A Luz e a Palavra Criadora (Primeiro Dia) | Gênesis 1.3–5
- João Pavão
- 3 de ago.
- 7 min de leitura

O versículo 3 marca a primeira instância do padrão criativo: "Disse Deus... e houve". Deus cria por meio da palavra, não por meio de instrumentos ou batalhas, como nas mitologias vizinhas. O comando divino é imediatamente eficaz: a luz vem à existência como resposta direta à ordem do Criador.
A questão notável é que a luz aparece antes da criação dos corpos celestes no quarto dia (1.14–19). Isso mostra que a luz não está intrinsecamente dependente do sol; ela é produto direto do decreto divino. Em termos físicos, pode-se interpretar como a criação de uma fonte primária de radiação ou energia luminosa — ou, mais teologicamente, como manifestação da própria presença divina, que "habita em luz inacessível" (1Tm 6.16).
Além disso, Deus faz uma separação entre luz e trevas — um gesto de organização cósmica. Essa separação é a primeira de várias (luz/trevas, águas/céus, águas/terra), todas enfatizando a imposição de ordem ao caos inicial. A luz é então nomeada “dia”, e as trevas, “noite”. Ao nomear os elementos, Deus exerce autoridade soberana sobre eles.
O ciclo de "tarde e manhã" que encerra o primeiro dia é significativo. Ele não corresponde à ideia moderna de um dia solar (já que o sol ainda não fora criado), mas segue o padrão hebraico do dia que começa ao pôr do sol. Esse ritmo diário fundamenta posteriormente a semana de sete dias, culminando no sábado (2.1–3).
Os Dias da Criação – Literais ou Simbólicos?

Um dos debates centrais em Gênesis 1 é se os “dias” da criação devem ser entendidos como dias de 24 horas ou como períodos simbólicos de tempo. No texto bíblico, cada dia é marcado pelas expressões “tarde e manhã”, sugerindo à primeira vista um dia comum. De fato, o uso sequencial de números ordinais (primeiro dia, segundo dia, etc.) reforça a interpretação literal de uma semana regular de sete. Nesse sentido, muitos leitores tradicionalmente entendem que Deus criou tudo em seis dias literais e descansou no sétimo, formando a base para a semana de trabalho humano.
Por outro lado, vários estudiosos e teólogos ao longo da história propuseram interpretações não literais para esses dias. Alguns veem os dias como períodos longos de tempo (a chamada teoria do “dia-era”), tentando harmonizar o relato bíblico com a idade científica do universo. Outros sugerem que os dias formam um quadro literário ou estrutura temática, não devendo ser tomados em sequência cronológica estrita. Nessa visão, Gênesis 1 usa a forma de uma semana para comunicar verdades teológicas – como a ordem e a intencionalidade da criação – em vez de fornecer uma linha do tempo científica exata. Por exemplo, a chamada Hipótese do Quadro destaca que os dias estão arranjados em dois tríades paralelas (Dias 1–3 e Dias 4–6) que correspondem entre si, sugerindo um arranjo literário deliberado.
É importante notar que o próprio texto permite algum grau de flexibilidade na palavra “dia” (“yom” em hebraico). Em Gênesis 1, o uso de “dia” claramente aponta para um ciclo normal de tarde e manhã. Contudo, em outros contextos bíblicos “dia” pode significar simplesmente um tempo indefinido (“no dia em que...” pode significar “quando”). Isso indica que a palavra em si não impede interpretações analógicas ou simbólicas, desde que o contexto assim o justifique. Alguns Pais da Igreja, como Agostinho, chegaram a entender os dias de forma não literal, sugerindo que Deus criou tudo num instante e usou a linguagem de dias para acomodar a narrativa à compreensão humana. Já na era moderna, muitos cristãos que aceitam as descobertas científicas preferem ler Gênesis 1 de maneira não literal, vendo os dias como uma estrutura literária ou como uma revelação teológica em formato narrativo, e não como cronologia precisa.
Importa ressaltar que, conforme o comentarista Gordon Wenham destaca, o texto de Gênesis 1 em seu significado original provavelmente retrata uma semana normal. “Dia” ali tem seu sentido básico de um período de 24 horas, e a inclusão de detalhes como “houve tarde e manhã” e a enumeração dos dias indica que a narrativa intencionalmente descreve uma semana de atividade divina. Porém, Wenham adverte que insistir em uma leitura excessivamente literalista desse dispositivo pode ser problemático quando colocamos a Bíblia em diálogo com a ciência. Ele observa que o artifício literário dos seis dias de criação + sétimo dia de descanso visa exaltar a ordem e propósito da obra criadora de Deus, mas “tem sido apreendido e interpretado de forma superliteral, com o resultado de que ciência e Escritura foram colocadas em oposição, em vez de vistas como complementares”. Em outras palavras, uma leitura de fé pode afirmar que Deus criou todas as coisas e estabeleceu a semana, sem necessariamente afirmar que o texto ensina ciência ou cronologia detalhada.
Ciência e Fé à Luz de Gênesis 1

Desde o avanço da ciência moderna, especialmente com as teorias cosmológicas e da evolução, Gênesis 1 tornou-se um ponto de debate entre fé e ciência. Alguns enxergam conflito insolúvel: ou se crê na literalidade de Gênesis (seis dias recentes, uma terra jovem, criação instantânea de cada espécie) ou se aceita a ciência (um universo de 13,8 bilhões de anos, evolução das formas de vida ao longo de eras) – ambas as posições por vezes se acusando mutuamente de erro. Entretanto, muitos teólogos e cientistas cristãos têm buscado formas de conciliar as duas áreas, argumentando que elas respondem perguntas diferentes. Gênesis 1 estaria preocupado primordialmente em dizer quem criou o mundo e por quê, enquanto a ciência investiga como as coisas funcionam e se desenvolveram.
Gordon Wenham observa que o problema muitas vezes não está no texto bíblico em si, mas nas interpretações dele “sequestradas” para disputas indevidas. Por exemplo, conforme citamos na Parte 1, Wenham lamenta que o dispositivo dos seis dias tenha sido tomado de forma superliteralista, levando a um antagonismo desnecessário entre ciência e Escritura. Ele argumenta que, entendida corretamente, a narrativa de Gênesis 1 não está em guerra com a investigação científica séria, mas pode ser vista como complementando-a. Como assim? Gênesis nos dá a visão teológica de que o universo é ordenado e racional porque foi criado por um Deus inteligente – e isso fornece a própria base para crermos que a ciência é possível! Afinal, se o mundo fosse um caos imprevisível, não haveria “leis naturais” a descobrir; mas como Deus criou com ordem, os cientistas podem buscar e encontrar regularidades na natureza. Nesse sentido, “Gênesis justifica a experiência científica da unidade e da ordem na natureza” – nas palavras de Wenham, o capítulo aponta para um cosmos coerente, o que é exatamente o pressuposto que impulsiona o empreendimento científico.
Por outro lado, Wenham e muitos outros alertam que é arriscado tentar forçar correlações específicas entre os dias de Gênesis e teorias científicas (“perigoso correlacionar teoria científica e revelação bíblica por apelo a tais textos”). Alguns cristãos, no passado, tentaram encontrar referências a dinossauros ou partículas subatômicas implicitamente no texto bíblico, ou ajustar os dias a eras geológicas, e assim por diante. No geral, tais esforços muitas vezes envolvem forçar o texto a responder perguntas que ele originalmente não estava abordando. Gênesis 1 não pretende dar uma cronologia científica detalhada; ele fala de maneira simples e majestosa sobre origens para um público antigo, enfatizando verdades teológicas perenes: Deus é a origem de tudo, a criação é boa e ordenada, o ser humano tem lugar especial, etc. Não é um manual de ciências – assim como também não é um relato fictício sem fundamento. É uma categoria literária e teológica própria: um relato teológico das origens, apresentado em forma narrativa.
Diferentes visões surgiram para harmonizar os dados: além do literalismo e do evolucionismo teísta (que lê os dias simbolicamente), houve a antiga Teoria do “Intervalo” (Gap) – a ideia de que poderia haver um enorme intervalo temporal entre Gênesis 1:1 e 1:2, durante o qual ocorreram eras geológicas e até uma criação anterior. Porém, essa teoria hoje tem pouco apoio exegético, já que o texto fluye naturalmente sem inserir um hiato tão grande (e Wenham aponta incoerências lógicas nessa hipótese). Outra abordagem, de estudiosos como o já citado John Walton, é ler Gênesis 1 não como criação material, mas como atribuição de funções (Deus dando propósito e função às coisas em seis “dias” literários, possivelmente como dias inaugurais de um templo cósmico). Essa interpretação enfatiza que bara (“criar”) poderia não implicar fabricação física, mas sim estabelecer uma ordem funcional. Entretanto, há debate: outros, como John Sailhamer ou Henri Blocher, propõem variações de leitura de Gênesis 1 que acomodam longos períodos sem abandonar a historicidade teológica do texto.
O ponto chave é reconhecer que a verdade de Gênesis 1 não depende de detalhes científicos modernos. O capítulo cumpre um propósito teológico: ao ser escrito (provavelmente na época de Moisés ou no período do exílio, conforme diferentes teorias), ele falava poderosamente contra o paganismo, instruindo os israelitas sobre quem é Deus e qual o lugar do mundo e do homem diante dEle. Essa mensagem permanece atual. A ciência moderna, por sua vez, lida com investigações empíricas. Quando entendemos os âmbitos distintos, podemos apreciar ambos. Por exemplo, um cristão cientista pode ler Gênesis 1 e adormentar-se com a afirmação de que Deus intencionalmente criou o universo e declarou-o bom, enquanto no laboratório ele estuda o processo que Deus providenciou para a formação das galáxias ou da vida. Em vez de conflito, há um diálogo enriquecedor: a fé fornece o porquê último (o universo tem sentido e propósito, dado por Deus), e a ciência explora o como (os mecanismos e cronologia desse desenvolvimento) – duas perspectivas complementares da verdade.
Naturalmente, nem todos concordam com essa harmonia. Há criacionistas de terra jovem que insistem que qualquer interpretação não literal dos dias compromete a autoridade bíblica. E há cientistas seculares que entendem a religião como contrária ao progresso científico. Mas muitos cristãos encontraram solidez numa abordagem integradora: ler Gênesis 1 com respeito ao seu gênero literário, sem tratá-lo como relatório técnico. Como disse certa vez Galileu, a Bíblia nos ensina como ir para o céu, não como o céu vai. Ou, conforme uma frase popular entre teólogos hoje: Gênesis nos ensina quem criou e por quê, não exatamente quando ou em que velocidade.
Wenham resume bem que os seis dias são uma estrutura para comunicar verdades – não devemos sobrecarregá-los com demandas que o texto não faz. Ele lista que, além do esquema de seis dias, o autor bíblico usou vários recursos (como números simbólicos, repetições, paralelismos) para enfatizar ordem na criação. Ou seja, a intenção é teológica e literária, não dar uma cronologia científica exaustiva. Reconhecer isso nos permite evitar falsos conflitos. Ciência e fé podem então caminhar juntas: a fé nos dá a convicção de que há racionalidade e propósito no universo (porque procede de um Legislador racional), e a ciência investiga os detalhes desse universo ordenado. Quando surgem aparentes contradições (como a idade do universo vs. a leitura literal de Gênesis), é um convite a aprofundar tanto a exegese bíblica quanto a compreensão científica, lembrando que toda verdade é verdade de Deus, seja nas Escrituras, seja na natureza criada.




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