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Abrão no Egito | Gênesis 12:10–20

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 1 de set.
  • 7 min de leitura
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Ao ser atingida por uma grave fome na terra de Canaã, a família de Abrão (Abrão e Saraí, acompanhados de Ló e dos seus servos) parte para o Egito em busca de sustento (v.10). Como observam os comentaristas, motes semelhantes de fome obrigaram outros patriarcas a se deslocarem para o Egito (cf. Gn 26:1; 47:4), tornando o país um refúgio habitual – “o Nilo [era] fonte mais segura de alimento”. O versículo 10 mesmo forma uma inclusão literária: “havia fome na terra”, que explica e até “tintura” todo o episódio. Além disso, essa narrativa se insere num tema editorial já notado em Gênesis: trata-se de um “tipo de cena” (“type scene”) em que a esposa do patriarca fica em perigo, para revelar o caráter dos envolvidos. Assim como em Gênesis 20 e 26, aqui Saraí é temporariamente afastada de Abrão e levada à corte do Faraó (o “grande palácio”), submetendo-se ao risco de escravidão ou casamento forçado. A própria repetição do verbo “descer/ir para o Egito” (v.10) e depois “subir para a planície do Negev” (v.22) forma um paralelo literário que encerra o episódio, mostrando que do Egito Abrão voltará diferente de quando chegou.


O plano de Abrão e a chegada de Saraí ao palácio


Na primeira cena (vv.11–13), já na fronteira do Egito, Abrão expõe seu medo: temeroso de que os egípcios matem-no para ficar com Saraí, ele propõe que ela diga ser sua irmã. O texto explica que Abrão achava “existir outro risco” no Egito: como imigrante sem rede familiar de apoio, estaria vulnerável à exploração (cf. Êx 22:20; 23:9). Esse temor não é fruto apenas de ciúme doentio, mas de condições sociais concretas: estrangeiros realmente podiam ser maltratados, e Abrão reconhecia não ter parentes no Egito que defendessem sua família. Implicava também que Saraí, então com cerca de 65 anos, ainda seria considerada extraordinariamente bela – algo que o próprio texto enfatiza, dizendo que os egípcios confirmariam sua beleza (vv.14–15). Os comentaristas observam que vários fatores culturais explicam isso: sociedades antigas valorizavam figuras femininas cheias, e Saraí, embora já idosa, era “bem constituída” e sem filhos, o que poderia preservar sua formosura.


Chamá-la de “irmã” tinha o duplo efeito de, segundo alguns estudiosos mais antigos, afastar pretendentes ou até firmar um possível casamento de status mais alto (como sugerido pela controvérsia Nuzi/Speiser sobre uma suposta lei de mãe-irmã). Mas a análise do texto inspira cautela. Gênesis não apresenta essa união irmã/esposa como um casamento legítimo, e estudiosos modernos descartam a ideia de que Abrão quisesse de fato sacrificar a honra de Saraí por salvação própria. Pelo contrário, a própria narrativa mostra que Abrão não tinha coragem de responder às acusações do Faraó no fim (v.17–20), sugerindo que ele mesmo sabia haver errado. Sua fala revela desespero: ele assume a identidade de irmão para que, assim, os egípcios sintam-se menos acusados moralmente ao olhar para Saraí. O texto salienta ainda que Saraí nada diz em resposta – sua silêncio indica consentimento tácito ao plano e evita diálogos desnecessários, concentrando a narrativa nos pontos essenciais. Em suma, Abrão, diante do perigo, tenta proteger-se pelo engano, mas já fica claro que o autor do texto não elogiaria essa estratégia.


Quando chegam ao Egito (v.14), Abrão põe seu plano em ação. Inicialmente tudo corre bem: de fato todos admiram a beleza de Saraí e nada acontece de extraordinário. Porém, logo “acontece o que não era previsto”: alguém comenta a aparência de Saraí ao próprio Faraó. Este, então, a faz entrar para a casa real (v.15). A expressão hebraica indica formalmente que Saraí é “levada” para o palácio real, ou seja, apresentada como possível esposa do rei. O texto evita dizer diretamente se houve consumação carnal, mas a situação se agrava quando Deus envia pragas ao Faraó e a toda sua casa (v.17). Os comentaristas notam que a palavra עָנָג (nebut, “pragas severas”) costuma designar doenças de pele graves, como a lepra, consideradas julgamento divino por pecado (Lv 13–14). Isso sugere que os egípcios sofreram males físicos, talvez feridas ou furúnculos, semelhantes às últimas pragas do Êxodo.


Nesse meio-tempo, Faraó beneficia Abrão com presentes faraônicos: ele recebe bois, ovelhas, jumentos, camelos, escravos e escravas (v.16). O comentário destaca que tais donativos lembram uma dote de casamento – um “preço de noiva” ou presente de noivo (mahr) que se dava à família da mulher. Em outras passagens patriarcais (Gn 20:14–16; 26:12–14), o marido também sai enriquecido após dessas situações de esposa-irmã. Aqui, Abrão de fato volta do Egito muito rico, mas sem cumprir o objetivo crucial da promessa divina: ganhar descendência. Os estudiosos notam a ironia da narrativa: um “homem justo não só se preocupa com os animais (cf. Prov 12:10), mas…” – o foco do texto bíblico era apontar que algo estava errado nessa busca solitária de segurança. De fato, embora Abrão obtenha “riquezas” (v.16), ele não teve filhos com Saraí, nem mesmo um pequeno, e assim sai do episódio sem herdeiro legítimo. O autor, portanto, não elogia essa astúcia: “um indivíduo adquirir riquezas sem ter filhos não é visto como sinal de bênção divina”.


A intervenção divina e o desfecho


Chega então o clímax da narrativa (vv.17–20). Deus (Yahweh) intervém claramente, punindo o Faraó e sua casa com as pragas (v.17). O texto usa o contraste de estilo: enquanto Abrão se calou, é Yahweh quem age às escondidas para proteger Saraí. Quando o Faraó descobre a verdade – “Por que não me disseste que ela era tua esposa?” – sua fúria é evidente. Ele questiona Abrão bruscamente: “Que fizeste comigo, para não me dizeres que era tua esposa? Por que disseste: ‘Ela é minha irmã’, para tomá-la por esposa?”. Observa-se até na forma linguística do hebraico uma influência de Gênesis 3 e 4: Faraó faz a mesma pergunta (“Que fizeste?”) que Deus fez a Eva no Éden. Essa associação destaca o pecado de engano e adultério envolvido. No fim, apesar de toda a gravidade (engajar-se com a mulher de um outro seria capital), o rei egípcio surpreendentemente perdoa Abrão: ele apenas ordena que seja imediatamente retirado do país, devolvendo Saraí e acompanhando-os na partida (v.20). O verbo usado, “enviar embora”, na piel pode significar simplesmente “acompanhar até a saída” mas carrega sentido de expulsão – o rei quer ver a dupla longe dali. A atitude de Faraó reforça que Yahweh protegia Abrão: melhor mandá-lo sair em paz do que agravar o conflito. Note-se ainda que Abrão não se explica nem rebate as acusações; mantendo silêncio, ele reconhece tacitamente a justa cólera real e sua culpa. É significativo que quem age como juiz moral, na história, é o Faraó pagão e não o patriarca: pelos relatos paralelos em Gênesis 20 e 26, o monarca estrangeiro aparece “mais preocupado com moralidade do que o próprio patriarca”.


O episódio termina com Abrão partindo do Egito “humilhado e calado” (v.20). Sua riqueza o segue, mas o castigo serve de lição: ele não consegue garantir a promessa de bênçãos apenas por inteligência humana. Como conclui o comentarista, a história mostra que Abrão não obteve a bênção feita a ele de ser “pai de multidões” naquela situação. Apenas Deus poderia protegê-lo; a saída de Abrão sucede sob sua intervenção.


Reflexões teológicas e implicações


A narrativa de Gênesis 12:10–20 oferece várias lições teológicas. Em primeiro lugar, exemplifica a fragilidade humana e a soberania divina: mesmo o patriarca escolhido comete erros motivados pelo medo, mas o Senhor governa os acontecimentos (por meio das pragas e da intervenção de Faraó) para preservar o propósito da aliança. O episódio antecipa tipologicamente a Êxodo: assim como os israelitas foram enriquecidos ao deixar o Egito e libertos por pragas divinas, Abrão sai do Egito com riquezas e protegido por desastres semelhantes. O comentarista Cassuto destaca que isso “é como um prenúncio das migrações dos descendentes de Abrão para o Egito, sua servidão e libertação”. Em ambos os casos, Deus é quem salva seu povo faminto, enviando uma doença que força a partida e fazendo com que o comandante liberte aqueles que o afligem.


Por outro lado, os patriarcas ainda não contam com a confiança plena em Deus: Abrão teme morrer, mas não confia que a promessa (ver 12:1–9) o protegerá. Curiosamente, aqui o governante idolatra exibe mais fé do que Abrão – ele reconhece que o Deus de Abrão o protege e até age com misericórdia (enviando embora sem matá-los), enquanto Abrão se embaraça em engano. Essa inversão é ressaltada pelo texto e pelos comentaristas: o Faraó “fala e age como Deus” (reconhecendo a ação divina) enquanto Abrão “não teve fé” na promessa. O contraste ético também é claro: o sofrimento enviado ao Egito é justificado como correção pelo adultério oculto de Abrão, e o Faraó mostra-se justo ao condenar o engano. O episódio, assim, critica o meio tortuoso que Abrão escolhe para sobreviver e prepara o leitor para o crescimento espiritual do patriarca.


No conjunto do livro, Gênesis 12:10–20 reforça o tema da promoção e da bênção divina diante das imperfeições humanas. Abrão acaba enriquecido, mas a história deixa óbvio que riqueza sem descendência não constitui a bênção principal prometida a ele. A “justiça da ira” do Faraó, fazendo a mesma pergunta que Deus fez a Adão (Gn 3:13), destaca que a lei moral é universal e até reis pagãos a percebem. Para o crente, a falha de Abrão serve de alerta: confiar na própria astúcia rende ganhos temporários, mas somente a aliança com Deus assegura a verdadeira bênção. Essa lição ecoa no Novo Testamento: Paulo e Hebreus convidam os fiéis a olhar para Abrão como precursor de sua própria jornada de fé. Afinal, como lembra o comentarista, as experiências de Abrão no Egito prefiguram as dos crentes e de Cristo – o homem fiel que também passou pelo “Egito” para depois retornar abençoando o mundo (veja Mat 2:15; 1Cor 10:1-12).


Em suma, a passagem de Gênesis 12:10–20 narra um episódio dramático que une história, teologia e ética. Abrão, embora legitimamente temeroso, age mal ao enganar o Faraó. Deus intervém de modo providencial para resgatar Saraí e ensinar Abrão (e ao leitor) que apenas a ação de Deus garante a realização das promessas. O relato fortalece a confiança de que, mesmo que venhamos a falhar, a graça de Deus permanece soberana sobre as circunstâncias, cumprindo seu propósito redentor “aos milhares, a favor daqueles que o amam” (cf. Ex 20:6; 34:7; Dt 5:9-10).

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