A Saída do Éden | Gênesis 3:20-24
- João Pavão
- 22 de ago.
- 9 min de leitura

Os versículos finais de Gênesis 3 concluem o relato da Queda, mostrando as consequências imediatas do pecado de Adão e Eva. Após Deus anunciar juízos ao casal e à serpente (Gn 3:14–19), a narrativa descreve três acontecimentos marcantes: (1) Adão dá à sua esposa um nome significativo; (2) Deus provê vestimentas adequadas para os dois; (3) O Senhor os expulsa do jardim do Éden, impedindo o acesso à árvore da vida. Analisaremos cada parte com detalhes exegéticos (incluindo termos hebraicos e contexto histórico-teológico) e extrairemos lições práticas de cada seção, mantendo o padrão claro e didático das exposições anteriores.
Imediatamente após ouvir que retornaria ao pó (a mortalidade humana) e que sua mulher enfrentaria dores de parto, Adão toma uma atitude surpreendente: ele “chamou sua mulher de Eva” (em hebraico Chavah, חַוָּה). O texto explica o motivo: “porque ela seria a mãe de todos os viventes” (3:20). O nome Eva soa semelhante à palavra aramaica para “serpente” (ḥiwyāʾ), o que levou alguns comentaristas judeus antigos a sugerirem que Adão estivesse, talvez amargamente, apelidando sua esposa de “serpente” por tê-lo enganado. Contudo, essa interpretação é considerada improvável. A maioria dos estudiosos entende Chavah como aparentada ao verbo hebraico chaiáh (חיה, “viver”), de modo que Eva significa “vida” ou “vivente”. Essa leitura é confirmada pela tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, que verte “Eva” como Zoe, literalmente “vida”. Assim, o próprio narrador bíblico vincula o nome de Eva ao seu destino de ser progenitora da humanidade.
É notável que Adão só dá um nome pessoal à sua companheira depois da Queda. Antes disso, ele a chamava genericamente de “mulher” (isháh, derivado de ish, “homem”, cf. Gn 2:23). Ao nomeá-la “Vida”, Adão reconhece que, apesar da entrada da morte no mundo (Gn 2:17; 3:19), haverá continuidade da vida humana através de sua esposa. Alguns intérpretes veem aqui um ato de fé de Adão na promessa divina de que haveria descendência e redenção (conforme Gn 3:15) – mesmo diante do juízo de morte, ele escolhe ressaltar a vida que prosseguirá. De fato, Eva tornar-se-ia mãe de toda a humanidade, cumprindo seu nome. Por outro lado, há quem entenda que Adão simplesmente constatou o papel vital de Eva, sem necessariamente expressar fé profunda naquele momento. Em todo caso, o nome reflete a misericórdia divina: Deus não exterminou o casal imediatamente; ao contrário, permitiu que gerassem filhos e povoassem a terra. Em meio ao julgamento, há uma semente de esperança – a vida continuaria através de “a mãe de todos os viventes”.
Antes de expulsar o casal do Éden, Deus cuida de suas necessidades. O versículo 21 diz que “O Senhor Deus fez túnicas de pele para Adão e sua mulher, e os vestiu.” Aqui vemos a graça de Deus em ação: mesmo após a desobediência humana, Ele mesmo confecciona roupas duráveis para cobrir a nudez de Adão e Eva. No hebraico, a palavra traduzida por “túnicas” (kuttonet, כֻּתֹּנֶת) refere-se a uma veste longa que cobria o corpo até os joelhos ou tornozelos, semelhante a uma túnica comprida. Isso contrasta com as “cintas” de folhas de figueira que o casal costurou para si (Gn 3:7), as quais eram improvisadas e insuficientes. As vestes que Deus fornece são de pele de animal, indicando que provavelmente um animal foi sacrificado para cobrir a vergonha do homem e da mulher. Embora o texto não descreva o evento, implicitamente este pode ter sido o primeiro derramamento de sangue na criação, pré-figurando os sacrifícios que mais tarde cobririam simbolicamente o pecado do ser humano. O fato de Deus prover roupas de couro sugere um cuidado especial – trajes muito mais adequados e duráveis do que folhas secas.
Há, inclusive, profundidade simbólica nesse ato divino. “Vestir” no original (labash em hiphil) muitas vezes é usado para investir alguém de dignidade ou ofício – por exemplo, quando José foi vestido de linho por Faraó (Gn 41:42) ou quando Moisés vestia os sacerdotes com suas túnicas sagradas. Assim, alguns comentaristas veem um eco cultual: Deus, ao cobrir Adão e Eva, age como quem prepara o ser humano para ainda se aproximar dEle de forma reverente, já que a nudez absoluta já não era apropriada diante do Santo. De fato, depois da queda a nudez passou a carregar vergonha (Gn 3:7,10), sinal de que a inocência foi perdida. Deus cobre essa nudez, indicando tanto compaixão quanto a necessidade de expiação – uma lembrança de que o pecado traz vergonha que apenas Deus pode verdadeiramente cobrir. João Calvino observou que essas vestes, mais que um presente gratuito, também serviam de “lembrança da pecaminosidade” do casal. Ou seja, cada vez que Adão e Eva vestissem aquelas túnicas, saberiam que não podiam estar nus perante Deus como antes – sua relação com o Criador havia mudado. Ainda assim, é confortador notar que o próprio Senhor tomou a iniciativa de vesti-los, demonstrando cuidado amoroso: Ele não os deixa enfrentar o novo mundo caído desprovidos de proteção.
Após vestir o casal, Deus declara uma preocupação intratriuna ou celestial: “E disse o Senhor Deus: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal…’” (3:22). A expressão “como um de nós” intriga os leitores. A interpretação mais aceita é que Deus está falando na pluralidade de Sua majestade ou no seio da corte celestial, incluindo os anjos que O servem. Em Gênesis 1:26, quando Deus disse “Façamos o homem à nossa imagem”, entendemos de forma semelhante – um diálogo divino possivelmente com Seu conselho celestial ou um prenúncio da Trindade. Aqui, “um de nós” indica que o homem, ao comer do fruto proibido, adquiriu uma experiência de “conhecimento do bem e do mal” que o assemelha, de certo modo, aos seres celestiais (Deus e os anjos). Importante frisar: isso não significa que o homem se tornou igual a Deus em santidade ou poder – longe disso. A semelhança reside apenas no aspecto do conhecimento moral/experiencial. O próprio Senhor reconhece que a promessa da serpente continha um meio-verdade: de fato, Adão e Eva ganharam uma percepção do bem e do mal, mas a um custo terrível e não se tornaram “como Deus” em plenitude. Diferentemente de Deus, o homem agora conhece o mal não de forma teórica, mas por experiência própria – e conhece o bem por contraste com a vergonha e a culpa que antes não sentia.
A frase segue: “…e agora, para que não estenda a mão e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente…” – e o versículo interrompe a fala de Deus inesperadamente, sem completar a sentença. Essa construção abrupta é rara na Bíblia e é chamada de aposiopese (quando a fala é suspensa no meio). Qual o sentido disso? O texto dá a entender que Deus, no meio de Sua declaração, age rapidamente para impedir que o ser humano caído tenha acesso à imortalidade física em seu estado de rebelião. É como se Deus dissesse, em outras palavras: “Agora que eles pecaram, não posso permitir que se tornem imortais também, senão…!” – e antes mesmo de terminar o pensamento, Ele expulsa Adão e Eva do jardim. A urgência divina protege o próprio homem de uma condição pior. Imagine o ser humano vivendo eternamente em pecado, sem possibilidade de redenção, preso em corrupção perpétua – seria desesperador. Assim, Deus barrou o caminho à árvore da vida por amor e justiça. Isso implica que, enquanto estavam no Éden, Adão e Eva tinham acesso livre à árvore da vida (Gn 2:9,16) e poderiam ter comido dela, mas pelo visto não o fizeram a tempo. Agora, após o pecado, comer do fruto da vida eterna significaria eternizar a queda sem solução, algo que Deus soberanamente evita. Ele não permitirá que o homem tome esse atalho para a imortalidade em pecado.
Há também um jogo de palavras interessante nos originais: Deus diz “lest he reach out his hand” (“para que não estenda a mão”) e em seguida “o Senhor Deus o lançou fora do jardim” (v.23). Em hebraico, “estender” (shalah יד, estender a mão) e “lançou/mandou embora” (shalach, enviar) vêm da mesma raiz, sugerindo que Deus “se adianta” ao gesto humano. Ou seja, antes que o homem estenda a mão para pegar a vida eterna de forma ilícita, Deus “estende a mão” em juízo e graça, expulsando-o do Éden. Temos aqui uma ação preventiva divina: o Senhor impede o ser humano decaído de usurpar algo que o tornaria um pecador imortal. Isso pode soar severo, mas na verdade contém misericórdia – a morte física, embora consequência do pecado, também abre caminho para que no futuro haja redenção e ressurreição, em vez de uma vida eterna em rebelião.
Chegamos ao desfecho dramático: o ser humano é expulso do Jardim do Éden. O versículo 23 relata que o Senhor Deus “o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.” Isso cumpre aquilo que Deus havia dito – Adão, formado do pó (Gn 2:7), agora volta à terra para dela tirar seu sustento até enfim retornar ao pó na morte (Gn 3:19). A palavra hebraica para “lançou fora” aqui (vayeshalchehu, de shalach) indica expulsar ou enviar embora. No verso seguinte (v.24), reforçando a ideia, outro verbo é usado: Deus “expulsou” (Heb. garash) o homem, e este termo carrega um sentido ainda mais forte de banimento completo. Em outras passagens, garash descreve, por exemplo, expulsar inimigos de uma terra (Ex 23:28-31). O renomado comentarista U. Cassuto destaca que Deus não apenas manda Adão sair – Ele o expulsa de modo definitivo, impedindo qualquer tentativa de retorno por conta própria. Assim, não resta dúvida de que o Éden está off-limits para a humanidade caída. Não foi uma saída voluntária de Adão; foi um exílio imposto por Deus.
Como guardiã da entrada do paraíso perdido, Deus coloca a primeira figura angelical mencionada nas Escrituras: os querubins. O texto diz que Deus “colocou querubins ao oriente do jardim do Éden” (3:24). Mas quem são esses querubins? Diferente da imagem popular de anjinhos bebês, os querubins bíblicos são seres poderosos associados à presença de Deus. Estudos linguísticos indicam que “querubim” (Heb. kerubim) tem paralelo com criaturas aladas da iconografia do antigo Oriente, possivelmente apresentando características de leão alado com rosto humano – guardião de lugares sagrados. Na Bíblia, eles aparecem adornando o Tabernáculo e o Templo: imagens de querubins eram bordadas no véu do santuário (Êx 26:31) e esculpidas sobre a Arca da Aliança, formando o trono de Deus (Êx 25:18-22). Salomão também colocou dois grandes querubins dentro do Santo dos Santos no Templo (1Rs 6:23-28). Ou seja, desde Gênesis, os querubins representam a guarda da santidade divina. Aqui em Gn 3:24, eles ficam “ao oriente do jardim”, indicando que a porta de entrada do Éden ficava no lado leste. Curiosamente, tanto o tabernáculo quanto o templo de Israel também tinham sua entrada principal voltada para o leste. Assim, a colocação dos querubins no lado leste do Éden ecoa a estrutura do santuário: sugere que o Éden era como o primeiro “santuário” de Deus na terra, onde Ele se encontrava com o homem, e agora esse santuário está vedado pelo guardião celestial.
Além dos querubins, foi posta “uma espada flamejante que se revolvia” (v.24). A imagem é vívida: uma chama em forma de espada giratória bloqueando o caminho. Esse “girar” (mithappeket em hebraico) transmite a ideia de um movimento contínuo, talvez ziguezagueando como um raio. O fogo na Bíblia frequentemente sinaliza a presença de Deus em santidade e juízo (cf. Ex 3:2; 19:18; Hb 12:29). Portanto, a espada flamejante reforça que a santidade divina guarda o acesso à vida eterna. Qualquer tentativa humana de reentrar no Éden agora encontraria a morte imediata – como Balaão viu o anjo com espada no caminho (Nm 22:31-33). A missão combinada dos querubins e da espada era “guardar o caminho da árvore da vida”. Assim, Deus sela o jardim não apenas fisicamente, mas espiritualmente: o homem, em pecado, não pode por si mesmo reverter a queda ou retomar a comunhão plena com Deus. É preciso notar que Deus não destruiu a árvore da vida nem o Éden – Ele os preserva, mas o acesso está proibido até que Ele mesmo forneça um caminho de volta no tempo devido.
Muitos teólogos enxergam nessa cena final de Gênesis 3 um rico simbolismo teológico. O jardim do Éden é pintado como um “santuário arquetípico” – o protótipo do templo – onde estavam presentes símbolos que depois surgem no culto: além dos querubins e do oriente, note que Gênesis 2 descreveu um rio que saía do Éden e metais preciosos no jardim (Gn 2:10-12), reminiscências dos elementos de templos posteriores. A árvore da vida em meio ao jardim pode ser comparada à Menorá (candelabro de ouro) no santuário, que pela tradição judaica simbolizava a árvore da vida e a luz da presença divina. Em suma, o Éden era o lugar da presença de Deus com a humanidade – a “morada” (Shekinah) de Deus com o homem inocente. Quando Adão e Eva pecam, eles perdem esse paraíso-presença. Ser expulsos do Éden é, na essência, serem separados da intimidade com Deus, exilados da terra ideal onde havia vida plena. A guarda armada do portão indica que o homem não pode voltar pelas suas próprias forças ou méritos. A porta oriental do Éden permaneceria fechada… até que, muitos séculos depois, outro “filho de Deus” viesse reabrir o caminho.




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