A Caverna de Macpela | Gênesis 23:1–20
- João Pavão
- 4 de set.
- 27 min de leitura

Gênesis 23 descreve a morte de Sara, esposa de Abraão, e os cuidados tomados por Abraão para conseguir um local de sepultamento para ela na terra de Canaã. Sara faleceu aos 127 anos em Quiriate-Arba (Hebrom), em Canaã. Notavelmente, Sara é a única mulher na Bíblia cuja idade de morte é registrada, o que destaca sua importância singular entre as matriarcas. Ela morreu quando Isaque tinha 37 anos, três anos antes deste se casar. Abraão, que possivelmente estava em Berseba (onde o capítulo anterior o deixou), veio a Hebrom para lamentar e chorar por Sara. Após um período de luto, Abraão “levantou-se de diante de sua morta” (v.3), isto é, suspendeu seu pranto para tratar do necessário sepultamento. Esse detalhe sutil já antecipa o foco do capítulo: menos nos detalhes do luto e mais na negociação por um sepulcro, pois o texto dedica poucos versos ao choro de Abraão, mas muitos à aquisição da terra.
A passagem está organizada em uma estrutura de cena bem definida. Os versículos iniciais (v.1–2) formam a introdução, noticiando a morte de Sara e o lamento de Abraão. Em seguida, ocorre um longo diálogo de negociação entre Abraão e os habitantes locais, dividindo-se em três ciclos de conversas: (1) Abraão e os filhos de Hete em geral (v.3–6), (2) Abraão com os líderes do povo e Efrom, o heteu, indiretamente (v.7–11) e (3) Abraão diretamente com Efrom, diante das testemunhas, acertando os termos finais (v.12–16). Por fim, os versículos 17–20 concluem a cena com a formalização da compra e o sepultamento de Sara. Essa estrutura em três diálogos sucessivos dá à narrativa o caráter de um “contrato” estabelecido passo a passo, conforme observado por estudiosos. De fato, o texto emprega linguagem jurídica e repetição de fórmulas típicas de contratos antigos, enfatizando o aspecto legal e público do acordo. Por exemplo, cada etapa da negociação é introduzida formalmente (“levantou-se Abraão e falou...”, “Efrom respondeu...”) e ocorre “à porta da cidade”, isto é, diante dos habitantes e autoridades locais, como era costume nos negócios jurídicos do antigo Oriente Próximo.
Há também um cuidado literário com palavras-chave repetidas que reforçam o tema central. Expressões relacionadas à morte e sepultamento de Sara ocorrem diversas vezes – por oito vezes o texto fala em “sepultar a minha/sua morta”. Essa repetição contínua da palavra “morta” mantém diante do leitor a urgência da situação: Abraão precisa de um local para enterrar imediatamente sua falecida esposa. Igualmente, o verbo hebraico qabar (sepultar) aparece oito vezes, e a palavra “sepulcro” (ou “propriedade de sepultura”) cinco vezes, destacando que o intuito de Abraão não é meramente encontrar um túmulo temporário, mas estabelecer uma posse permanente para sepultamento. Outra palavra muito usada é “dar” – aparece sete vezes, com sutis diferenças de uso: nos lábios de Abraão significa pagar/vender, enquanto nos lábios de Efrom significa conceder/doar. Essa alternância prepara o leitor para o jogo de cortesias da negociação, em que Efrom oferece “dar” o campo, mas Abraão insiste em pagar o preço integral. Também termos como “ouvir” surgem várias vezes, em especial no clímax (v.16, literalmente “Abraão ouviu Efrom”, ou seja, concordou com a oferta), e referências aos “ouvidos” e “olhos” das testemunhas reforçam o cenário público e transparente do acordo.
Em suma, a estrutura literária de Gênesis 23 enfatiza que não se trata apenas do relato de uma morte, mas sobretudo da aquisição legal de um pedaço da Terra Prometida. Como bem observa o comentarista Gordon Wenham, “o ponto de vista do narrador não focaliza a morte de Sara, mas a firme e obrigatória procura de Abraão por uma sepultura que ancorará seus descendentes na Terra Prometida”. A negociação detalhada e formal serve para estabelecer de modo incontestável que Abraão obtém posse legítima da caverna e do campo de Macpela, inaugurando assim a realização concreta da promessa da terra, ainda que de forma inicial e simbólica.
Negociando com os Hititas: Pedido, Oferta e Compra
Abraão era estrangeiro em Canaã e não possuía nenhum terreno ali – até então vinha vivendo em tendas, como nômade, pela fé nas promessas de Deus (cf. Hb 11:9). Diante da morte de Sara, ele precisa providenciar um túmulo. Embora entristecido, ele age com ponderação e fé. Dirigindo-se aos habitantes locais – identificados como “filhos de Hete” (ou seja, hititas) – Abraão faz um pedido humilde e objetivo: “Sou estrangeiro e peregrino entre vós; dai-me a posse de um sepulcro convosco, para que eu sepulte a minha morta” (v.4). Várias observações emergem desse breve discurso. Primeiro, Abraão se reconhece “estrangeiro e peregrino” naquela terra. Essa dupla expressão (em hebraico ger e toshav) significa um residente forasteiro, alguém sem cidadania plena ou direitos de propriedade. Com essa frase, Abraão demonstra humildade e realidade: apesar de Deus ter prometido a terra a ele, no presente ele não passa de um morador sem terra, dependente da boa vontade dos nativos. De fato, em Canaã os clãs familiares possuíam as terras, e estrangeiros dificilmente podiam adquirir propriedade, a não ser talvez por alianças matrimoniais ou acordos excepcionais. (Mais tarde, Gênesis 34:10,21 sugere que os siquemitas só admitiriam os israelitas como coprossuários da terra se houvesse casamentos entre eles – condição inaceitável para a família de Jacó. Abraão, por sua vez, repudia qualquer ideia de mesclar-se aos cananeus por casamento, cf. Gn 24:3; 27:46.) Assim, seu status de peregrino reforça a dificuldade do momento: ele não tem onde sepultar sua esposa. Mesmo assim, Abraão não exige nem reivindica nada indevidamente; ele pede: “dai-me uma posse de sepultura entre vós”. O termo “posse de sepultura” (achuzat-qever em hebraico) indica propriedade perpétua de um túmulo. Ele não está pedindo apenas um espaço emprestado para aquela ocasião, mas quer comprar oficialmente um terreno funerário. É significativo que a palavra achuzah (“possessão, propriedade”) seja a mesma usada nas promessas divinas de dar a terra de Canaã como “posse” permanente aos descendentes de Abraão (cf. Gn 17:8). Ou seja, Abraão busca um pequeno cumprimento imediato da promessa de Deus, adquirindo um pedaço da terra para ali firmar suas raízes familiares por gerações (ainda que seja um cemitério).
Os moradores hititas respondem de forma respeitosa e generosa a Abraão. Em coro, eles lhe dizem: “Ouve-nos, meu senhor: príncipe de Deus és tu entre nós; em um dos melhores dos nossos sepulcros sepulta a tua morta; nenhum de nós te negará o seu sepulcro, para sepultar a tua morta” (v.6). Chamar Abraão de “príncipe de Deus” (nesí’ Elohim) é reconhecê-lo como um homem nobres e abençoado por Deus. Poderia ser traduzido também como “príncipe poderoso”, mas a menção de “Deus” implica que até os estrangeiros percebiam que Abraão tinha um favor divino especial sobre si – afinal, sua prosperidade e conduta eram notórias (ele havia derrotado reis em Gn 14, intercedido eficazmente por Sodoma em Gn 18, e Deus estava claramente com ele). Assim, embora Abraão se coloque abaixo deles como estrangeiro, eles o colocam acima, honrando-o como um “grande príncipe” em seu meio. Esse contraste é notado por comentaristas: “Abraão se pôs no pé da escala social, e eles o puseram no topo”. Há aqui um cumprimento da promessa de Deus de engrandecer o nome de Abraão (Gn 12:2) – até os gentios o reconhecem.
Além do título honroso, os hititas oferecem livre acesso aos seus túmulos: “no melhor dos nossos sepulcros sepulta a tua morta”. Isso equivale a dizer: “Escolha qualquer sepultura de nossas necrópoles familiares, que a cederemos para você enterrar Sara”. Essa resposta generosa revela estima e também o desejo de ajudar Abraão em seu momento de necessidade. No antigo Oriente Próximo, mostrar hospitalidade e respeito pelos mortos eram deveres importantes, e eles estão dispostos a acomodar Abraão. Contudo, percebe-se que a oferta, por mais benevolente que seja, não atende ao cerne do pedido de Abraão. Eles oferecem um túmulo emprestado, mas não uma “posse de sepultura” permanente. Em outras palavras, estão dispostos a permitir o sepultamento de Sara entre eles, mas não a vender parte de suas terras a Abraão. Isso provavelmente reflete a relutância típica dos proprietários antigos em alienar terras familiares – a terra era herança dos antepassados e passava de geração em geração, não se vendia facilmente um campo que fazia parte do clã. “Presumivelmente, Abraão encontra a difusa relutância dos proprietários de terra no antigo Oriente Próximo em repartir sua propriedade”, observa Wenham. Em última análise, eles querem honrar Abraão sem abrir mão do domínio territorial: “sepulte entre nós”, mas continuaria sendo entre eles.
Abraão, contudo, tinha em mente um plano específico. Ele não desejava apenas um canto provisório em algum sepulcro alheio, que no futuro poderia gerar disputas ou dúvidas. Então, gentilmente, ele busca encaminhar a negociação para seu objetivo. Levantando-se e inclinando-se diante do povo (note-se a etiqueta e humildade de Abraão mesmo após ser chamado de “príncipe”; ele não assume isso com arrogância, mas agradece respeitosamente), Abraão faz uma proposta concreta: “Se é do agrado de vós que eu sepulte a minha morta, ouvi-me e intercedei por mim junto a Efrom, filho de Zoar, para que ele me dê (venda) a caverna de Macpela, que lhe pertence, que está na extremidade do seu campo; por completo preço a dará a mim, no vosso meio, por posse de sepultura” (v.8–9). Aqui Abraão especifica o local desejado: a caverna de Macpela, pertencente a um certo Efrom, filho de Zóar. “Macpela” em hebraico significa “duplicada” ou “dupla” – provavelmente uma gruta com duas câmaras ou um sistema de cavernas. Pode ser que Abraão já conhecesse aquele lugar, talvez um ponto adequado e próximo de onde estavam (Mamre/Hebrom), e que tivesse a dimensão necessária para servir de tumba familiar. A menção de que fica “no fim do campo” de Efrom indica que era na borda da propriedade dele; possivelmente mais fácil de negociar sem Efrom temer perder o campo inteiro ou interferir em suas atividades agrícolas. Abraão pede que os demais “intercedam” por ele junto a Efrom – ou seja, que usem sua influência e voz comunitária para convencer Efrom a negociar. Isso sugere que Efrom estava presente ali (como de fato o texto logo confirma), mas Abraão segue a etiqueta local: ele fala primeiro aos anciãos e cidadãos para só então tratar diretamente com o proprietário, com o apoio deles. Ele oferece pagar “preço pleno” pela caverna – literalmente “preço justo” ou “completo”. Essa expressão carrega tom legal: indica pagamento integral, venda irrevogável, sem descontos ou cláusulas ocultas. Em contratos sumérios e acadianos há termos equivalentes usados para garantir que a transação era final e não sujeita a contestação. Abraão, então, deixa claro que quer comprar oficialmente o local pelo seu valor total, obtendo um título definitivo de posse.
Na sequência (v.10-11), entra em cena o proprietário. Efrom, o heteu, estava sentado no meio da assembleia na porta da cidade e, assim que ouve a proposta, responde diretamente a Abraão diante de todos. Isso já é um bom sinal: Efrom se dispõe a negociar abertamente. Ele diz: “Não, meu senhor, ouve-me: eu te dou o campo, e também a caverna que nele está; na presença dos filhos do meu povo eu ta dou; sepulta a tua morta” (v.11). À primeira vista, Efrom parece magnânimo ao extremo – ele “dá” não só a caverna pedida, mas todo o campo, gratuitamente! Devemos entender corretamente essa oferta. Muito provavelmente, trata-se de um gesto de cortesia exagerada, típico das barganhas orientais, não de uma doação literal. Nos mercados e tratados antigos, era comum o vendedor dizer algo como “Ah, isso não vale nada entre amigos, eu lhe dou”, esperando com isso que o comprador pagasse o preço cheio sem barganhar. Era um modo polido de indicar disposição de vender sem parecer mesquinho discutindo dinheiro. Como paralelo bíblico, lembremos de Araúna, o jebuseu, oferecendo ao rei Davi, séculos depois, a sua eira de graça para construir um altar: “Tome-a o meu senhor, o rei, e faça dela o que bem quiser… eu te dou” (1Cr 21:23). Davi aceitou essa oferta? Não – ele replicou: “Não, eu pagarei o justo preço, pois não oferecerei ao Senhor holocausto que não me custe nada” (1Cr 21:24). Muito semelhante é o caso aqui. Efrom, com sua oferta generosa em palavras, mostra-se amistoso e disposto a ceder o terreno, mas não esperava realmente que Abraão tomasse posse de graça. Na verdade, como analisa Tucker, “o objetivo da oferta e da polidez exagerada é colocar a outra parte na defensiva… Ao oferecer mais do que foi solicitado, o vendedor indiretamente exige um preço mais alto”. Ou seja, ao dizer “dou o campo e a caverna”, Efrom indica que venderá ambos em conjunto, e certamente espera uma soma substancial por isso. Além do mais, dar publicamente também o favorece: caso Abraão insistisse em pagar, ninguém poderia acusar Efrom de inicIalmente cobrar ou ser avarento – ele ficaria bem perante o povo, qualquer que fosse o resultado.
Por que Efrom inclui o campo inteiro na transação, se Abraão só pedira a caverna? Duas possibilidades surgem:
(1) pode ser estratégia comercial – ao vender o campo junto, justifica-se um preço maior e garante-se que Abraão terá que assumir também qualquer encargo vinculado àquela terra;
(2) pode ser simplesmente cortesia protocolar – Efrom inflaciona a oferta (dá mais do que Abraão pediu) para, no jogo de cena, não parecer mesquinho. Alguns estudiosos já especularam se haveria ali alguma intenção de passar a Abraão obrigações feudais do campo (tributos, responsabilidades) ao incluir a terra na venda, conforme certas leis hititas e assírias antigas poderiam sugerir. Porém, é improvável: como o próprio texto nota, esses hititas de Hebrom não têm relação direta com o império hitita do norte e suas leis formais. Além disso, o paralelo com Araúna (que ofereceu bois e implementos junto com a eira ao rei Davi) demonstra que ofertas excedentes eram apenas parte das formalidades de alto nível, não imposição de ônus ocultos. O mais lógico é entender que Efrom, ao dizer “dou o campo e a caverna”, está encerrando a fase de propostas: ele não obriga Abraão a comprar, mas se for para pagar, que seja por tudo; e se Abraão quiser realmente formalizar, precisará agora indagar o preço.
Abraão, porém, sequer deixa chegar ao ponto de barganha. Mantendo sua postura respeitosa, ele torna a inclinar-se perante os presentes (v.12) e responde a Efrom: “Se concordas, ouve-me: darei o preço do campo; aceita-o de mim, e sepultarei ali a minha morta” (v.13). Aqui Abraão explicitamente oferece pagar em dinheiro o valor integral. Ele não tenta pechinchar, nem sugere um valor; apenas solicita que Efrom aceite o pagamento. Essa insistência de Abraão em pagar surpreende à luz da cultura oriental, onde se esperaria muitas idas e vindas na negociação. Provérbios 20:14 ilustra bem o costume: “‘Não vale nada, não vale nada’, diz o comprador; mas depois de ir embora, gaba-se da compra”. Abraão agiu de forma oposta a esse ditado – não barganhou de forma alguma. Por quê? O próprio texto nos permite inferir: Abraão quer certeza absoluta de posse legal e “paz” quanto àquele terreno, sem qualquer contestação futura. Pagando o preço cheio publicamente, ele cala qualquer objeção presente ou futura. Ele sabia que, se negociase preço, alguém depois poderia dizer que ele extorquiu um valor baixo de Efrom aproveitando-se do momento ou que o contrato não foi justo. Abraão prefere pecar pelo excesso de honestidade do que correr riscos com a sepultura de sua esposa e do futuro de sua família. Matthew Henry comenta que não foi por orgulho que Abraão recusou um presente, mas por princípios de justiça e prudência: (1) Justiça, porque ele era rico em prata e ouro e não desejava tirar vantagem da generosidade de Efrom, nem ter algo que não pagou devidamente – “a honestidade... nos proíbe aproveitar-nos de nossos vizinhos”. (2) Prudência, para que amanhã Efrom não pudesse dizer “Enriqueci Abraão” ou para que os herdeiros de Efrom não questionassem o arranjo e reclamassem a terra de volta, já que um presente informal poderia ser contestado. Era melhor firmar um contrato claro. Henry lembra que Davi posteriormente seguiu o mesmo princípio ao recusar a oferta gratuita de Araúna: ele pagou para ter o terreno do templo (2Sm 24:24) e assim ninguém pudesse reivindicá-lo depois. Em suma, Abraão queria evitar mal-entendidos e litígios, garantindo que a caverna de Macpela fosse inquestionavelmente dele.
Diante da disposição de Abraão em pagar, Efrom finalmente enuncia o preço esperado: “O terreno vale quatrocentos siclos de prata; que é isso entre mim e ti? Sepulta pois a tua morta” (v.15). Aqui Efrom quantifica o valor – “quatrocentos siclos (ou shekels) de prata” – e imediatamente relativiza: “mas o que é isso entre amigos?” Em outras palavras, ele indica o preço, mas mantém o tom cordial de que isso não seria um obstáculo entre eles. Quatrocentos siclos era uma soma considerável. Não temos todos os dados para converter exatamente em valores atuais, mas sabemos de referências bíblicas que é um preço alto para um campo. Por exemplo, séculos depois Jeremias comprou um campo por 17 siclos de prata (Jr 32:9), embora em circunstância excepcional (durante um cerco inimigo, o que depreciou o valor). O rei Davi comprou a eira de Araúna por 50 siclos (2Sm 24:24), embora ali não estivesse incluso um campo grande. Por outro lado, textos extrabíblicos descobertos em Ugarite mencionam quatrocentos siclos de prata em transações, mostrando que não era um número fantástico – devia representar um preço de mercado para propriedade de bom porte. Alguns estudiosos sugerem que Efrom pediu um preço alto, talvez inflacionado pela urgência (Abraão estava de luto e pressionado a enterrar logo), mas não necessariamente extorsivo. De todo modo, Abraão não reage ao valor nem tenta reduzi-lo. “Que é isto entre mim e ti?” – disse Efrom – e Abraão na prática responde: não é nada mesmo. Ele imediatamente pesou a prata conforme o peso corrente de mercado e pagou os 400 siclos na presença das testemunhas (v.16).
Essa cena da pesagem do dinheiro é pitoresca e significativa. Naquele tempo, ainda não havia moedas cunhadas, então o pagamento era feito por peso de metal precioso. O texto frisa que Abraão “pesou a prata, correspondendo aos siclos correntes entre os mercadores”, indicando que tudo foi feito de acordo com os padrões comerciais reconhecidos. Não houve truque nem na balança nem na liga da prata; Abraão paga honestamente cada grama combinada, “na presença dos filhos de Hete” (v.16), isto é, na frente de todos os ali reunidos, de modo público e transparente. Assim, a transação se consumou: Abraão compra o campo de Efrom em Macpela, com a caverna e as árvores, e paga à vista o preço estipulado, selando o acordo de forma irrevogável. Nas palavras da narrativa, “o campo de Efrom... foi transferido (levantou-se) a Abraão por compra, à vista dos filhos de Hete, de todos os que entravam pela porta da sua cidade” (v.17-18). Essa fórmula legal – “foi transferido” – traduz um verbo hebraico (qum, “levantar-se”) que abre o versículo 17 no original, cumprindo o modelo de contratos da época. É o mesmo verbo raiz de “levantou-se Abraão” no início do diálogo (v.3); aqui marca a conclusão: o campo “se levantou para Abraão”, isto é, passou oficialmente para posse de Abraão. O texto até especifica os acessórios: “com todas as suas árvores em torno” – registros de compras antigas às vezes listavam o número de árvores frutíferas transferidas junto com a terra, e aqui se enfatiza que cada parte daquele terreno agora pertence ao patriarca. Tudo isso diante de testemunhas qualificadas, isto é, “todos os hititas que entravam pela porta da cidade” (v.18). Em suma, ficou lavrado um contrato aos olhos da comunidade.
Ao término da negociação, Abraão finalmente pôde sepultar Sara. O versículo 19 narra com simplicidade tocante: “Depois, Abraão sepultou a Sara, sua mulher, na caverna do campo de Macpela, fronteiro a Manre (isto é, Hebrom), na terra de Canaã.” Com isso, o objetivo inicial de Abraão se cumpre – Sara é honrosamente enterrada. Ele a depositou naquela caverna, dando-lhe uma sepultura digna e própria, “adquirindo para ela um túmulo próprio”, conforme comenta Wenham. O texto relembra que Hebrom é “terra de Canaã”, sublinhando que os restos de Sara agora jazem na Terra Prometida. Abraão fizera questão disso. Ele prestou a Sara “a honra que com justiça ela merece” ao obter aquele lugar exclusivamente para ela e sua família. Há uma bela observação extrabíblica preservada que “como convém à mãe da nação, seu túmulo era impressionante, um memorial digno de uma grande mulher”. De fato, Abraão não mediu custos para que a companheira de sua vida tivesse um sepulcro próprio, que posteriormente se tornaria um monumento familiar e nacional.
O capítulo termina reiterando o fato crucial: “Assim, o campo e a caverna... foram confirmados a Abraão por posse de sepultura, da parte dos filhos de Hete” (v.20). Essa repetição reforça o aspecto legal. Em poucas linhas, o narrador faz quase um registro cartorial: campo, caverna, árvores – tudo confirmado como propriedade de Abraão, adquirida dos hititas. Está oficialmente consolidado o primeiro pedaço de terra que Abraão possui em Canaã. Ironicamente, é uma terra para mortos – um cemitério – e não para plantações ou moradia. Mas teologicamente isso tem grande peso: o patriarca agora tem um arraial no país que Deus lhe prometera. Ele próprio continua vivo e peregrinando, mas ao comprar um túmulo, Abraão demonstra que não pretende sair daquela terra nem mesmo após a morte.
Convém destacar que a Caverna de Macpela, além de sepultar Sara, tornou-se de fato o túmulo dos patriarcas. Gênesis 25:9-10 registra que o próprio Abraão, ao falecer, foi sepultado ali por Isaque e Ismael. Mais tarde, Isaque foi enterrado na mesma caverna por seus filhos (Gn 35:29). Gênesis 49:29-32 relata que Jacó, antes de morrer no Egito, ordenou enfaticamente que seu corpo fosse levado para repousar em Macpela, “na caverna do campo de Macpela, que Abraão comprou...”, junto com Abraão, Sara, Isaque, Rebeca e Lia que já lá estavam. E em Gênesis 50:13 cumpre-se seu desejo: seus filhos levam Jacó e o sepultam na caverna de Macpela. Ou seja, Macpela tornou-se o mausoléu da família de Abraão, o lugar de repouso das gerações que herdariam a promessa. Este fato é tão significativo que até o autor de Hebreus alude a ele: “todos estes [patriarcas] morreram na fé, sem ter obtido as promessas, mas vendo-as de longe... confessando que eram estrangeiros e peregrinos na terra... porque buscavam uma pátria” (Hb 11:13-14). E acrescenta que Abraão, Isaque e Jacó, ao morrerem, demonstraram esperar algo melhor, uma pátria celestial preparada por Deus (Hb 11:16). A insistência em serem enterrados na Terra Prometida é um testemunho silencioso dessa fé – como comenta um estudioso, “essa pequena porção de terra gera a promessa de toda a terra”, deixando claro que mesmo “estrangeiros e peregrinos” buscavam uma pátria duradoura. No ato de comprar o campo de Macpela, Abraão plantou uma semente do futuro lar de seus descendentes, crendo que Deus no tempo certo daria “toda a terra” como herdade, embora ele próprio em vida possuísse apenas aquele pedaço.
A história da compra do campo de Macpela para o sepultamento de Sara, além de seu aspecto narrativo e histórico, carrega profundas implicações teológicas e tipológicas. Ela nos ensina sobre fé em meio à perda, sobre a visão dos patriarcas quanto à morte e à esperança futura, sobre a relação dos fiéis com este mundo (ser “peregrino na terra”) e até sugere paralelos com a obra redentora de Cristo. Vejamos alguns desses temas:
1. Fé e Promessa em Meio à Adversidade: Gênesis 23 pode parecer à primeira vista um capítulo “secular”, onde Deus não fala nem age abertamente. Contudo, ele é altamente teológico em sua mensagem implícita. A morte de Sara apresentou a Abraão uma crise de fé potencial – afinal, Deus havia prometido a terra a ele, mas agora, décadas depois, ele não possuía nem um palmo para enterrar a esposa. Abraão poderia ter se desesperado ou questionado as promessas divinas (“De que vale a terra prometida se nem sepultura temos?”). Porém, ele transforma a crise em oportunidade de fé. “Abraão, porém, usa o que podia ser uma crise de fé como uma oportunidade”, comenta Wenham. Ele age com fé e visão de longo prazo, comprando propriedade na terra que Deus prometera dar-lhe. Ainda que tenha que comprar aquilo que Deus prometeu dar, Abraão não vê contradição nisso – antes, vê confirmação. Pagar pelo campo não significa duvidar da promessa, mas investir nela. Ao firmar um contrato pelos descendentes, Abraão demonstra seu “inabalável compromisso com a promessa” divina. Ele poderia, sim, ter aceitado um sepultamento provisório cedido pelos hititas e depois voltar para Harã com o corpo de Sara, ou enviar seus restos à sua terra de origem. Mas não – ele firmemente garante um local na própria Terra Prometida. Isso é fé prática: crer que aquele lugar pertencia de fato a ele por direito divino, mesmo que, na conjuntura presente, tivesse que adquiri-lo por meios humanos.
Há aqui uma lição sobre como a fé às vezes age em esfera “ordinária”, sem aguardar passivamente por um milagre dos céus. Deus não desceu para entregar a terra a Abraão naquele momento; Ele já havia dado a promessa e isso bastou para Abraão tomar iniciativa coerente com ela. Assim também, nós podemos em fé tomar posse de porções das promessas de Deus em nossas vidas, ainda que não vejamos o cumprimento total. Abraão sabia que não veria em vida toda a terra em posse de seus filhos (Deus até lhe dissera que isso aconteceria após muitas gerações, Gn 15:13-16). Mesmo assim, ele faz questão de fincar ali um marco de esperança. Como disse um pregador, “Abraão plantou uma bandeira em Canaã – e era uma lápide” (sinalizando que ele esperava que seus descendentes um dia ressuscitariam/voltariam ali para possuir tudo). Seu ato nos lembra que muitas vezes nossas ações de fé hoje apontam para um futuro além de nós mesmos. Nosso “comprar do campo” pode ser algo que nós mesmos não desfrutaremos plenamente, mas que honra a Deus e abençoará nossos descendentes espirituais.
2. Estrangeiros e Peregrinos: A autoidentificação de Abraão como “estrangeiro e peregrino” (v.4) ecoa como um tema que percorre toda a Escritura. Os patriarcas viveram como forasteiros dependentes da graça de Deus. Este mundo não era sua pátria definitiva. O autor de Hebreus afirma explicitamente que Abraão, Isaque e Jacó “confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra”, buscando uma pátria melhor, a saber, a celestial (Hb 11:13-16). É marcante que essa confissão no NT está diretamente ligada ao contexto da morte: “na fé morreram todos estes, sem ter alcançado as promessas, mas... confessando que eram peregrinos” (Hb 11:13). Ou seja, morrer em fé é o derradeiro ato de reconhecer que nossa verdadeira casa ainda está por vir. Abraão, ao comprar o sepulcro, estava dizendo em atos o que depois Davi diria em palavras: “Somos estrangeiros diante de ti e peregrinos como todos os nossos pais; nossos dias sobre a terra são como a sombra” (1Cr 29:15). O sepultamento em Canaã era ao mesmo tempo uma afirmação de esperança na promessa terrena e uma admissão de que suas gerações ainda aguardavam algo maior de Deus.
Do ponto de vista da vida do crente hoje, somos igualmente chamados a viver como peregrinos. “Este mundo não é meu lar; estou apenas de passagem” – essa antiga expressão de hino condiz com a teologia bíblica. Não temos aqui cidade permanente (Hb 13:14). Assim como Abraão não construiu cidades (diferente de Caim ou Nimrode), mas apenas fincou sua tenda e, ao final, adquiriu somente um túmulo, também nós não devemos colocar nosso coração nas “cidades” deste século. Abraão morreu possuindo apenas um pequeno lote, mas isso não invalidou a promessa de Deus; de modo semelhante, podemos ter pouco bem material neste mundo e ainda assim sermos herdeiros de Deus. Há um pensamento atribuído a W. Wiersbe: “Abraão era dono de toda aquela terra (pela promessa divina), mas a única propriedade que lhe pertencia legalmente era uma sepultura. Se o Senhor Jesus não voltar logo para nos levar, a única propriedade que cada um de nós terá neste mundo será um pequeno lote no cemitério; ou seja, não levaremos nada conosco, deixaremos tudo para trás”. Essa perspectiva equilibrada nos livra tanto da ganância quanto do desânimo: ganância, porque de que vale acumular se no fim só ficaremos com a sepultura?; desânimo, porque mesmo que tenhamos apenas a sepultura, temos na verdade “toda a terra” por vir em Cristo (Mt 5:5, “os mansos herdarão a terra”). Abraão contentou-se em vida com pouco, pois esperava muito mais depois. Ele “esperava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador” (Hb 11:10), enquanto morava em tendas. Nós, hoje, devemos igualmente usar deste mundo como quem não se apega, sabendo que nossa herança é incorruptível e está guardada nos céus (1Pe 1:4).
Interessante ainda notar que os próprios cananeus reconheceram algo diferente em Abraão – “príncipe de Deus” no meio deles. Isso ilustra que, embora sejamos peregrinos, não precisamos ser necessariamente desprezados. Quando vivemos de forma íntegra e abençoadora, até os de fora podem nos respeitar e reconhecer a graça de Deus em nós. Abraão, mesmo sem terra, conquistou o bom testemunho entre os pagãos. Ele havia plantado carvalhos, cavado poços, ajudado vizinhos, orado por reinos; sua presença era benéfica. Assim, os “estrangeiros” aqui eram luz entre as nações – como a Igreja deve ser no mundo. Os cananeus, ao dizerem “queremos ter o teu fim, misturar nosso pó com o seu”, indicam quase inveja santa: “tomara morrêssemos tão em paz com Deus quanto você”. Que nosso estilo de vida peregrino também desperte nos outros respeito e desejo de compartilhar da bênção que temos em Cristo.
3. Visão da Morte e da Esperança da Ressurreição: A maneira como Abraão lida com a morte de Sara nos ensina algo sobre fé diante da morte. Em primeiro lugar, Abraão chora por Sara (v.2). Ele a amava profundamente – foram talvez mais de 60 anos de casamento. A Bíblia não diz muito, mas podemos imaginar sua dor. Isso mostra que a fé não nos torna insensíveis ou estoicos. Crentes fiéis choram, sentem luto – a diferença é que não o fazem “como os que não têm esperança” (1Ts 4:13). Abraão chorou, mas não se desesperou. Ele cuidadosamente prepara o funeral, indicando que há dignidade e respeito devidos até mesmo ao corpo após a morte. De fato, toda a narrativa ressalta o cuidado de Abraão em dar um sepultamento honroso a Sara. Ele não a deixa insepulta nem permite que seja enterrada sem cerimônia em qualquer lugar; ao contrário, suspende até a jornada de fé (por assim dizer) para garantir que a memória e os restos de sua esposa sejam adequadamente guardados. Isso sugere uma alta visão do valor da vida e do corpo humano mesmo após a morte. Os cristãos têm historicamente ressaltado algo semelhante – diferentemente de culturas que menosprezavam o corpo ou o queimavam sem cerimônia, os crentes viam o sepultamento cuidadoso como um testemunho silencioso da crença na ressurreição futura do corpo. O próprio Abraão, ao insistir em um túmulo familiar na terra da promessa, pode estar indicando alguma esperança de que seus descendentes um dia possuiriam aquela terra e também de que haveria uma continuidade além da morte. Mais tarde, sobre Abraão será dito que “foi reunido ao seu povo” ao morrer (Gn 25:8). Essa expressão intriga comentaristas, pois não significa que seu corpo foi levado à Mesopotâmia para junto dos antepassados (não foi) nem que foi colocado na mesma caverna que Sara (ele foi, mas ali ainda só Sara estava da família). A melhor compreensão é que “reunido ao seu povo” se refere ao encontro de sua alma/espírito com os que já morreram na fé. Indica que os antigos criam que, após a morte, o indivíduo continuava existindo em outra esfera, juntando-se aos seus. Wiersbe comenta que isso aponta para a imortalidade dos salvos, a alma indo ao encontro dos que partiram em Deus. Hans Bräumer poeticamente disse que o além é o verdadeiro lar do ser humano, e este mundo é a peregrinação; ao morrer, o espírito volta para Deus e para “o círculo dos seus” que o aguardam. Assim, embora Gênesis 23 não discorra sobre isso abertamente, o pano de fundo da fé de Abraão incluía a noção de que a morte não extinguia as promessas de Deus. Deus é Deus de Abraão, Isaque e Jacó vivos, não mortos (cf. Mt 22:32). Sepultar na terra prometida era, portanto, não só um ato de posse simbólica, mas quase um depósito de esperança: “Aqui descansaremos até o dia em que nossos descendentes possuam esta terra – e quem sabe até o dia da restauração final”.
Para nós, à luz do Novo Testamento, a esperança além da sepultura é certa por causa de Cristo. Aquilo que era talvez intuído de forma obscura pelos patriarcas (Jó já dizia: “Eu sei que o meu Redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra... e em minha carne verei a Deus” – Jó 19:25-27) torna-se claríssimo com Jesus. Ele mesmo disse: “Abraão exultou por ver o meu dia; viu-o e alegrou-se” (Jo 8:56). Podemos pensar que parte dessa alegria prospectiva de Abraão incluía confiar que, mesmo morrendo, Deus não falharia. Cristo, descendente de Abraão, venceu a morte e assim garantiu a ressurreição para todos os que morreram na fé. Um comentário pastoral sobre Gênesis 23 observa: “A vida pode ser longa, mas a morte é certa; entretanto, para os que creem, a morte não é o fim e o túmulo não é nosso último endereço”. Para o cristão, morrer é “deixar o corpo e habitar com o Senhor” (2Co 5:8), é “partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1:23). A morte – chamada de “rei dos terrores” e “último inimigo” – já foi vencida; seu aguilhão foi removido e ela foi tragada pela vitória de Cristo. Jesus “matou a morte” e ressuscitou como primícias dos que dormem. Essa triunfante declaração do evangelho lança um brilho sobre o capítulo de Abraão e Sara: a primeira posse de Abraão em Canaã foi um túmulo, mas do túmulo viria a vitória final.
Alguns comentaristas cristãos veem até um paralelo tipológico: assim como Abraão adquiriu uma sepultura no local onde seria a futura herança do povo de Deus, também Deus preparou em Sua providência um túmulo (o de José de Arimateia) no local – Jerusalém, a Terra Prometida – onde o descendente de Abraão, Jesus, seria sepultado e de onde ressurgiria para inaugurar a conquista da herança celestial. Um autor escreve que, para os cristãos que veem o AT como sombra dos bens futuros, a compra do campo do túmulo em Hebrom aponta para a sepultura de Cristo, o começo da vida. Em Cristo, um túmulo (o dEle) tornou-se o cenário da vitória sobre a morte, assegurando que os túmulos dos crentes não são lugares de derrota, mas de esperança. Quando Abraão comprou Macpela, talvez não imaginasse todos os desdobramentos, mas sua fé apontava na direção certa: Deus há de dar vida onde hoje há morte. Assim, Gênesis 23, lido à luz de toda a revelação, deixa de ser um simples registro fúnebre e passa a ser um testemunho da esperança da ressurreição – esperança esta confessada quando Jacó diz: “enterrem-me com meus pais em Macpela” (Gn 49:29-32), indicando que ele queria aguardar a redenção junto aos seus na terra da promessa.
4. Legado de Integridade e Testemunho: Outro destaque do capítulo é o caráter de Abraão no trato com os hititas. Ele se conduz com notável honra, humildade e honestidade. Mesmo em meio à dor pessoal, Abraão tem presença de espírito para agir com cortesia: ele “se levanta” diante dos habitantes (saindo da posição de luto sentado no chão) e os respeita como autoridades locais, “se curva” diante deles (v.7) – um gesto de deferência e gratidão. Embora ele seja mais abastado e, pela promessa de Deus, verdadeiro dono futuro da terra, Abraão não age com arrogância espiritual do tipo “Deus me prometeu tudo isto, então me deem de graça”. Pelo contrário, ele paga integralmente o preço e faz questão de seguir os costumes legais à risca (negociando à porta da cidade, diante de todos, com pesos corretos). Essa atitude condiz com o princípio bíblico de “procurar ter boa reputação perante os de fora” (1Tm 3:7) e “fazer o bem diante de todos os homens” (Rm 12:17). Abraão deu exemplo de que a fé no Senhor não era desculpa para tratar os homens injustamente. Henry ressalta que a religião genuína anda de mãos dadas com boas maneiras e ética: “a religião procura ensinar boas maneiras”, e ser piedoso jamais justifica ser rude ou trapaceiro nos negócios. Abraão, apesar de sua dor e de sua posição, agradece abundantemente, faz reverência pública a Efrom (v.12) de modo que todos vejam o respeito que ele tem pelo outro. Ele não tenta tirar vantagem nem mesmo de uma oferta espontânea – preferiu pagar. Com isso, ganhou o respeito ainda maior dos hititas. É provável que, dali em diante, Abraão tenha sido visto com ainda mais admiração: um homem justo, que não quis “almoços grátis” à custa alheia. O próprio Efrom, recebendo a reverência de Abraão diante do povo, teria seu prestígio elevado (“para que pudessem respeitar ainda mais a Efrom pelo respeito que Abraão lhe dedicava”). Ou seja, Abraão conseguiu o que queria abençoando a todos no processo: honrou os líderes, honrou o proprietário, pagou o devido e fez um acordo de paz. “Os que temem a Deus adornam sua fé com cortesia e disposição de servir a todos; descobrirão que essa atitude volta como bênção sobre eles”, nota Henry. De fato, Abraão “rega” os outros com bondade e ele mesmo é regado (cf. Pv 11:25). Seu comportamento contrasta com muitos na atualidade (e na antiguidade) que poderiam, numa situação dessas, gerar conflito, ressentimento ou escândalo. Ele nos ensina o valor de proceder com transparência – não houve negociação às escuras, tudo foi aberto. Henry comenta: “os contratos fraudulentos odeiam a luz... mas aqueles que têm propósitos honestos não se importam que haja quem os testemunhe”. Isso é um princípio excelente: quem age corretamente não teme prestar contas. Abraão não tem nada a esconder: pagou, todos viram, fim de questão.
Como resultado, “o nome de Deus é glorificado até entre os pagãos”. Os hititas, pela conduta de Abraão, puderam ver a diferença que a fé faz. Eles o chamaram de “príncipe de Deus” – possivelmente esse título foi dado não apenas por ele ser rico, mas por verem nele virtude e proteção especial. Quando vivemos com integridade, até os incrédulos reconhecem algo de Deus em nós. Da mesma forma, nossas práticas em momentos difíceis (como luto, negociações, etc.) são testemunho poderoso. Abraão, no luto, comportou-se de modo exemplar; nós também, em nossos lutos e transações, devemos refletir a esperança e honestidade cristãs.
5. Aspectos Históricos e Culturais: Por fim, vale mencionar alguns detalhes históricos que enriquecem a compreensão e evitam mal-entendidos doutrinários. Os habitantes locais são chamados de “hititas” ou “filhos de Hete”. Durante um tempo, críticos da Bíblia alegaram que esse termo era anacrônico ou lendário, pois não se conhecia nada sobre hititas fora da Bíblia. Porém, no final do século XIX e início do XX, arqueólogos descobriram os vastos remanescentes do Império Hitita na Anatólia (atual Turquia) – uma civilização poderosa do segundo milênio a.C. Mais ainda, registros egípcios e mesopotâmicos mencionam povos chamados Hatti ou Hete na região de Canaã. A Bíblia parece distinguir dois grupos: os hititas “imperiais” do norte e pequenos grupos hititas em Canaã. Os de Hebrom claramente pertencem a este último caso. Wenham explica que “esses hititas [de Canaã] não refletem os costumes daquele império hitita”, e ademais “têm nomes semitas, não hititas, e Abraão conversava com eles sem intérprete”. Ou seja, provavelmente eram cananeus descendentes de Hete (um dos filhos de Canaã listados em Gn 10:15), integrados à cultura local, nada impedindo sua historicidade. Portanto, não há erro bíblico algum – pelo contrário, Gênesis preserva termos étnicos coerentes com a época. Abraão tratou com esse clã cananeu influente de Hebrom, e isso combina com evidências de que havia sim grupos “hititas” vivendo em cidades de Canaã no tempo dos patriarcas.
Outro ponto: a negociação à porta da cidade. Era costume as cidades terem seus anciãos e cidadãos nobres reunidos no portão para julgar questões, testemunhar contratos, etc. Temos paralelo em Rute 4, quando Boaz trata da compra das terras de Noemi e do casamento com Rute diante dos anciãos à porta. Isso confere ao evento de Gênesis 23 uma aura de autenticidade histórica – o narrador conhece esses costumes e os descreve. Além disso, as fórmulas contratuais mencionadas, como listar as árvores e a expressão “pagou segundo o peso corrente”, encontram eco em documentos comerciais antigos descobertos. O detalhe de “na presença dos filhos de Hete, de todos os que entravam pela porta da cidade” (v.18) mostra quão público e legalmente vinculante foi o acordo. Em vez de contrato escrito, fizeram-no oralmente com muitas testemunhas, o que naquela cultura oral era plenamente válido: uma declaração pública e solene, diante de todos, garantindo o direito de Abraão.
Atualmente, onde se encontra a Caverna de Macpela?

A tradição consistente afirma que a Caverna de Macpela fica em Hebrom, sob o monumento atualmente conhecido como Túmulo dos Patriarcas. Esse lugar é sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos. No século I a.C., o rei Herodes, o Grande, construiu uma imponente estrutura retangular de pedra sobre a gruta – esse edifício ainda está de pé após dois milênios. Durante séculos foi uma basílica bizantina, depois mesquita (Harám al-Khalil, “Santuário do Amigo [de Deus]”, em referência a Abraão) e atualmente é compartilhado (com muita tensão) entre judeus e muçulmanos. Hebrom em si é uma das cidades mais antigas continuamente habitadas do mundo. Chamava-se Quiriate-Arba (possivelmente “Cidade de Arba”, um antigo herói anaquita, ou “Cidade dos Quatro” – talvez quatro clãs). Foi habitada por patriarcas, posteriormente pelos israelitas (Calebe a conquistou – Js 14:14), tornou-se capital de Davi por sete anos e meio antes da tomada de Jerusalém (2Sm 2:1-4; 5:3-5), e até foi o local onde Absalão iniciou sua rebelião contra Davi (2Sm 15:7-10). Hoje, Hebrom fica na Cisjordânia (Território Palestino). Mesmo com tantas vicissitudes históricas, o túmulo dos patriarcas permanece um símbolo palpável da narrativa bíblica – praticamente um memorial de Gênesis 23. Turistas e devotos ainda vão lá para lembrar que ali jazem Abraão e Sara, Isaque e Rebeca, Jacó e Lia. Essa continuidade impressionante testemunha a importância que desde tempos antiquíssimos se atribuiu a esse sepulcro. Os judeus, por exemplo, veneram Macpela como o segundo local mais sagrado, depois apenas do Monte do Templo em Jerusalém, “pois depois do Muro Ocidental, tem-se mantido por toda a história o mais sacro dos monumentos do povo hebreu”. Hoje, porém, os cristãos olham não para aquele sepulcro físico, mas para outro túmulo – o de Cristo – em memória de sua identificação com Ele, observa Wenham. Em outras palavras, nós reverenciamos Macpela pelo que significou na história da redenção, mas já não é ali que repousa nossa esperança; nossa esperança está no túmulo vazio de Jesus.




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