Abraão e os dois anjos | Gênesis 18:1-33
- João Pavão
- 2 de set.
- 19 min de leitura

O episódio registrado em Gênesis 18 ocorre logo após a aparição do Senhor a Abraão no capítulo anterior, quando Deus mudou o nome do patriarca e estabeleceu o sinal da circuncisão. Abraão tinha já 99 anos de idade, e agora, cerca de um ano antes do nascimento de Isaque (que viria quando Abraão tivesse cem anos), o Senhor manifesta-se novamente a ele, desta vez acompanhado de dois anjos. Essa nova visita divina tinha propósitos duplos: (1) confirmar em graça a promessa do filho a Sara (Gn 18:9-15) e (2) anunciar em juízo a destruição das cidades ímpias da planície, Sodoma e Gomorra (Gn 18:16-33). A narrativa, portanto, dá sequência às promessas de Deus a Abraão e introduz o tema do julgamento divino iminente sobre Sodoma, funcionando como um “gêmeo” do capítulo 17: em ambos, o Senhor aparece pessoalmente para reafirmar Sua palavra e revelar Seus planos. Vejamos o desenvolvimento dessa passagem em detalhes, destacando as lições preciosas que ela contém.
Abraão, o anfitrião (18:1-8). Abraão permanecia acampado junto aos carvalhais de Manre, em Hebrom, quando “o Senhor apareceu” a ele “na hora mais quente do dia”, enquanto estava sentado à entrada de sua tenda (v.1). Ao levantar os olhos, Abraão percebeu três homens de pé diante dele, e correu para recebê-los com reverência, prostrando-se em terra (v.2). O texto indica tratar-se de uma teofania – isto é, uma aparição do próprio Senhor em forma humana acompanhada por anjos. De fato, embora alguns intérpretes antigos (como Lutero e certos Pais da Igreja) tenham visto aqui um vislumbre da Trindade, fica claro pelos versículos seguintes que um dos três visitantes era o próprio Senhor Javé, enquanto os outros dois eram anjos enviados por Ele. A identificação posterior desses “homens” (cf. Gn 18:10,13,17,22; 19:1) confirma essa distinção de pessoas. Assim, aquele que em Gênesis 17 foi ordenado a “andar na presença de Deus” (Gn 17:1) agora é agraciado com a visita de Deus à sua própria tenda – um privilégio notável que Abraão reconhece de imediato.
Abraão demonstra prontamente seu espírito hospitaleiro. Percebendo que aqueles não eram visitantes comuns, ele se curva e apressa-se a recebê-los, oferecendo a eles a tradicional hospitalidade beduína, farta e reverente. A hospitalidade era (e continua sendo) virtude importante na ética bíblica, sendo recomendada aos crentes (cf. Rm 12:13; 1Pe 4:9) e até mesmo estabelecida como requisito para liderança na igreja (1Tm 3:2; Tt 1:8). Não é de admirar que o autor de Hebreus aparentemente tenha em mente esta passagem quando exorta: “Não se esqueçam da hospitalidade, pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos” (Hb 13:2). O próprio Jesus ensinou sobre acolher o próximo em necessidade como a Ele mesmo (Mt 25:35). Abraão, com alegria, apressa-se em servir ao Senhor em seu lar, tomando quatro atitudes dignas de nota em sua hospitalidade:
(1) Convite generoso (v.3): Abraão convida os visitantes a ficarem com ele e descansarem: “Meu senhor, se acho favor aos teus olhos, não passes adiante do teu servo...” (v.3). Seu desejo era proporcionar acolhida e abrigo. Esse pedido ecoa o clamor dos discípulos no caminho de Emaús ao Cristo ressuscitado: “Fica conosco...” (Lc 24:29). Muitos já hospedaram anjos sem saber; Abraão, porém, sabia quem estava hospedando, e não mediu esforços para honrá-los.
(2) Cuidado e serviço humilde (v.4): Imediatamente oferece água para lavar os pés dos viajantes, ato de cortesia comum no Oriente (v.4a). Lembremos que, no cenáculo, nenhum dos discípulos quis assumir essa tarefa humilde, de modo que o próprio Jesus lavou os pés deles, dando exemplo de serviço (Jo 13:4-15). Abraão, porém, voluntariamente provê água e convida-os a repousar “debaixo da árvore” (v.4b), garantindo um descanso restaurador em meio ao calor do dia. Um bom anfitrião sempre cuida para que seus hóspedes tenham conforto e alívio.
(3) Alimentação abundante (v.5-8): Abraão promete “um bocado de pão” (v.5), mas prepara uma verdadeira festa para os visitantes. Ele corre à tenda e pede que Sara amasse pães com a melhor farinha (v.6); corre ao rebanho, escolhe um novilho tenro e bom e entrega ao servo para preparar a carne (v.7); depois serve coalhada, leite, pão e carne aos hóspedes (v.8). A refeição beduína era farta, muito além do mínimo necessário. Abraão ofereceu o melhor que tinha: pão de flor de farinha e carne de novilho macio. Ele não serviu restos ou algo de segunda categoria – diferente dos sacerdotes dos dias de Malaquias, que ofereciam animais defeituosos ao Senhor (Ml 1:7-14). Como observa Warren Wiersbe, Abraão deu o melhor de si em honra a Deus. Seu serviço foi caracterizado por prontidão, dedicação pessoal, rapidez, generosidade, cooperação e humildade:
Serviço imediato: Assim que viu os homens, Abraão não os ignorou nem os fez esperar. Cuidou de tudo sem demora (v.6). Ele “apressou-se” em preparar a refeição, mobilizando toda a casa para atendê-los. Como homem de fé, ele sabia que servir ao Senhor não admite procrastinação.
Serviço pessoal: Embora tivesse muitos servos e já fosse idoso, Abraão participou ativamente do preparo – não delegou a outrem aquela honra (v.5b-7). Ele mesmo correu ao gado e escolheu o novilho, engajando Sara e seus criados na tarefa. Um servo dedicado inspira outros a servir; Abraão, com seu exemplo, envolveu sua família e servos na hospitalidade.
Serviço rápido: Abraão serviu com presteza. O texto enfatiza seus verbos de ação: ele viu, correu ao encontro, apressou-se na tenda, correu ao rebanho, o servo apressou-se em preparar (vv.2,6,7). Toda a casa estava em movimento diligente. Abraão só parou quando tudo estava servido (v.8a). Essa prontidão revela seu zelo em honrar o Senhor com urgência e eficiência.
Serviço generoso: Conforme já notado, Abraão preparou um banquete (v.8) – forneceu muito mais do que o prometido e necessário. Havia pão em abundância, carne de qualidade, coalhada e leite fresco. Ele deu o melhor da farinha e o novilho mais tenro. Não houve mesquinhez em sua oferta; foi extravagante no dar, refletindo gratidão e reverência. “Ele não ofereceu o resto”, mas o melhor, como destaca Bräumer, diferentemente de ofertas inferiores que Deus reprova.
Serviço cooperativo: Abraão mobilizou toda sua casa. Enquanto Sara assava os pães, um criado preparava a carne, possivelmente outros servos traziam a coalhada e o leite. Foi um esforço conjunto. Wiersbe comenta apropriadamente que servos dedicados ao Senhor incentivam outros ao serviço – Abraão encorajou sua família a servir a Deus junto com ele.
Serviço humilde: Apesar de ser o anfitrião e um homem de posição, Abraão agiu com humildade profunda diante dos visitantes. Ele prostrou-se em terra perante eles (v.2), chamou a si mesmo de “servo” (v.3,5) e referiu-se ao lauto banquete que preparara modestamente como “um bocado de pão” (v.5). Ao servir a mesa, ficou de pé, assistindo os hóspedes enquanto comiam, em postura de servo (v.8b). Como observa Bräumer, Abraão procurou minimizar qualquer impressão de incômodo causado – tratou sua generosidade como se fosse algo simples, sem alardes. Ele serviu com verdadeiro espírito de humildade e reverência, sabendo que servia ao próprio Senhor.
Em contraste com a conduta irrepreensível de Abraão como anfitrião, logo Gênesis 19 nos mostrará a conduta perversa dos moradores de Sodoma para com esses mesmos visitantes – um forte contraste que a narrativa destaca intencionalmente. Mas antes disso, a cena na tenda de Abraão prossegue revelando o propósito gracioso da visita: a renovação da promessa do filho a Sara.
Abraão, o marido (18:9-15). Depois de saborear a refeição, o Senhor traz à tona o assunto principal de Sua visita a Abraão: a promessa do nascimento de Isaac, filho de Sara. Os visitantes perguntam: “Onde está Sara, tua mulher?” (v.9) – obviamente uma pergunta retórica, pois eles sabiam muito bem quem era Sara e onde ela estava. Em conformidade com os costumes, Sara não aparecera diante dos hóspedes, mantendo-se dentro da tenda, à porta, escutando a conversa (v.10b). A pergunta visa envolver Sara indiretamente, preparando-a para ouvir a promessa divina que será reiterada diretamente a Abraão.
Em resposta, Abraão informa que Sara “está aí na tenda” (v.9b). Então um dos visitantes – claramente o próprio Senhor – declara: “Certamente voltarei a ti por esse tempo da vida; e Sara, tua mulher, terá um filho” (v.10). Trata-se da reafirmação específica da promessa: dentro de aproximadamente um ano (tempo de uma gestação humana) o filho prometido nasceria de Sara. A palavra divina é enfática: o tempo está marcado, a pessoa (Sara) nomeada e o milagre especificado – a promessa agora vem com data fixa, removendo qualquer dúvida. Como comenta Bruce Waltke, o Senhor pode fielmente trazer vida da esterilidade e decadência. Deus estava declarando Seu poder de cumprir o impossível: dar um filho a um casal em idade avançada.
O versículo 11 enfatiza a realidade humana que tornaria isso incrível: “Abraão e Sara eram já velhos, avançados em idade; a Sara já lhe havia cessado o costume das mulheres” (v.11). Ou seja, biologicamente falando, ambos os cônjuges estavam com os corpos “amortecidos” para a procriação – Sara, além de sempre fora estéril, já havia passado da menopausa; Abraão também já tinha vigor declinante. Humanamente, a possibilidade de concepção era nula. A narrativa sublinha que o nascimento de Isaac só poderia ocorrer por uma intervenção sobrenatural, quase como uma “ressurreição” a partir de corpos já mortos para a fertilidade (cf. Rm 4:19; Hb 11:11-12). Esse contraste ressalta o tamanho do milagre que Deus estava prestes a realizar.
Diante da promessa, Sara reagiu com incredulidade e certo sarcasmo. O texto diz que ela “riu-se no seu íntimo” (ou seja, riu em silêncio, consigo mesma) e pensou: “Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer?” (v.12). O riso de Sara reflete a descrença de quem considera a promessa absurda: ela e o marido são velhos demais para tal prazer de ter um filho. Tanto Abraão quanto Sara inicialmente riram diante da ideia (cf. Abraão em Gn 17:17). No caso de Sara, seu riso cético é atribuído à completa impossibilidade natural de ser mãe naquela idade. A palavra hebraica usada para “velha” no verso 12 é balah, que significa “gastada, desgastada”. É um termo usado para roupas gastas (Js 9:13) ou ossos ressequidos (Sl 32:3), e essa é a única vez que aparece aplicado a uma mulher na Bíblia. A descrição é vívida: Sara via-se como um trapo velho, biologicamente obsoleta para gerar vida. Seu riso, portanto, foi de incredulidade diante da promessa divina, tão maravilhosa que lhe pareceu impossível.
Imediatamente, o Senhor reagiu à risada incrédula de Sara com uma interpelação a Abraão: “Por que se riu Sara, dizendo: Será verdade que ainda darei à luz, sendo velha?” (v.13) – pergunta o Senhor. Note-se que agora o narrador identifica explicitamente o visitante como “o Senhor” (YHWH), deixando claro de quem se trata. Deus dirige-se a Abraão, mas a repreensão é destinada a Sara (que ouvia), expondo amorosamente sua incredulidade oculta. Não há como esconder coisa alguma dAquele que conhece até os pensamentos do coração – o riso silencioso de Sara foi perfeitamente ouvido pelo Senhor onisciente. Aqui aprendemos que Deus leva a sério nossas reações internas à Sua palavra; Ele amorosamente confronta nossa falta de fé para nos conduzir à confiança.
Em seguida, o Senhor faz uma das afirmações mais sublimes das Escrituras acerca do Seu próprio poder: “Acaso, para o SENHOR, há coisa demasiadamente difícil?” (v.14a). Esta pergunta retórica enfatiza a onipotência divina. Não existe “impossível” para Deus – nenhuma dificuldade ou obstáculo O pode deter. Como que reafirmando a promessa, Deus repete: “Daqui a um ano, neste mesmo tempo, voltarei a ti, e Sara terá um filho” (v.14b). Diante da dúvida humana, Deus sublinha Sua fidelidade e poder absoluto. Essa declaração “há algo demasiado difícil para o Senhor?” tornou-se proverbial na teologia bíblica: mais tarde, Jeremias recordaria essa palavra ao exaltar o poder divino (Jr 32:17,27), Zacarias retomaria o tema (Zc 8:6), e no Novo Testamento o anjo Gabriel reafirmaria que “para Deus nada é impossível” (Lc 1:37). Jó confessaria: “Bem sei que tudo podes” (Jó 42:2), e o apóstolo Paulo exultaria no Deus que “é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além do que pedimos ou pensamos” (Ef 3:20-21). Ou seja, toda a Bíblia ecoa esta verdade revelada aqui a Abraão e Sara: o Senhor é onipotente! Sara, ouvindo a interpelação divina, ficou tomada de medo e tentou negar: “Eu não ri” – disse ela assustada, talvez aparecendo à porta (v.15). Ao que o Senhor replicou categoricamente: “Não é assim; é certo que riste” (v.15). Com isso, Deus amorosamente a confronta, desmascarando a pequena mentira nascida do medo. O Senhor não deixaria Sara esconder sua incredulidade por trás de uma negação; Ele expôs o fato para tratar sua fé. “O medo concebeu a mentira, e a mentira foi desmascarada pela onisciência divina”, comenta apropriadamente um expositor. A Bíblia não encobre as falhas nem mesmo dos fiéis – “não disfarça os pecados de seus heróis e heroínas da fé”, lembra Waltke. Assim, Sara foi levada a encarar sua descrença diante de Deus. Mais tarde, porém, podemos inferir que ela creu, pois Hebreus 11:11 a inclui entre os exemplos de fé, afirmando que “pela fé, também a própria Sara recebeu poder para conceber, mesmo passado da idade, pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa”. Deus, portanto, transformou o riso de incredulidade de Sara em júbilo de fé no tempo devido (cf. Gn 21:6). Mas naquele momento inicial, coube-lhe calar diante da assertiva divina.
Em resumo, nesta primeira parte de Gênesis 18 vemos Abraão em comunhão com Deus no ambiente do lar, recebendo em graça renovada a promessa do filho impossível que nasceria dentro de um ano. A fidelidade de Deus em cumprir Sua palavra brilha em contraste com a fraqueza humana que hesita em crer no incrível. O nome do futuro filho, Isaque (“Ele ri”), seria um lembrete do riso tanto da dúvida quanto, depois, do regozijo no cumprimento da promessa. Nada é demasiadamente maravilhoso para o Senhor! (v.14). Tendo reafirmado a graça, agora Deus envolve Abraão na revelação de Seu juízo iminente, destacando outro aspecto do caráter do patriarca: o intercessor que conhece a justiça de Deus.
Abraão, o profeta (18:16-19). Terminado o momento de comunhão e promessa na tenda, os homens se levantam e olham para as bandas de Sodoma, prestes a partir naquela direção. Abraão, como bom anfitrião, caminha com eles para despedir-se, acompanhando-os por um trecho do caminho (v.16). Nesse contexto, o Senhor decide revelar a Abraão o que está para fazer em Sodoma. Deus diz: “Ocultarei a Abraão o que estou para fazer?” (v.17) e considera que Abraão certamente se tornará uma grande nação e que nele serão benditas todas as nações da terra (v.18). Ou seja, por causa do papel único de Abraão nos propósitos divinos, Deus opta por tratá-lo não como um mero servo, mas como amigo e profeta que pode conhecer os planos do Senhor. Essa intimidade de comunicação é destacada em Amós 3:7: “Certamente o Senhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas”. Abraão aqui é visto como profeta de Deus (cf. Gn 20:7), alguém com quem o Senhor compartilha Seus desígnios para que interceda e ensine a posteridade.
No verso 19, o Senhor explicita ainda mais por que Abraão era digno de receber essa revelação: “Porque eu o escolhi, a fim de que instrua seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, praticando a justiça e o juízo; para que o Senhor faça vir sobre Abraão o que tem falado a seu respeito” (v.19). Aqui Deus confirma ter escolhido Abraão não apenas para receber bênçãos, mas para ser um mestre das futuras gerações, ensinando-as a andar nos caminhos de Deus. Abraão é depositário da revelação divina não só por si mesmo, mas para transmitir aos descendentes os valores do Senhor (justiça e retidão). Ele seria, portanto, o educador da fé para sua família e povo. De fato, nas culturas do Antigo Oriente, não existiam “escolas” formais no período patriarcal – a família era o núcleo de toda educação moral e espiritual. Deus confiou a Abraão essa responsabilidade de pai e líder espiritual do seu lar, sabendo que o patriarca seria fiel em guiar os seus no temor de Deus.
Há aqui um princípio valioso: privilégio espiritual implica responsabilidade espiritual. Abraão recebera promessas singulares, mas junto delas vinha o encargo de orientar sua casa na aliança com Deus. O grande propósito de Abraão, pai da nação de Israel e “pai de todos os que creem” (Rm 4:11), incluía ser um exemplo de transmissão da fé aos filhos. Podemos listar grandes missões individuais na história bíblica – Noé construir a arca e repovoar a terra após o dilúvio; Moisés libertar Israel do Egito; Josué conduzir o povo à terra prometida; Davi estabelecer um reino; Salomão edificar o templo; João Batista preparar o caminho do Messias; Paulo levar o evangelho aos gentios, etc. No caso de Abraão, embora ele tenha tido vários feitos, o texto sugere que seu maior legado seria formar uma linhagem santa instruída nos caminhos do Senhor. Ele deveria ser sacerdote no próprio lar, ensinando Isaac, depois os netos, e assim sucessivamente, para que o propósito de Deus se cumprisse plenamente através de uma descendência fiel.
Interessantemente, Abraão viveu para ver apenas parcialmente esse encargo em ação. Quando Isaque nasceu, Abraão tinha 100 anos; Isaque casou-se aos 40 (Abraão com 140); os netos Jacó e Esaú nasceram quando Abraão tinha cerca de 160; e Abraão morreu aos 175 anos. Ou seja, Abraão conviveu uns 15 anos com seus netos gêmeos. Mesmo assim, seu papel como pai da fé extrapolaria sua vida: as gerações seguintes lembrariam suas instruções e exemplo. Hebreus 11:12-13 ressalta que Abraão morreu sem ver todas as promessas cumpridas, mas legou a visão e a fé a seus descendentes, que se reconheceram “estrangeiros e peregrinos na terra” buscando a pátria celestial. Abraão comprometeu-se com as futuras gerações (cf. Sl 78:3-8) e não foi como o seu descendente rei Ezequias, que pensou apenas em si e negligenciou o legado espiritual para seu filho Manassés (2Rs 20:19-21; 21:1-9). A lição aqui é clara: cabe aos pais e líderes hoje transmitir a fé adiante, preparando os filhos para andar com Deus, pois esse foi um dos principais propósitos pelo qual Deus escolhe e abençoa Seu povo. De posse dessas verdades e dessa relação íntima com Deus, Abraão está pronto para desempenhar o papel de intercessor em prol de Sodoma. Deus revelou-lhe a gravidade do pecado da cidade e o juízo planejado, esperando que Abraão responda como um profeta e amigo de Deus. E é exatamente o que ocorre a seguir.
Abraão, o intercessor (18:20-33). Ao decidir revelar Seus planos de juízo a Abraão, Deus diz: “Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muitíssimo” (v.20). A linguagem transmite que a maldade daquelas cidades atingira um ponto altíssimo, gerando um “clamor” que chega até Deus. A ideia de “clamor” (hebraico za‘aq) carrega duas nuances possíveis: pode ser o grito contra a cidade – isto é, o brado das vítimas oprimidas ali pedindo socorro – ou simplesmente o grito do pecado em si, tamanha a sua gravidade. Derek Kidner comenta que essa expressão pode significar tanto o clamor contra Sodoma quanto o mal “gritante” do lugar. De todo modo, é um termo técnico de linguagem forense, denotando o apelo de alguém cujos direitos estão sendo violentamente violados. Ou seja, Sodoma era culpada de crimes tão atrozes que geravam um apelo estridente por justiça. “Deus então ouve o grito dos violentados e intervém como juiz”, explica um comentarista. Assim como outrora o sangue de Abel clamou desde a terra (Gn 4:10), agora o clamor das injustiças e perversões de Sodoma sobe até o céu, requerendo ação divina.
Por isso, Deus anuncia: “Descerei e verei se de fato o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não for, sabê-lo-ei” (v.21). Essa declaração descreve uma “investigação” divina antes do juízo. Evidentemente, Deus é onisciente e já conhecia plenamente a situação; porém, a linguagem antropomórfica enfatiza a justiça meticulosa de Deus, que age com base em fatos estabelecidos, não por boatos. É como se o Senhor instaurasse um inquérito formal para constatar in loco a veracidade das acusações. Bruce Waltke nota que essa expressão “descerei e verei” é a forma figurada do narrador dizer que Deus sempre investiga plena e cuidadosamente o crime antes de emitir sentença. Vemos algo similar em Gn 11:5 (Torre de Babel), onde “o Senhor desceu para ver a cidade”. Deus, o reto Juiz, “não executa julgamentos baseado em rumores”, frisa G. Livingston. Há aqui uma lembrança de que Deus é absolutamente justo: Ele nunca punirá o inocente nem absolverá o culpado sem base – Seu juízo é perfeito em conhecimento. A “descida” divina é, pois, garantia de equidade.
Após esse monólogo divino (vv.17-21), os dois anjos partem em direção a Sodoma, mas Abraão permanece ainda diante do Senhor (v.22). “Abraão se pôs diante do Senhor” – uma posição de pé na presença de Deus, pronto para interceder. Enquanto os anjos seguem para executar o juízo, Abraão, movido por compaixão e senso de justiça, aproxima-se e inicia uma ousada oração intercessora em favor dos justos que porventura estivessem em Sodoma (e implicitamente em favor da cidade). Aqui vemos Abraão no ápice de seu papel de amigo de Deus e defensor dos homens: ele “permanece na presença do Senhor” em oração, carregando uma causa a suplicar. Henry Morris observa que este episódio é o mais notável exemplo de oração intercessória em toda a Bíblia. De fato, o nome de Abraão figura aqui ao lado de grandes intercessores como Moisés, Samuel, Elias, Jeremias, Daniel, os apóstolos e o próprio Senhor Jesus. Abraão já havia lutado literalmente para salvar Ló e os sodomitas quando da guerra dos reis (Gn 14); agora luta em oração para poupar seu sobrinho e as cidades da planície da destruição iminente. Ele sente um peso no coração por aquelas almas perdidas e especialmente por Ló e sua família, e precisa compartilhar esse fardo com o Senhor. Nas palavras de Wiersbe, Abraão tinha compaixão tanto de Ló quanto dos pecadores de Sodoma e Gomorra, e por isso ora com insistência.
A intercessão de Abraão é um diálogo respeitoso porém audacioso com Deus, no qual ele apela ao caráter justo e misericordioso do Senhor. Podemos delinear sete aspectos notáveis nessa oração de Abraão:
(1) Reconhecimento do agravamento do pecado (v.20). Conforme vimos, Abraão está ciente da terrível condição de Sodoma, cuja maldade se agravara muitíssimo. Ele não nega a realidade do pecado; antes, reconhece a justiça do julgamento caso a cidade seja tão perversa quanto o “clamor” indica. As Escrituras já registraram a fama de Sodoma por sua perversidade (Gn 13:13), especialmente pelos pecados sexuais contra a natureza (homens desejando outros homens, cf. Gn 19:5; Jd 7; Rm 1:27) e pela arrogância e falta de arrependimento (Is 3:9; Jr 23:14). O “clamor” das vítimas de violência e da própria imoralidade gritante subia a Deus. Abraão, sendo justo, certamente também se angustiava com tal situação (cf. 2Pe 2:7-8). Derek Kidner salienta que esse “clamor” pode ser o brado contra a cidade ou o brado do próprio mal ali cometido. De todo modo, a depravação de Sodoma era extrema e pedia resposta divina.
(2) Apelo à justiça imparcial de Deus (vv.23-25). Abraão inicia suplicando: “Destruirás o justo com o ímpio?” (v.23). Ele prossegue propondo uma hipótese: e se houver cinquenta justos na cidade? Farás perecer o lugar e não o pouparás por amor aos cinquenta justos? (v.24). “Longe de ti fazer tal coisa, matares o justo com o ímpio... Não faria justiça o Juiz de toda a terra?” (v.25). Aqui Abraão fundamenta sua intercessão no caráter justo de Deus. Ele sabe que Deus é santo e não trata o justo e o ímpio da mesma forma. Seria contra a natureza divina condenar o justo juntamente com os perversos como se fossem todos iguais. Essa convicção dá ousadia a Abraão para argumentar com Deus. Em outras palavras, Abraão pede que a cidade seja poupada em vista dos justos que nela possam existir, porque não combina com a justiça de Deus eliminar inocentes junto com culpados. Waltke resume assim o apelo de Abraão: ele propõe que o destino de todos seja determinado não pelos perversos da comunidade, mas pelos justos presentes nela. Esse é um ponto teológico significativo: a presença dos justos pode trazer bênção preservadora até mesmo aos ímpios ao redor (cf. Mt 5:13 – os discípulos como sal da terra). Abraão está, em essência, pedindo misericórdia para a cidade por amor aos crentes ali.
(3) Persistência insistente na intercessão (vv.24-32). Abraão não ora apenas uma vez, mas seis vezes seguidas, “negociando” humildemente com Deus a redução do número de justos necessários para poupar a cidade. Começa em 50, depois 45, 40, 30, 20 e finalmente 10. A cada petição, Deus responde afirmativamente que poupará Sodoma se achar aquele número de justos. Abraão, então, vai ousando pedir um pouco mais, diminuindo a cifra. Notemos que Abraão reconhece sua pequenez (“sou pó e cinza”, v.27) e pede permissão respeitosa (“não se acenda a ira do Senhor, se eu falar...”, vv.30,32), mas continua intercedendo até onde sua consciência permite. Ele pára em dez justos – possivelmente pensando na família de Ló (Ló, a esposa, duas filhas solteiras em casa, ao menos duas filhas casadas e seus maridos, talvez alguns filhos pequenos – quem sabe se chegaria a dez?) ou talvez considerando dez o menor número para formar uma comunidade. De qualquer forma, o número 10 provavelmente representa o mínimo de um grupo social significativo. Abraão não ousa ir abaixo disso. O fato notável é que Deus concede todas as petições de Abraão até ali: Ele promete poupar Sodoma se houver 10 justos (v.32). Isso mostra a impressionante condescendência de Deus em responder positivamente à oração intercessória do patriarca. Hansjörg Bräumer destaca que as orações de Abraão não ficam sem resposta; pelo contrário, Deus responde a cada um dos seis pedidos, o que nos leva a crer que essa disposição graciosa de Deus em ouvir é a base de todas as respostas às nossas orações. Ou seja, a intercessão insistente de um justo tem grande eficácia (cf. Tg 5:16b). Deus estava disposto a poupar uma cidade inteira e perversa por causa de uns poucos crentes – tal é o valor que Ele dá aos Seus!
(4) Apelo misturado de ousadia e humildade (v.27). Abraão demonstra uma combinação exemplar de intrepidez e humildade na sua oração. Ele foi ousado ao “se aventurar” em falar repetidamente ao Senhor, barganhando pela misericórdia sobre Sodoma; mas ao mesmo tempo reconheceu: “Sou apenas pó e cinza” (v.27). Não havia arrogância em sua abordagem, e sim profunda reverência. Ele sabia não ter mérito próprio para exigir nada – era dependente da graça. Ainda assim, por conhecer o coração compassivo de Deus, ele fala com franqueza. Bräumer comenta que Abraão “não exige nada de Deus”; seus pedidos são submissos e vêm de um coração dolorido. Prova disso é que por diversas vezes ele busca a aprovação divina para continuar: “Não se ire o Senhor, se eu ainda falar...” (v.30, 32). Essa é a atitude do verdadeiro intercessor: aproxima-se confiadamente do trono da graça, mas com contrição e humildade, “cheio de ousadia pelo sangue de Jesus” (cf. Hb 10:19) e ao mesmo tempo consciente de ser indigno em si mesmo. Abraão aqui é modelo de como interceder: com coragem baseada no caráter de Deus, e com humildade baseada na própria pequenez humana.
(5) Submissão final à soberania divina (v.33). Por fim, “cessou Abraão de falar; e o Senhor se retirou, e Abraão voltou para o seu lugar” (v.33). Abraão concluiu suas petições no número dez e então entregou a questão a Deus. Ele se rende ao propósito soberano do Senhor. O silêncio de Abraão ao parar em dez pode indicar que ele percebeu que não havia nem mesmo dez justos em Sodoma (de fato, a narrativa mostrará que havia apenas quatro pessoas resgatáveis, e mesmo destas, uma ficou para trás). Ao cessar de pedir, Abraão confia o desfecho a Deus – ele não “insiste” além do que julgou adequado. Essa rendição mostra que o intercessor maduro ora, insiste, mas ao final reconhece que a vontade de Deus é perfeita. O Senhor se foi, Abraão voltou para casa. E o juízo seguiu seu curso. Infelizmente, as cidades ímpias haviam ultrapassado todo limite, “foram longe demais para serem poupadas”, e não se encontraram sequer dez justos ali. “Não havia qualquer sinal de arrependimento” coletivo em Sodoma, de modo que o juízo tornou-se inevitável. Ainda assim, percebe-se que a oração de Abraão não foi em vão: embora Sodoma e Gomorra fossem destruídas, Ló e suas filhas foram salvos da catástrofe – e o texto enfatiza que isso ocorreu por lembrança de Deus à intercessão de Abraão. Ou seja, Deus respondeu ao clamor do patriarca, ao menos em parte, livrando os justos existentes (Ló) do meio dos ímpios. Warren Wiersbe nota que a destruição repentina de Sodoma e Gomorra se tornou, ao longo das Escrituras, uma ilustração clássica do julgamento divino – Jesus a usou como exemplo de juízo final (Lc 17:28-32), assim como Pedro e Judas (2Pe 2:6; Jd 7). Contudo, mesmo em meio a esse juízo, vemos a misericórdia operando para tirar os justos.
Abraão, portanto, se destaca aqui como amigo de Deus e pai dos crentes, exercendo ministério de intercessão em favor dos perdidos. Sua oração sincera nos ensina sobre a compaixão pelos pecadores e a confiança na justiça divina. Ao mesmo tempo, este capítulo exalta o equilíbrio perfeito em Deus entre graça e juízo: Ele estava disposto a perdoar uma cidade inteira por amor a uns poucos crentes, mas não iria ignorar o mal flagrante caso não houvesse arrependimento e justiça ali. No fim de Gênesis 18, Abraão volta para casa enquanto a planície de Sodoma aguarda o desfecho da visita divina. A tensão permanece: haveria dez justos? O capítulo 19 revelará a triste resposta e nos mostrará outro personagem em contraste com Abraão – Ló, o sobrinho salvo “a reboque” das orações e misericórdia de Deus, porém marcado por escolhas trágicas.




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