A localização do Éden e seus recursos | Gênesis 2:9-15
- João Pavão
- 22 de ago.
- 9 min de leitura

Os versículos 9–15 detalham como era o Jardim do Éden, complementando a informação resumida do v.8. Aqui descobrimos a abundância de vida vegetal, a presença de árvores especiais e a hidrografia peculiar que localiza (ainda que de forma enigmática) o Éden no mapa antigo.
O versículo 9 destaca a provisão de Deus no jardim: “O Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores, atraentes aos olhos e boas para alimento.” Note que assim como o homem foi formado do “solo” (ʾădāmâh), também as árvores surgem da terra – a criação inteira está conectada. Deus proveu variedade e beleza: árvores agradáveis de ver e com frutos deliciosos, indicando que o lugar era esteticamente lindo e fartamente suprido. Em essência, Deus não criou um deserto ascético para o homem, mas um paraíso repleto de delícias visuais e gustativas. A generosidade divina fica evidente: “podes comer livremente de todas as árvores” (v.16) – a única exceção será mencionada em breve. Isso nos lembra que, antes de qualquer proibição, Deus deu ampla liberdade e suprimento ao ser humano.
No meio do jardim havia duas árvores singulares (v.9b): “a árvore da vida” e “a árvore do conhecimento do bem e do mal.” A Árvore da Vida simboliza a imortalidade sustentada por Deus – quem dela comesse viveria para sempre (cf. Gn 3:22). Árvores como símbolo de vida são comuns nas Escrituras; por exemplo, em Provérbios a sabedoria é “árvore de vida” para quem a adquire (Pv 3:18). No Éden, essa árvore representava a fonte da vida contínua sob o cuidado divino. Já a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal tem uma descrição mais misteriosa e seu fruto era proibido a Adão, sob pena de morte (v.17). Muito se discute sobre o significado de “conhecimento do bem e do mal”. A expressão, recorrente aqui e no capítulo 3, claramente envolve algo que pertence primariamente a Deus (cf. Gn 3:5, “sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal”). Vale observar que comer do fruto dessa árvore de fato trouxe uma nova percepção a Adão e Eva – seus “olhos foram abertos” (3:7) – mas também resultou em vergonha e separação de Deus, não em sabedoria proveitosa. O que exatamente representava esse “conhecimento do bem e do mal”? Os estudiosos têm apresentado algumas interpretações principais:
Em resumo, a “árvore do conhecimento do bem e do mal” servia para afirmar um limite necessário: Deus é Deus, o ser humano não é. Era uma oportunidade de Adão e Eva exercerem fidelidade amorosa, abstendo-se de algo para eles interditado. Até mesmo o nome da árvore nos lembra que nem todo conhecimento é benéfico; há coisas que devem ser deixadas sob o cuidado e a autoridade de Deus.
Os versículos 10–14 passam a descrever o rio que irrigava o Éden e sua divisão em quatro braços. Esses detalhes geográficos têm intrigado leitores por séculos, pois parecem misturar lugares conhecidos e desconhecidos. O texto diz: “Nascia um rio no Éden para regar o jardim, e dali se dividia, originando quatro rios.” Em seguida, são nomeados: Pison, Giom, Tigre e Eufrates. Os dois últimos são bem conhecidos – o Tigre e o Eufrates são os grandes rios da Mesopotâmia. Eles correm na região do atual Iraque e adjacências, e o Eufrates era especialmente famoso por fertilizar terras (o nome Eufrates aparece sem descrição adicional, indicando que o autor espera que o leitor o reconheça de pronto). Já Pison e Giom são enigmáticos, mencionados somente aqui. Provavelmente, esses nomes são descritivos em hebraico: Pîšôn derivaria de um verbo que significa “saltar, correr” – poderíamos chamá-lo de “Rio Saltador”; Gîḥôn vem de “jorrar, transbordar” – algo como “Rio Borbulhante”. Isso sugere que talvez não fossem nomes próprios conhecidos, mas designações figurativas.
Identificação do Rio Pison e Giom
Pison: Já foi associado ao rio Indo na Ásia, ao Ganges na Índia (Josephus sugeriu), a algum rio da Arábia (região de Havila) ou até a um antigo braço do Eufrates que corria perto do Golfo Pérsico. O texto diz que o Pison “rodeia a terra de Havilá, onde há ouro” (v.11). “Havilá” na Bíblia parece referir-se à Arábia ou áreas adjacentes a ela. De fato, a Arábia era rica em ouro na antiguidade. Assim, alguns pensam que Pison seria um rio da Arábia (quem sabe o Jordão em sua época primitiva, ou um rio atualmente seco) ou até metáforas para as águas do Golfo Pérsico e do Mar Vermelho, contornando a península Arábica. Nenhuma identificação é conclusiva.
Giom: É dito que “rodeia a terra de Cush” (v.13). “Cush” geralmente designa a Etiópia/Sudão (África), o que levou muitos – inclusive intérpretes antigos – a equiparar Giom ao Nilo, que de fato atravessa a terra de Cush (Etiópia) antes de chegar ao Egito. Entretanto, Cush às vezes podia referir-se a povos da Mesopotâmia (como os cassitas em Gn 10:8-10). Alguns estudiosos modernos, portanto, sugerem que Cush aqui seja uma referência a regiões montanhosas do Irã, e o Giom seria um rio ou canal mesopotâmico hoje desconhecido. Outra possibilidade é que o Giom corresponda ao rio Jordão ou alguma fonte próxima (curiosamente, havia uma fonte importante em Jerusalém chamada Giom, mas dificilmente seria descrita como cercando a terra de Cush). Em suma, Giom permanece de difícil localização.
Tigre e Eufrates: Estes “não apresentam problemas” (v.14). São rios bem estabelecidos – o Tigre (Heb. Hidequel) é dito correr “ao oriente da Assíria” (ou da cidade de Assur). Detalhe interessante: mencionar a cidade de Assur sugere uma tradição antiga, pois depois de 1400 a.C. Assur deixou de ser a capital política da Assíria, embora permanecesse centro religioso. Isso pode indicar que a informação geográfica de Gênesis 2:14 remonta a fontes muito antigas, preservadas no texto bíblico. De todo modo, Tigre e Eufrates firmam que o cenário geral envolve a região mesopotâmica.
Após séculos de debate, a localização exata do Éden permanece incerta. A tradição mais antiga e comum coloca o Éden nas terras altas da Armênia, onde nascem o Tigre e o Eufrates, imaginando que lá também se originariam (ou convergiriam) os outros dois rios. De fato, se considerarmos apenas “um rio se dividindo em quatro”, poderíamos supor um grande lago ou nascente quadrupla no alto das montanhas armênias alimentando quatro cursos d’água para diferentes direções. Outra teoria bastante difundida sugere o Éden próximo ao norte do Golfo Pérsico, na confluência dos rios. Nesse cenário, o Tigre, o Eufrates e talvez o Karun (Irã) se juntam na planície mesopotâmica, e o quarto “rio” seria algum curso da Arábia ou o próprio Golfo. Há até paralelo com a mitologia mesopotâmica: a ilha de Dilmun (atual Bahrain, no Golfo) era louvada em textos antigos como um paraíso dos deuses, terra de vida e fertilidade, associada a águas frescas. No entanto, ambos os modelos têm dificuldades – especialmente porque o texto bíblico indica um rio que se divide em quatro, e não quatro rios que se unem. Isso sugere que não existe hoje um lugar exatamente assim, confundindo nossos mapas de forma proposital. Alguns estudiosos entendem que essa geografia “impossível” é intencional: Gênesis pode estar usando nomes reais para pintar um quadro teológico – o Éden era real, mas ao mesmo tempo está agora além do nosso alcance. A conjunção de rios de várias regiões diferentes sinalizaria que esse jardim era único e ideal, não sujeito às limitações geográficas atuais. De fato, após a Queda, o Éden é fechado ao acesso humano (Gn 3:24). Assim, os detalhes geográficos nos dão um gostinho de realidade histórica (localizado em algum lugar a leste de Israel, provavelmente Mesopotâmia), porém deixam margem à imaginação sagrada sobre um lugar perfeito que hoje não encontramos. Em termos teológicos, o Éden é “aquele lugar delicioso de comunhão com Deus” que a humanidade perdeu e anseia reencontrar – por isso não podemos mapeá-lo plenamente neste mundo caído.
O versículo 12 insere uma nota sobre os recursos preciosos de Havilá: “O ouro dessa terra é bom; lá também existe o bdélio e a pedra de ônix.” Ouro, resinas aromáticas (bdélio) e ônix (ou outras pedras ornamentais) são itens de luxo. Curiosamente, na descrição do tabernáculo e do futuro templo, encontramos ouro e pedras preciosas semelhantes enfeitando o lugar da habitação de Deus (Êx 25:7; 1Cr 29:2). Isso reforça o simbolismo de Éden como um santuário original, cheio de elementos valiosos que indicam a presença e a bênção de Deus. Ou seja, onde Deus habita com o homem, há abundância, beleza e riqueza – uma indicação da generosidade divina.
Por fim, o versículo 15 retoma a narrativa do homem no jardim: “Tomou, pois, o Senhor Deus o homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar.” Perceba que esse versículo repete parte do que foi dito no v.8 (Deus colocando o homem no Éden), sinal de que os versos 9–14 foram uma espécie de parêntese descritivo. Agora a história prossegue com a vocação de Adão. Duas palavras são usadas para sua tarefa: “cultivar” (heb. ʿāḇad, também “servir”) e “guardar” (heb. šāmar, também “proteger, observar”). Em nível imediato, significam que o homem deveria trabalhar a terra do jardim, cuidando das plantas, e guardar o jardim, isto é, mantê-lo, talvez protegendo-o ou zelando para que tudo continuasse em ordem. Novamente fica claro que o trabalho fazia parte da vida ideal no Éden – não era um fardo penoso, mas uma cooperação com Deus na criação. É interessante que esses dois verbos aparecem juntos mais adiante na Bíblia para descrever o serviço dos levitas no santuário: eles “serviam” no templo e “guardavam” seus pátios de profanação (Nm 3:7-8). A escolha vocabular aqui não parece coincidência – sugere que Adão era como um sacerdote no santuário-jardim, servindo a Deus com reverência. O jardim não era apenas um pomar agrícola; era também um espaço sagrado que precisava ser guardado com diligência. Infelizmente, Adão falhará em “guardar” o Éden quando permitir a entrada da serpente enganadora. Mas no estado original, Adão está engajado em adoração por meio do trabalho fiel.
Note também que trabalhar precede a Queda: o pecado não introduziu o trabalho, mas sim a fadiga e a frustração no trabalho (Gn 3:17-19). Aqui, porém, o labor humano está em harmonia com Deus – cultivar e guardar o jardim era uma atividade prazerosa, sem espinhos ou suor pesado, uma forma de refletir o caráter criativo de Deus e manter a ordem boa que o Senhor estabelecera. Assim, Gênesis nos dá uma visão positiva do trabalho e do cuidado com a criação como sendo vontade de Deus para a humanidade desde o princípio.




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