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Abrão resgata Ló e encontra Melquisedeque | Gênesis 14:1–24

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 1 de set.
  • 9 min de leitura
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O capítulo 14 singulariza-se por apresentar um conflito militar internacional, algo único na história dos patriarcas. Ele descreve uma campanha de quatro reis orientais (da Mesopotâmia e regiões vizinhas) contra cinco reis das cidades-estado de Canaã (Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar). A estrutura do relato segue três relatórios de batalha consecutivos, reforçando um padrão triádico típico da narrativa hebraica para elevar a tensão até a vitória final de Abrão. As etapas são:


Primeira batalha (vv.1-4)

Os reis orientais, liderados por Quedorlaomer de Elão, marcham contra a coalizão ocidental. Os cinco reis cananeus haviam servido ao Elamita por 12 anos e agora se rebelavam no 13º ano, recusando tributo. Os invasores vêm punir a rebelião, dando início à guerra.

Segunda batalha (vv.5-12)

No 14º ano, Quedorlaomer e aliados percorrem a Transjordânia derrotando vários povos locais (refains, zuzins, ems – povos gigantes mencionados também em Dt 2:10-12 – além dos horeus no Seir). Em seguida, combatem os cinco reis rebeldes no vale de Sidim (próximo ao Mar Morto) e os vencem. Os reis de Sodoma e Gomorra fogem e caem em poços de betume, e as cidades são saqueadas. Nessa segunda onda, fica evidenciada a invencibilidade dos reis orientais até então: eles triunfam sobre todos os inimigos, consolidando Quedorlaomer como um conquistador temível. Entre os capturados pelos vencedores está , sobrinho de Abrão, que habitava em Sodoma (v.12). Esse detalhe dá a conexão pessoal com Abrão e explica seu envolvimento na guerra.

Terceira batalha (vv.13-16)

Ao saber que Ló foi levado cativo, Abrão entra em ação. Ele reúne 318 homens treinados de sua casa e, junto com aliados amorreus (Mamre, Escol e Aner), persegue os invasores até Dan, no extremo norte de Canaã. Abrão lança um ataque surpresa noturno, divide suas forças e consegue derrotar os reis orientais, perseguindo-os até Hobá, ao norte de Damasco. Ele resgata todos os bens saqueados, os cativos, “bem como Ló e seus bens” (v.16). Essa vitória de Abrão é extraordinária: ele, com um punhado de homens e estratégia, derrota a grande coalizão que até então parecia invencível. O narrador enfatiza que Abrão saiu vitorioso onde os reis de Sodoma e Gomorra falharam miseravelmente duas vezes. Assim, “a façanha militar de Abrão provou-se superior não apenas à do rei de Sodoma (derrotado duas vezes), mas também à do próprio Quedorlaomer”. Abrão é retratado como um guerreiro corajoso e capaz, cujo triunfo se deve claramente à providência divina – um cumprimento implícito da promessa de que Deus abençoaria os que o abençoassem e amaldiçoaria os opressores (cf. 12:3). De fato, a derrota de Quedorlaomer vindica Abrão como escolhido de Deus.


Sodoma versus Salem


A parte final (vv.17-24) descreve o retorno de Abrão e um encontro marcante no vale de Savé (possivelmente nos arredores de Jerusalém): Abrão é abordado por dois reis com atitudes opostas. O rei de Sodoma (não nomeado aqui, provavelmente Bera mencionado no v.2) veio ao encontro de Abrão (v.17). Mas antes que ele fale qualquer coisa, surge Melquisedeque, rei de Salem, que traz pão e vinho e abençoa Abrão (vv.18-20). A narrativa coloca Melquisedeque em destaque central, criando uma cena de contraste triplo entre generosidade x ingratidão, bênção x exigência, fé x mundanismo:


  • Melquisedeque, rei-pastor de Salem: É apresentado como “sacerdote do Deus Altíssimo (El Elyon)” (v.18), título para o Deus verdadeiro, Criador do céu e da terra. Ele oferece pão e vinho a Abrão e seus homens – possivelmente para restaurá-los após a batalha –, um gesto de hospitalidade generosa. Sendo sacerdote, Melquisedeque então profere uma bênção dupla: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo... e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou teus inimigos nas tuas mãos” (vv.19-20). Esta bênção reconhece explicitamente que a vitória de Abrão veio de Deus. Várias observações são importantes: (1) O nome Melquisedeque significa “rei de justiça” ou “meu rei é justiça”. Ele governa Salem, que muitos identificam com Jerusalém (Salem provavelmente abreviação poética de Yerushalayim), embora o texto não o explicite claramente. (2) Como rei e sacerdote de El Elyon, Melquisedeque mostra que havia na terra de Canaã pelo menos um representante da fé no Deus verdadeiro, fora da linhagem de Abrão. Ele aparece como uma figura enigmática, sem genealogia mencionada, o que mais tarde inspirará referências messiânicas (Sl 110:4; Hb 7:1-3). (3) Seu ato de trazer pão e vinho tem sido visto por comentaristas desde os antigos como significativo. Embora alguns vejam um possível banquete de aliança entre Melquisedeque e Abrão, o mais claro é que “está sendo retratada a generosidade de Melquisedeque” em contraste com a omissão do rei de Sodoma. Ele dá proativamente suprimento e honra a Abrão, sem pedir nada em troca – sinal de um coração alinhado com Deus.


  • Abrão, o adorador dependente: Abrão aceita a bênção de Melquisedeque e, em resposta, dá a ele o dízimo de tudo (v.20). Entregar a décima parte dos despojos da guerra ao sacerdote-rei significa que Abrão reconhece Melquisedeque como ministro do Deus verdadeiro e expressa gratidão a Deus por meio dessa oferta. Note-se que Abrão não retém primícias para si, mas antes de qualquer outra coisa devolve a Deus, simbolicamente, por meio do sacerdote. Isso confirma a atitude espiritual de Abrão: ele atribui a vitória e os bens não à sua força, mas a Deus Altíssimo. Além disso, quando o rei de Sodoma lhe propõe: “Dá-me as pessoas e fica com os bens” (v.21), Abrão recusa terminantemente. Ele declara ter jurado ao Senhor (YHWH), Deus Altíssimo, Criador dos céus e da terra (note, ele une YHWH com El Elyon, mostrando que reconhece serem o mesmo Deus) que não tomaria nada dos bens de Sodoma, “nem um fio, nem uma correia de sandália”, para que o rei de Sodoma não pudesse dizer “Eu enriqueci Abrão” (vv.22-23). Abrão aceita apenas que seus aliados recebam sua parte e que os jovens soldados tenham comido do despojo (v.24), mas ele pessoalmente não quer lucro. Essa resposta demonstra a independência espiritual de Abrão: ele não quer ficar obrigado nem associado aos bens de um rei perverso. Ele prefere depender das promessas de Deus (que lhe havia garantido recompensa, 15:1) a enriquecer-se pelos meios de Sodoma. Em suma, Abrão se mostra íntegro e desprendido, dando glória a Deus por sua vitória e recusando qualquer ganho fácil que pudesse macular o testemunho da graça divina em sua vida. Seu juramento solene vincula o nome de YHWH ao de El Elyon, deixando claro a todos que Abrão serve ao mesmo “Deus Altíssimo” de Melquisedeque, e não deve nada à generosidade de um rei ímpio. Como comenta Wenham, o silêncio inicial e a postura do rei de Sodoma contrastam vivamente com a atitude reverente de Melquisedeque e a nobreza de Abrão: o rei de Sodoma nada ofereceu a Abrão, e quando falou foi de modo mesquinho, enquanto Melquisedeque ofereceu pão e vinho e palavras de bênção. A cena, literariamente, é cuidadosamente triádica e em forma de quiasmo: Sodoma sai ao encontro (v.17) – Melquisedeque abençoa (18-20) – Sodoma fala (21) – Abrão responde (22-24). Assim, Abrão é colocado ao centro como receptor da bênção e como vencedor moral no diálogo.


A vitória de Abrão e a aparição de Melquisedeque carregam significados amplos na teologia bíblica:


  • Cumprimento de promessas: Ao derrotar poderosos reis estrangeiros e salvar Ló, Abrão torna-se uma bênção concreta para outros (cumprindo Gn 12:3) e amaldiçoa, por assim dizer, os opressores (enfrenta e vence Quedorlaomer). Melquisedeque ao abençoar Abrão diz que Deus “entregou teus inimigos em tuas mãos” (v.20), ecoando a linguagem de vitória dada por Deus. Isso antecipa o título que Deus logo reivindicará em 15:1 – “Eu sou teu escudo”, isto é, teu protetor nas batalhas. De fato, a palavra hebraica para “escudo” (magen) relaciona-se a “entregar” (miggen, usado em 14:20) – podemos dizer que no capítulo 15 Deus confirma o que Melquisedeque declarou: Ele foi o escudo que protegeu Abrão e lhe deu o triunfo. Nesse sentido, Melquisedeque funcionou como porta-voz de Deus antes mesmo da revelação direta subsequente.


  • Revelação progressiva de Deus: O título divino El Elyon (Deus Altíssimo) revelado por Melquisedeque é agora publicamente associado por Abrão ao nome do Senhor (YHWH) que o chamara. Assim, a fé monoteísta de Abrão é confessada diante dos pagãos: YHWH não é um deus tribal menor, mas é o Altíssimo, Criador do céu e da terra (v.22). Essa declaração universalista ressalta o caráter supremo do Deus de Abrão em meio a nações idólatras.


  • Melquisedeque como tipo de Cristo: A figura de Melquisedeque, sendo ao mesmo tempo rei e sacerdote, prefigurou a expectativa de um Messias que uniria essas funções. O Salmo 110 mencionará um futuro rei de Israel como “sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Sl 110:4), e o Novo Testamento aplica isso diretamente a Jesus Cristo (Hb 7). Melquisedeque representa um sacerdócio universal (não levítico), superior ao abraâmico, pois Abraão lhe pagou dízimo e recebeu bênção. Isso sugere que o plano de Deus incluía outros povos e apontava para uma ordem de salvação que alcançaria além da descendência biológica de Abrão.


  • Lições espirituais: Abrão aqui é exemplo de fé corajosa (arriscando a vida para salvar Ló), de generosidade (dízimo a Deus, nada retendo indevidamente), de humildade (dando glória a Deus, submetendo-se à bênção sacerdotal) e de separação do mal (rejeitando aliança com Sodoma). Cada um desses aspectos tem aplicação devocional para o povo de Deus. Este capítulo mostra que o crente pode se envolver no mundo (Abrão guerreou para resgatar o sobrinho e proteger inocentes), mas sem se corromper com o mundo (Abrão não quis os despojos de Sodoma). Ele ilustra na prática o princípio de “estar no mundo, mas não ser do mundo”.


Embora Gênesis 14 tenha estilo e conteúdo históricos peculiares (listas de reis, detalhe geopolítico), estudiosos observam que ele se encaixa perfeitamente na trama de Gênesis, ao contrário do que pensavam críticos mais antigos. Longe de ser um episódio isolado ou interpolações desconexas, o capítulo faz ponte entre os acontecimentos do capítulo 13 e 19, especialmente no tocante a Ló. Em Gn 13:12, Ló estava “armando suas tendas até Sodoma”; já em Gn 19:1, Ló aparece residindo dentro de Sodoma e até sentado à porta (posição de proeminência). Gênesis 14 mostra o estágio intermediário: Ló “habitando em Sodoma” (14:12) quando foi capturado. Isso explica por que Abrão mais tarde intercede com tanta firmeza por Sodoma – Ló e sua família estavam lá, e Abrão já demonstrara preocupação salvando-os militarmente. Além disso, o tratamento insolente do rei de Sodoma para com Abrão (não reconhecendo a dívida de gratidão) prenuncia o destino daquele povo: Sodoma acabará julgada, e apenas Ló escapará por misericórdia, ilustrando que quem despreza o eleito de Deus “será amaldiçoado” (Gn 12:3). Assim, o episódio de Melquisedeque e do rei de Sodoma realça o tema da bênção versus maldição: Melquisedeque abençoa Abrão (ligando-se à bênção divina e prosperará), enquanto o rei de Sodoma, por implicação, afasta-se sem bênção e sua cidade será destruída. Em suma, o capítulo 14 mantém Abrão no cenário mundial – cumprindo a ideia de que nele “todas as nações seriam abençoadas” – e prepara o palco para o próximo grande movimento da revelação: a aliança formal que Deus faz com Abrão no capítulo 15.


Melquisedeque era Jesus pré-encarnado (cristofania)?


A pergunta sobre se Melquisedeque seria Jesus pré-encarnado costuma nascer do mistério que envolve Gênesis 14 e da leitura densa que Hebreus faz dessa figura. O ponto de partida sólido é reconhecer que a Escritura apresenta Melquisedeque como um rei-sacerdote histórico de Salém (provavelmente Jerusalém), que abençoa Abraão e recebe dele dízimos; essa leitura básica é atestada por sínteses enciclopédicas e pela própria tradição bíblica, que o situa no tempo e no espaço, sem traços de aparição angelofânica ou teofânica explícita.


O Novo Testamento eleva essa figura ao conectá-la com o Messias pelo Salmo 110:4 (“sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”) e pela exposição de Hebreus 7. Mas note como o autor de Hebreus formula o argumento: ele sublinha que Melquisedeque é “feito semelhante ao Filho de Deus” (gr. aphōmoiōmenos), precisamente a gramática de semelhança/analogia, não de identidade pessoal; é a única ocorrência do verbo no NT e, em léxicos e traduções técnicas, significa “tornado semelhante/feito parecido”, o que sustenta uma tipologia e não uma cristofania. Em outras palavras, Cristo não “imita” Melquisedeque; antes, Melquisedeque é moldado na narrativa bíblica de modo a apontar para o sacerdócio real, eterno e superior do Filho.


Essa distinção aparece também na fórmula “ordem de Melquisedeque” (Sl 110:4), linguagem de padrão ou arranjo sacerdotal alternativo ao levítico, não de identidade ontológica. Leituras pastorais e acadêmicas convergem ao notar que Hebreus explora o “silêncio” genealógico de Gênesis — a ausência de pai, mãe e descendência registrados — como recurso literário para prefigurar um sacerdócio sem sucessão levítica, eterno em sua apresentação e, por isso, apto a servir de tipo para o sacerdócio de Cristo. A ênfase do autor está no contraste com o levitismo e na necessidade de um sacerdote-rei que una trono e altar, não em declarar que o personagem de Gn 14 seja o próprio Filho antes da encarnação.


O pano de fundo do Judaísmo do Segundo Templo ajuda a entender por que Melquisedeque ganhou contornos tão elevados na época de Jesus. Em 11Q13 (11QMelchizedek), um texto de Qumran do séc. I a.C., Melquisedeque aparece como figura celestial/angelomórfica que proclama jubileu, executa juízo e liberta cativos — linguagem altíssima, quase messiânica. Isso mostra que havia expectativas especulativas sobre Melquisedeque no ambiente judaico, mas não obriga o leitor cristão a identificá-lo com o Messias; ao contrário, ajuda a perceber por que Hebreus precisa situar Cristo acima de qualquer sacerdócio alternativo, consumando e superando tais expectativas.


Quando reunimos as peças — a apresentação histórica de Gn 14, o juramento régio-sacerdotal de Sl 110, a exegese cuidadosa de Hb 7:3 e o cenário qumrânico — a conclusão mais robusta é que Melquisedeque funciona como tipo/antecipação do sacerdócio de Cristo: rei de justiça e de paz, sem genealogia registrada e sem sucessor, colocado no enredo bíblico para sinalizar um sacerdócio eterno que Jesus, o Filho, realmente possui. É por isso que a maioria dos intérpretes afirma que Hebreus constrói seu argumento sobre semelhança (“feito semelhante ao Filho”), não sobre identidade (“era o Filho”). Assim, a pergunta “foi uma cristofania?” pode ter valor devocional, mas textualmente fica aquém da gramática e da lógica de Hebreus, cuja meta é exaltar o sacerdócio irrevogável de Cristo “segundo a ordem de Melquisedeque” — Cristo como cumprimento, Melquisedeque como sinal.

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