A aliança de Deus com Abrão | Gênesis 15:1–21
- João Pavão
- 1 de set.
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Depois dos eventos intensos da guerra, Abrão experimenta um momento de reflexão e possivelmente de angústia interior, ao perceber que ainda não tinha um filho para herdar as promessas. Deus então lhe concede uma revelação poderosa. “Depois destas coisas, veio a palavra do Senhor a Abrão numa visão” (v.1). A expressão “depois destas coisas” indica uma conexão com a história anterior – de fato, o vocabulário e os temas deste capítulo fazem alusão direta ao capítulo 14 (por exemplo, o termo “entregar/escudo” e “sair” em 15:1,4 remete a 14:20 e 14:18 respectivamente). Abrão talvez temesse retaliações dos reis derrotados ou estivesse preocupado por ter recusado os bens de Sodoma. Deus então diz: “Não temas, Abrão, eu sou o teu escudo, e teu galardão será sobremodo grande” (v.1). Esta é a primeira vez na Bíblia que encontramos o encorajamento “não temas”, frase típica em oráculos de salvação divina. Deus Se revela como protetor militar (“teu escudo”) – confirmando que protegerá Abrão de qualquer vingança e que Ele próprio compensa Abrão pelas riquezas recusadas. Ou seja, “Yahweh mesmo agora confirma o veredito de Melquisedeque” de que foi Deus quem entregou os inimigos a Abrão. Chamar-Se de “escudo” sublinha a metáfora militar, bastante apropriada após a batalha. E ao prometer um “galardão muito grande”, Deus possivelmente se refere à recompensa espiritual e futura (descendência e bênçãos) em contraste com os despojos materiais que Abrão abriu mão.
Abrão, porém, desabafa sua profunda preocupação: “Senhor Deus, que me haverás de dar se continuo sem filhos?” (v.2). Aqui aparece pela primeira vez na Bíblia o título “Adonai Yahweh”, traduzido “Senhor Deus” – expressão rara em Gênesis (só no v.2 e v.8, ambas de Abrão orando). É um modo reverente de dirigir-se a Deus Soberano, comum em intercessões (cf. Gn 18:3,27). Abrão continua: “O herdeiro da minha casa é Eliezer de Damasco... a mim não deste descendência; um servo nascido em minha casa será o meu herdeiro” (vv.2-3). Essas frases são notoriamente difíceis no hebraico. Abrão parece dizer que seu administrador damasceno, Eliezer, acabaria ficando com tudo por falta de um filho legítimo. Há debates quanto ao termo traduzido “herdeiro” (ben meshqî em hebraico) – pode significar literalmente “filho da posse” ou “possessor da minha casa”. Em todo caso, a queixa de Abrão é clara: “não tenho filhos; um estrangeiro nascido na minha casa será meu sucessor”. Isso mostra a tensão entre a promessa divina (de fazer de Abrão uma grande nação) e a realidade atual (Abrão já envelhecido e sem filhos, Sarai estéril). A esterilidade de Sarai já fora mencionada em 11:30, e Abrão relembra que Deus até agora não proveu descendente. Segundo a lógica humana, talvez Abrão estivesse pensando se deveria adotar formalmente Eliezer como filho para cumprir legalmente a sucessão.
Deus, entretanto, imediatamente reitera enfaticamente Sua promessa: “Este não será o teu herdeiro; pelo contrário, aquele que será gerado de ti será o teu herdeiro” (v.4). Literalmente, “aquele que sair das tuas entranhas” – ou seja, um filho biológico. Deus leva Abrão para fora da tenda (era noite) e lhe diz: “Olha agora para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. Assim será a tua posteridade” (v.5). Esse momento solene expande ainda mais a promessa de descendentes. Antes, Deus comparara a descendência ao pó da terra (13:16); agora compara às estrelas do céu. Obviamente, a ideia é de inumerabilidade. A imensidão do firmamento estrelado sem dúvida impressionou Abrão, reforçando que sua descendência ultrapassaria qualquer cálculo humano – seria obra sobrenatural de Deus. “Assim será a tua posteridade” não significa que os filhos de Abrão seriam astros, mas que em quantidade seriam incontáveis como as estrelas. Aqui podemos lembrar que o Novo Testamento vê o cumprimento pleno dessa palavra não só nos israelitas segundo a carne, mas também nos filhos da fé (inclusive gentios) que se tornam descendência de Abraão em Cristo (Rm 4:16-18; Gl 3:29). Em última instância, a “multidão incontável” abrange redimidos de “toda nação, tribo, povo e língua”, como as estrelas e como a areia do mar.
Então vem o versículo-chave do relato: “Ele creu no Senhor, e isso lhe foi creditado como justiça” (v.6). Esta afirmação curta é teologicamente monumental. Abrão creu – no hebraico, a palavra vem da mesma raiz de “amém”, denotando confiar, apoiar-se firmemente. Apesar de todas as evidências em contrário (idade avançada, esterilidade de Sarai, anos de espera), Abrão tomou Deus pelo Seu palavra e depositou fé na promessa do impossível. E Deus imputou essa fé como justiça. Ou seja, Deus considerou Abrão “justo” mediante a fé, antes mesmo de qualquer obra ou do cumprimento concreto da promessa. Essa é a primeira declaração explícita de justificação pela fé na Bíblia. No Pentateuco, a palavra “justiça” (tsedaqáh) normalmente refere-se à conduta reta do homem (p.ex., Ez 18:5-9 faz uma lista de atos do homem justo). Aqui, contudo, Abrão não “pratica” justiça – ele crê, e Deus conta (imputa) essa fé como justiça. É um conceito revolucionário: ao crer, Abrão é declarado justo diante de Deus, sem mérito de obras. Como explica um comentarista, “normalmente a justiça resulta na absolvição por parte do juiz divino; aqui, a fé – que é a resposta certa à revelação de Deus – faz esse papel”. Ou seja, Deus aceitou a fé de Abrão em lugar de um ato de justiça. O Novo Testamento edificará doutrinas vitais sobre este versículo (Rm 4:3, Gl 3:6, Tg 2:23), mostrando que Abraão é o pai da fé e paradigma de como Deus salva o homem – pela graça, mediane a fé, não por obras. Gênesis não detalha como Deus comunicou essa contabilidade a Abrão, mas o contexto sugere que Abrão ganhou paz interior e aprovação divina a partir daquele momento. Importante notar: essa fé de Abrão não era morta, mas viva – mais tarde ela produz frutos de obediência (como veremos no capítulo 22, ele não nega seu filho a Deus). Contudo, o texto enfatiza o aspecto forense: Deus lançou no crédito de Abrão a justiça. Em termos de linguagem, “foi contado” é termo usado em textos legais quando algo é considerado de determinado modo (por exemplo, em Números 18:27,30, a parte dos dízimos que os levitas entregam aos sacerdotes lhes é contada como se fosse oferta própria).
Analogamente, Deus contabilizou a fé de Abrão como cumprimento da exigência de justiça. Em resumo, Abrão estava agora em posição correta diante de Deus, não por feitos grandiosos, mas porque confiou plenamente na palavra do Senhor. Desde já essa “justiça da fé” traz resultado prático: Abrão pode entrar em aliança com Deus e receber revelações mais profundas, pois seu relacionamento com Deus está firmado na confiança.
Tendo assegurado a Abrão um herdeiro, Deus agora formaliza Sua aliança com Abrão, dando garantia quanto à posse da terra prometida. A cena se desenvolve em três partes: (1) diálogo inicial (vv.7-8), (2) rito de sacrifício com simbologia (vv.9-11), e (3) revelação profética com a teofania e a estipulação da aliança (vv.12-21):
Promessa da terra e pedido de sinal (vv.7-8): Deus começa declarando Sua identidade e intenção: “Eu sou o Senhor que te tirei de Ur dos caldeus para te dar esta terra para a possuíres” (v.7). É um enunciado semelhante ao preâmbulo que Deus usará no Êxodo (“Eu sou o Senhor que te tirei do Egito...”), enfatizando que foi Deus quem guiou Abrão desde o princípio com o propósito específico de lhe entregar a terra de Canaã como herança. Abrão, já confiante quanto ao filho, pede um sinal confirmatório sobre a terra: “Senhor Deus, como saberei que hei de possuí-la?” (v.8). Não parece uma incredulidade rebelde, mas o pedido legítimo de confirmação (Gideão e outros fariam pedidos semelhantes). Abrão acreditou na promessa do herdeiro, e agora busca entender o cronograma e garantia da posse da terra, já que ele mesmo ainda era peregrino nela. Em resposta, Deus não repreende Abrão; ao contrário, instrui-o a preparar um rito solene de aliança.
Preparação do rito de aliança (vv.9-11): Deus manda Abrão trazer uma novilha, uma cabra e um carneiro – todos com três anos de idade – mais uma rola e um pombinho. Abrão toma esses animais e os parte pelo meio, colocando as metades de frente uma à outra; apenas as aves ele não divide (v.10). Esse ritual de cortar animais ao meio e colocar as partes opostas tem paralelo em antigas cerimônias de pacto (daí o termo hebraico “cortar uma aliança”). Essencialmente, as partes do acordo passariam pelo caminho ensanguentado entre os pedaços, simbolizando: “Que eu seja dilacerado como estes animais, caso quebre este pacto”. Aqui, Abrão prepara tudo, indicando que ele sabe estar sendo disposto um juramento de sangue. Em seguida, aves de rapina descem sobre os cadáveres, e Abrão as enxota (v.11). Cada elemento aqui possui simbolismo: os animais partidos representam, como que em figura, o próprio povo de Abrão – os futuros sacrifícios de Israel ou os próprios descendentes. As aves de rapina que tentam comer os cadáveres simbolizam os opressores estrangeiros que atacariam os descendentes de Abrão. Abrão protegendo os pedaços prefigura Deus protegendo Israel dos aniquiladores antes do tempo devido. Tudo está montado para Deus selar a aliança.
Êxtase tenebroso e oráculo (vv.12-16): Ao pôr-do-sol, Abrão cai em “sono profundo” (tardemá, mesma palavra do transe de Adão em Gn 2:21) e “eis que grande pavor e densas trevas o acometeram” (v.12). Essa experiência indica a presença sobrenatural de Deus causando temor reverente. Deus então revela a Abrão um panorama profético dos próximos séculos (vv.13-16): Seus descendentes seriam estrangeiros em terra alheia (o Egito), escravizados e oprimidos por 400 anos. Mas Deus julgaria a nação opressora (as pragas do Egito) e libertaria Israel com muitos bens (cumprido em Êx 12:35-36). Quanto a Abrão, morreria em paz e idade avançada antes disso (v.15) – ou seja, ele pessoalmente não veria as tribulações vindouras. Na “quarta geração” os descendentes voltariam a Canaã (v.16). Aqui “geração” provavelmente significa ciclos de vida de aproximadamente 100 anos (já que 4 x 100 = 400), ou refere-se a quatro gerações longas (por exemplo, de Levi a Moisés houve quatro). A razão da demora: “a medida da iniquidade dos amorreus não está ainda cheia” (v.16). Amorreus aqui é sinônimo dos povos cananeus em geral. Deus está deixando claro que a conquista da terra pelos israelitas não ocorreria imediatamente porque Ele, em Sua justiça, só expulsaria aqueles povos quando seus pecados atingissem o auge merecedor de julgamento. Isso mostra Deus como Soberano da história, coordenando tempos de graça e julgamento. Também ensina que a promessa da terra incluía um aspecto moral: os habitantes atuais só seriam despejados quando se tornassem moralmente intoleráveis, justificando a intervenção divina. Assim, Abrão aprende que a posse da terra será de fato dada a seus descendentes, mas não sem antes um período de espera, sofrimento e redenção – um êxodo – tudo sob o controle planejado de Deus. Esta é a primeira profecia clara do cativeiro do Egito e do Êxodo na Bíblia, dada séculos antes.
Teofania do fogo e pacto selado (vv.17-21): Ao cair da noite completamente, Deus manifesta Sua presença de forma visível: “um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo” aparecem e passam entre os pedaços dos animais (v.17). Fumaça e fogo são símbolos tradicionais de Deus (por exemplo, na coluna de nuvem e fogo que guiará Israel no Êxodo, Êx 13:21). Aqui, o “fogareiro” ou fornalha soltando fumaça e a tocha flamejante representam o Senhor percorrendo o caminho do juramento. Notemos: Abrão não passa entre os pedaços – somente Deus, unilateralmente, compromete-Se com a aliança. Ou seja, Deus está jurando por Si mesmo cumprir a promessa, independentemente de ações de Abrão. Isso enfatiza o caráter incondicional ou de graça dessa aliança: seu cumprimento recai sobre Deus. Naquele dia, o Senhor formaliza: “À tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio Eufrates” (v.18). Os limites descritos – possivelmente o “rio do Egito” sendo o Wadi Arish (fronteira do Sinai) ou até o Nilo, e o Eufrates ao norte – delineiam um território vasto, muito além do que Israel efetivamente ocupou na maior parte da história, alcançando apenas no reinado de Davi e Salomão em parte. São citados dez povos existentes na terra (vv.19-21: quenitas, quenizeus, cadmoneus, hititas, perizeus, refains, amorreus, cananeus, girgaseus e jebuseus). Essa lista reforça a certeza do domínio futuro de Israel sobre todos eles – uma garantia detalhada da posse completa de Canaã. Com esse juramento promissório, a cena atinge o clímax: Deus Se vinculou em aliança, respondendo plenamente à pergunta de Abrão (“como saberei?”) com um pacto irrevogável e um vislumbre do plano redentor de longo prazo.
O ritual da aliança em Gn 15 é riquíssimo em simbolismo teológico. Uma interpretação sugerida é a seguinte: Abrão montou as peças sacrificiais que representavam Israel – nos próximos séculos, os descendentes de Abrão serão como sacrifícios vivos, espalhados e maltratados (cortados, por assim dizer) pelas nações; as aves de rapina são as potências gentias (Egito, etc.) tentando devorar Israel, mas a promessa abraâmica os resguarda de serem destruídos completamente (Abrão espantando os abutres). “Depois que Abrão adormece” (ou seja, após sua morte – ele não verá o cumprimento), Deus, figurado pelo fogo fumegante, caminha entre o povo sacrificiado, indicando que Ele estará presente no meio dos sofrimentos de Israel (de fato, no Êxodo Deus estava com Israel na fornalha do Egito, cf. Dt 4:20, e caminhou no meio do mar, etc.). Esse Deus que “passa entre as partes” assume sobre Si a maldição do pacto: em última análise, isso prenuncia que, se necessário, Deus mesmo pagará com sangue para que Seu pacto seja cumprido – o que liga tipologicamente à obra de Cristo (Deus Filho cumprindo a maldição da Lei na cruz para garantir as bênçãos da aliança a Abraão e sua descendência de fé, cf. Gl 3:13-14). Portanto, a aliança abraâmica sela de modo dramático a promessa incondicional de Deus de dar a terra e multiplicar a semente de Abrão, enquanto também aponta para o futuro ato redentor de Deus na história.
Além disso, notamos que neste capítulo Abrão é pintado sob três “ofícios” que anteveem figuras futuras: profeta, sacerdote e rei. Ele é profeta porque recebe a “palavra do Senhor” (15:1) e tem visões revelatórias do futuro (vv.13-16); Deus até o chama de profeta em 20:7. Ele age como sacerdote ao preparar e oferecer sacrifícios a Deus – note que Abrão pessoalmente dispõe os animais do pacto e vigia sobre eles, lembrando posteriormente Moisés (outro profeta-sacerdote) e apontando para a realidade sacrificial que culminaria em Cristo, o sumo sacerdote eterno. E ele é rei em figura, pois no capítulo 14 o vimos vencendo reis e aqui Deus lhe promete um “grande território” como a possessão de um monarca vitorioso. Essa combinação de funções em Abrão é rara mas significativa: somente figuras de primeira grandeza na Bíblia (como Moisés e especialmente Jesus Cristo) acumulam esses papéis. Assim, Abrão prefigura o Messias – rei da justiça e paz (lembrando Melquisedeque), profeta que intercede e recebe oráculos, e sacerdote da fé. O Novo Testamento verá Jesus Cristo como o verdadeiro descendente de Abraão que cumpre todas as promessas (Gl 3:16) e, sendo profeta, sacerdote e rei, traz a bênção da salvação para todas as nações. Os crentes, por sua vez, seguem os passos da fé de Abraão (Rm 4:12) e, no novo pacto, tornam-se também “raça eleita, sacerdócio real” (1Pe 2:9), imitando tanto a Cristo quanto o exemplo do seu antepassado na fé.
Este capítulo é um divisor de águas na história da redenção. Deus certifica Sua promessa com juramento, mostrando a imutabilidade de Seu propósito (cf. Hb 6:17-18). Abrão passa de ouvinte da promessa a parte formal de uma aliança com Deus – a Aliança Abraâmica. A justificação de Abrão pela fé torna-se o modelo pelo qual Deus relaciona-se com os pecadores, e a aliança da graça lançada aqui prosseguirá através de toda a Bíblia até Cristo. Para o próprio Abrão, esse encontro deve ter sido encorajador e ao mesmo tempo desafiador: ele agora sabia que teria um filho de sangue, porém também soube que não veria a conquista da terra por seus descendentes – isso se daria muito depois. Abrão aprendeu que os planos de Deus se cumpririam no tempo determinado e que ele fazia parte de algo bem maior que sua própria vida. Após essa noite escura iluminada pela tocha divina – verdadeiramente “a noite escura da alma” transformada em aliança luminosa – Abrão podia descansar na fidelidade de Deus. Seu “como saberei?” foi respondido não apenas com palavras, mas com um pacto selado pelo próprio Deus. Como escreve um estudioso, “com este juramento promissório, a cena atinge seu clímax e as perguntas de Abrão são respondidas”. A partir daqui, “a fé de Abrão” sustentará suas ações futuras, ainda que não esteja isenta de lapsos (cap.16). Deus mostrou-Se tanto Amigo fiel (justificando Abrão) quanto Senhor soberano (prevendo e governando o futuro). Abrão, por sua vez, é agora plenamente crente e aliado de Deus, vivendo não pela vista das circunstâncias, mas pela confiança no caráter e na palavra do Senhor. Essa é a jornada exemplar que o leitor é convidado a seguir.




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