere-se ao ato de jurar. Poderíamos parafrasear: “E aquele lugar ficou conhecido como Berseba, o Poço do Juramento/Sete, pois ali ambos haviam jurado (selando o acordo com sete animais).”


De posse dessa nova toponímia significativa, Abraão ganha mais que um nome de lugar – ganha uma garantia palpável de sua pertença na terra prometida. Até então, Abraão era um peregrino sem nenhum pedaço de terra próprio em Canaã (somente mais tarde comprará a cova de Macpela para sepultura). Agora, graças a este tratado, ele tem oficialmente direito a um poço de água – e água é vida para um patriarca com muitos rebanhos. Como diz o comentarista Gordon Wenham, “por fim Abraão tinha uma reivindicação a pelo menos um poço na terra de Canaã”. Pequeno avanço, mas significativo: um poço era basicamente um ponto de assentamento no deserto, podendo tornar-se um acampamento permanente e até originar um povoado. De fato, Berseba tornar-se-ia séculos depois uma importante cidade ao sul de Judá. Na época do Reino de Israel, Berseba (identificada com a atual Tel Beer Sheva, um sítio arqueológico a leste da moderna Be’er Sheva) foi um centro administrativo com poços famosos. Arqueólogos encontraram lá um poço profundo (cerca de 26 metros) datado da Idade do Ferro, mas possivelmente construído sobre fontes antigas. Alguns sugerem que o poço patriarcal estava na área da atual cidade de Be’er Sheva, num local chamado Bir es-Saba, cujos poços poderiam ter origem muito remota. Seja como for, o texto evidencia que Abraão passou a ter posse reconhecida de água e terras em volta.


Com isso, “fizeram eles uma aliança em Berseba” (v.32). Vale notar: o pacto é dito concluído em Berseba – ou seja, possivelmente no próprio local do poço. A geografia aqui ganha contornos: se Abraão estava acampado próximo, ele e Abimeleque formalizaram o juramento junto à fonte em questão, marcando o local. Em seguida, “levantaram-se Abimeleque e Ficol, chefe do seu exército, e voltaram para a terra dos filisteus” (v.32b). Essa partida dos filisteus fecha a cena tal como abriu: Abimeleque e Ficol vieram juntos, e agora se vão juntos, missão cumprida. Abraão permanece.


A menção de “terra dos filisteus” novamente (como já discutido) é provavelmente proleptíca – o escritor chama assim a região costeira/sul de Canaã onde posteriormente os filisteus estariam estabelecidos. Historicamente, na era de Abraão (c. 19º–18º século a.C.), os filisteus ainda não tinham migrado em massa. Portanto, essa frase ou é uma atualização para os leitores (identificando Gerar e Berseba como área filistéia conhecida) ou indica que pequenos contingentes e culturas egeias já circulavam ali bem antes da grande invasão filisteia. Há quem defenda que o termo “filisteu” poderia ter sido aplicado genericamente a qualquer povo estrangeiro do mar naquela costa, mesmo em épocas remotas (Kitchen sugere isso). Ademais, lembramos que Ficol possivelmente é de origem anatólio-egeia (nome semelhante a Piygolos, conforme estudo citado) – isso intrigantemente conectaria Abimeleque e seu povo a migrantes vindos do norte (Anatólia/Mar Egeu), alinhando-se com a ideia de predecessores dos filisteus. Em todo caso, do ponto de vista narrativo, “terra dos filisteus” situa o leitor: Abraão está vivendo nas franjas da terra prometida, num limite cultural entre Canaã e povos do mar.


Importante ressaltar que Abraão, ao final do pacto, não acompanha Abimeleque; pelo contrário, ele permanece em Berseba. Isso subentende que, com a retirada de Abimeleque para seus domínios, Abraão passa a ter liberdade e controle naquela área de Berseba. Em Gn 21:34 leremos que ele ficou ali “por muitos dias”. Ou seja, a partir desse tratado, Abraão consolida-se territorialmente: se antes era um nômade que transitava entre Betel, Hebrom, Neguebe, agora ele pode estabelecer um acampamento fixo em Berseba, sob a proteção de um acordo de paz com os vizinhos. Como observou Wenham, a retirada de Abimeleque “implica não somente que Abraão tinha direito legal a um poço, mas que detinha de fato a posse da região ao redor dele”. Em outras palavras, Abimeleque reconhece Abraão como residente legítimo em sua terra. É um marco: o peregrino Abraão finalmente tem onde “firmar a tenda” sem disputas, cumprindo-se parcialmente a promessa divina da terra (não como propriedade plena ainda, mas como habitação segura).


Tamarisco em Solo Sagrado: Abraão invoca o “Deus Eterno” 


Em resposta a esse desenlace favorável, Abraão realiza dois atos simbólico-religiosos no verso 33: ele planta uma árvore (um tamarisco) e invoca o nome do SENHOR sob um novo título, El-Olam. Esses gestos indicam gratidão e consagração daquele lugar ao Senhor.


Abraão planta um tamarisco em Berseba. O termo hebraico ’eshel provavelmente refere-se à Tamarix aphylla, uma árvore ou arbusto perene típico das regiões semiáridas do Oriente Médio. Tamariscos são evergreen (sempre-verdes) e podem alcançar cerca de 10 metros de altura. Eles foram frequentemente plantados por beduínos no deserto do Neguebe para fornecer sombra e também porque seus ramos macios servem de forragem para rebanhos. Ou seja, é uma árvore útil para quem habita numa zona árida, criando um pequeno oásis.

A Bíblia já mostrara Abraão “morando junto aos carvalhos/azinheiras” (Gn 13:18; 18:1) e edificando altares ao SENHOR nesses locais. Aqui, em vez de um altar de pedra, ele planta uma árvore. Qual seria o significado disso? O texto não explica diretamente, mas podemos inferir algumas coisas:


  • Sinal de Posse e Permanência: Plantar uma árvore indica intenção de ficar no lugar por tempo considerável. Diferentemente de armar tendas temporárias, a árvore demora a crescer e beneficiar, então quem a planta pensa no longo prazo. Abraão plantou um tamarisco possivelmente para marcar aquele poço como seu lar e fornecer conforto (sombra, madeira, alimentação para os animais). Como diz Matthew Henry, “Abraão, tendo se instalado em boa vizinhança, sabia quando estava bem, e permaneceu ali por muito tempo. Ali plantou um bosque, para ter sombra sobre sua tenda, ou talvez um pomar de árvores frutíferas”. Ou seja, ele investiu no melhoramento do local, criando raízes (mas sem deixar de ser peregrino no coração, pois ainda vivia em tendas).


  • Memorial Espiritual: Alguns estudiosos veem a árvore como um marco sagrado. Em várias culturas antigas, árvores poderiam ter conotação cultual (por exemplo, asherim, postes sagrados, eram árvores ou troncos associados a deuses cananeus). No caso de Abraão, contudo, não há indício de idolatria. Ele planta o tamarisco “ali” – isto é, junto ao poço de Berseba – e ali invoca o SENHOR. A árvore, portanto, pode ter sido simplesmente parte do local de culto a Yahweh, fornecendo um cenário agradável e talvez delineando um espaço de oração (um “oratório ao ar livre”). Sarna sugere que “plantar uma árvore é análogo a construir um altar”, e que Abraão estaria fundando um santuário em Berseba com esse ato. De fato, em Gn 26:25, Isaque – quando recebe a confirmação divina das promessas – edifica um altar em Berseba e também arma sua tenda e cava um poço. Aqui Abraão não ergue altar (provavelmente já havia erguido em Beer-Sheba ou o fará implicitamente), mas a árvore poderia servir de lugar de reunião para culto. Assim como antes Abraão cultuou Deus em bosques de carvalhos (Gn 13:18), agora ele cria seu próprio “bosque” plantado. Evergreens (árvores de folhas persistentes) podem simbolizar a vida contínua e bênçãos de Deus (cf. Salmo 1:3; Jeremias 17:7–8). A tamargueira, verde em meio ao deserto, seria um símbolo vívido da graça de Deus sustentando Abraão em terra árida.


É importante afastar a ideia de que Abraão estivesse adorando a árvore ou adotando cultos locais. Alguns críticos antigos insinuaram que Abraão, ao plantar um eshel e chamar Deus de El-Olam, estivesse incorporando elementos de cultos cananeus (onde árvores sagradas e títulos como El Olam poderiam existir). Entretanto, nada no texto indica que a árvore fosse objeto de culto – provavelmente era apenas comemorativa e utilitária. Kidner rebate essa ideia lembrando que não há evidência de que a árvore fosse mais que um memorial, e cita E.A. Speiser: “Seria um epíteto lógico de uma Divindade invocada para dar amparo a um tratado formal que se esperava teria validade perpétua”. Ou seja, o nome dado a Deus (El-Olam) faz sentido à luz do pacto de longa duração – não requer supor sincretismo religioso.


Yahweh El-Olam – O SENHOR, Deus Eterno


Após plantar o tamarisco, Abraão “invocou ali o nome do SENHOR, o Deus Eterno (El-Olam)”. “Invocar o nome do SENHOR” significa proclamar e adorar a Deus de forma pública e solene. Abraão já tinha feito isso em vários lugares (Gn 12:8 em Betel; Gn 13:4; Gn 13:18 em Hebrom; Gn 21:33 aqui). Ele não se envergonhava de cultuar a Yahweh abertamente, mesmo rodeado de vizinhos pagãos. Wiersbe observa que podemos traçar a jornada de Abraão através dos altares que construía – ele deixava marcas de adoração onde passava. Em Berseba, ao invés de altar de pedras, o destaque é o tamarisco recém-plantado; mas o ato principal é ele adorar a Deus pelo Seu nome.


Aqui é introduzido um novo nome divino: El-Olam (’ēl ‘ōlām). Em hebraico, El é “Deus” (título genérico, também usado para Deus Altíssimo, etc.) e ‘Olam significa “eterno, perpétuo, de longa duração”. Portanto, El-Olam pode ser traduzido como “Deus Eterno” ou “Deus de eternidade”. Esta é a primeira aparição bíblica desse título para Deus. Abraão já conhecia Deus como El-Elyon (“Deus Altíssimo” – título usado por Melquisedeque, que Abraão adotou em Gn 14:22) e como El-Shaddai (“Deus Todo-Poderoso” – revelado em Gn 17:1). Agora ele acrescenta El-Olam ao seu vocabulário teológico, refletindo um novo entendimento sobre o caráter de Deus naquele momento de sua vida.


Por que “Deus Eterno” agora? Qual é o significado teológico desse nome no contexto? Parece estar relacionado às circunstâncias: Abraão acabara de obter segurança de que poderia permanecer naquela terra e de que suas futuras gerações teriam pacto de paz ali. Deus mostrou Sua fidelidade ao longo do tempo – cumprindo a promessa do filho (Isaque já crescera) e começando a cumprir a da terra (um poço garantido). Abimeleque olhou para o futuro e incluiu “filhos e netos” no tratado, o que lembra Abraão de que Deus pensa gerações adiante com ele. Abraão responde adorando Deus como Eterno, aquele cujos propósitos transcendem a própria vida do patriarca. Ele reconhece que Deus não muda e não falha com o passar dos anos. Talvez Abraão se lembre de que, embora ele seja mortal e passageiro, Deus é perene, e portanto as promessas divinas têm garantia eterna. Como Wiersbe coloca: “Que grande encorajamento conhecer o ‘Deus Eterno’! Os poços desapareceriam, as árvores seriam cortadas... os tratados se extinguiriam, mas o Deus Eterno permaneceria”. Tudo nesse mundo – poços, cordeiras, árvores, pactos humanos – é temporário. Mas o Deus que fez uma aliança perpétua com Abraão (cf. Gn 17:7: “aliança eterna com tua descendência”) e prometeu a terra “por possessão eterna” (Gn 17:8) é Ele mesmo Eterno, garantindo que Suas promessas perduram além das circunstâncias transitórias. Abraão, ao chamar Deus de El-Olam, possivelmente está afirmando sua fé de que, independentemente das mudanças (até a morte de Abraão um dia), Deus continuará fiel à aliança para com seus descendentes.


Alguns comentaristas notam que El-Olam era um título que, em contexto cananeu, poderia referir-se ao alto deus El em sua qualidade cósmica atemporal. Porém, aqui Abraão aplica o título a Yahweh (note que diz “invocou o Nome de Yahweh, El-Olam”). Então ele não está invocando um deus local; está proclamando que Yahweh, o seu Deus de aliança, é El-Olam – o único Deus verdadeiro e eterno, superior a quaisquer divindades regionais. Assim como Melquisedeque havia revelado que o Deus de Abraão era o “Altíssimo” (El Elyon) e Abraão reconheceu ser o mesmo Yahweh, aqui Abraão reconhece que Yahweh é o Eterno Soberano do tempo. Kidner aponta que El-Olam pertence a uma série de nomes compostos El- usados em Gênesis, cada qual revelando um aspecto do caráter divino: El Elyon (Deus Altíssimo, Gn 14:18), El Roi (Deus que me vê, Gn 16:13, nome dado por Hagar), El Shaddai (Deus Todo-Poderoso, Gn 17:1), El Elohe-Israel (Deus, o Deus de Israel, Gn 33:20, nome dado por Jacó), El-Betel (Deus de Betel, Gn 35:7). El-Olam se encaixa nessa progressiva auto-revelação de Deus aos patriarcas, enfatizando agora a dimensão da eternidade e imutabilidade divina.


Do ponto de vista narrativo-teológico, o autor bíblico parece querer destacar que algo de grande importância espiritual ocorreu nesse episódio da aliança com Abimeleque. O plantio da árvore e a invocação de Deus sob um novo nome sugerem que Abraão enxerga esse momento como um marco no cumprimento das promessas. Depois de tantas peregrinações, provações, esperas e até deslizes morais, Abraão experimenta uma profunda consolidação: ele tem o filho da promessa (Isaque), e agora pela primeira vez tem paz duradoura e um lugar fixo para habitar na terra prometida, com o respeito dos vizinhos e garantia de sustento (água). É como se as peças das promessas (descendência e território) estivessem finalmente se alinhando. Wenham comenta que “o plantio da árvore e a oração implicam que algo de grandioso aconteceu neste episódio” – Deus revelou Sua fidelidade de longo prazo através das palavras e ações de Abimeleque. Abimeleque, em seu discurso, falou com convicção sobre o futuro de Abraão e concedeu-lhe meios de fixar-se; Abraão discerniu nisso a mão de Deus cumprindo gradualmente o pacto. Por isso, ele adora o Senhor como o Deus eterno, celebrando que enfim, “depois de tantos atrasos, as promessas de terra e descendência parecem finalmente encaminhar-se para o cumprimento”. Essa cena antecipa o clímax das promessas: Abraão agora só falta ver seu descendente crescer e herdar essa terra – ironicamente, mal sabe ele que logo Deus pedirá Isaque em sacrifício (mas com propósitos maiores).


Paz Prolongada


O versículo 34 encerra o capítulo com uma nota de estabilidade: “E peregrinou Abraão na terra dos filisteus muitos dias.” Após o pacto em Berseba, Abraão pôde viver muitos anos em tranquilidade naquela região, sem conflitos registrados. Provavelmente esse período “muito longo” abrangeu toda a adolescência de Isaque até o evento seguinte (o sacrifício no capítulo 22). Estimativas sugerem que “muitos dias” aqui pode significar uma década ou mais – Wiersbe sugere algo entre 10 a 15 anos, já que Isaque era um rapaz em Gn 22. Esse tempo de paz doméstica foi certamente precioso para Abraão: ele pôde desfrutar a vida familiar com Sara e ver Isaque crescer em um ambiente seguro, sem precisar deslocar o acampamento constantemente. O texto dá a entender que, depois de tantas jornadas e crises (fome, guerra, tensões familiares, etc.), Deus concedeu a Abraão um período de descanso e felicidade. Há um eco aqui de promessas bíblicas de longevidade pacífica como bênção divina – “porá paz na terra, e dormireis seguros” (Lv 26:6); “ainda velhos e velhas estarão sentados nas ruas de Jerusalém” (Zc 8:4). Uma velhice tranquila é muitas vezes vista nas Escrituras como sinal do favor de Deus (cf. Jó 42:16, “viveu Jó... e morreu velho e farto de dias”).


Entretanto, o narrador insinua que essa calmaria seria temporária – “um descanso antes da tempestade”. De fato, logo no capítulo seguinte (Gn 22:1) lemos: “Depois destas coisas, pôs Deus Abraão à prova”. A grande prova do sacrifício de Isaque viria em seguida, rompendo esse idílio. É interessante considerar que Deus preparou Abraão durante esses anos pacíficos para enfrentar o teste supremo de fé. Abraão experimentou a fidelidade de Deus concretamente: Deus proveu-lhe um filho milagroso, proteção nas dificuldades (casos do Egito e Gerar), e até a boa vontade de nações vizinhas. Sua fé amadureceu nesse período, a ponto de ele estar pronto para confiar mesmo quando Deus pedisse algo extremamente difícil (como sacrificar o próprio filho). Assim, Gn 21:34 faz a ponte para Gn 22:1 – um tempo prolongado de bênção que consolida Abraão espiritualmente e contextualiza a última e maior prova que o patriarca enfrentará.

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