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O que a Bíblia diz sobre o dízimo?

  • Foto do escritor: João Pavão
    João Pavão
  • 4 de set.
  • 8 min de leitura
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1) Ponto de partida


A discussão cristã sobre dízimo costuma oscilar entre dois extremos: de um lado, ambientes em que “10%” recebe ênfase quase tributária; de outro, lugares onde pouco se fala sobre contribuir. O ponto de equilíbrio bíblico não é a culpa nem a barganha, mas adoração, gratidão e serviço. O Antigo Testamento estabeleceu o dízimo como parte do arranjo cultual de Israel; o Novo Testamento, depois da obra de Cristo, desloca o foco para contribuições proporcionais, regulares, voluntárias e alegres. É essencial fazer justiça ao quadro completo: reconhecer a origem veterotestamentária do dízimo e, ao mesmo tempo, ouvir o padrão apostólico para a igreja, evitando tanto o legalismo quanto a negligência. A partir disso, o cristão aprende a dar não por coação, mas “segundo propôs no coração… porque Deus ama a quem dá com alegria” (2Co 9:7), com a consciência de que “ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela há” (Sl 24:1).


2) Panorama bíblico


Antes da Lei: Os primeiros ecos de “décimo” aparecem antes do Sinai. Abraão oferece o décimo do despojo a Melquisedeque (Gn 14:20), e Jacó promete dar o décimo de tudo o que receber (Gn 28:22). Esses gestos não formam ainda um código universal, mas testemunham resposta voluntária e reverente ao favor divino. O Novo Testamento retomará Abraão em Hebreus 7 para exaltar a superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao levítico. O argumento de Hebreus é teológico, não tributário: o foco está na pessoa de Cristo, não em impor um percentual aos cristãos.


Na Lei de Moisés: Com a aliança mosaica, o dízimo passa a compor o sistema cultual e social de Israel. A palavra hebraica ma‘ăśēr (de ‘āsar, “dar o décimo”) aparece vinculada a três finalidades que a tradição judaica distinguiu: o dízimo levítico para sustento da tribo não proprietária de terras (Nm 18:21–32), o dízimo festivo consumido nas peregrinações diante do Senhor em alegria e partilha (Dt 14:22–27) e o dízimo do terceiro ano, cuja ênfase recai na assistência social a levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 14:28–29; 26:12–13). Isso explica por que alguns intérpretes falam em uma carga efetiva superior a 10% ao longo do ciclo, ao passo que outros entendem haver antes destinações distintas do mesmo décimo em momentos diferentes. Em qualquer leitura, o quadro é claro: trata-se de um arranjo teocrático que financiava culto, ensino levítico e cuidado dos vulneráveis numa economia agrária.


Profetas: Em Malaquias 3:8–10, Deus acusa a nação de “roubo” por reter dízimos e ofertas e conclama o povo a levar aos depósitos do templo o que era devido, com promessa de provisão. O texto é profético e pactual, fala à geração que vivia sob a aliança mosaica e tinha obrigações para com o templo em Jerusalém. A aplicação cristã é analógica: continuamos responsáveis por sustentar a adoração e os pobres, mas já não vivemos sob o sistema levítico, o que veda usar Malaquias como “contrato de prosperidade” ou ameaça tributária.


Jesus e os Evangelhos: Jesus, ainda no contexto da Lei (Gl 4:4), denuncia a hipocrisia farisaica que dizimava até hortaliças enquanto negligenciava “justiça, misericórdia e fidelidade” (Mt 23:23; Lc 11:42). Ele reordena prioridades: o peso da Lei está no amor e na justiça. Essa palavra não implanta um mandamento de 10% para a igreja pós-Páscoa; ela corrige corações legalistas, chamando-os à obediência integral, não seletiva.


O padrão do Novo Testamento: Após a cruz, os apóstolos organizam coletas regulares para missionários e necessitados (At 11:27–30; 1Co 16:1–2; 2Co 8–9; Rm 15:25–27). O vocabulário de Paulo é revelador: “graça” (charis), “serviço” (diakonía), “comunhão/partilha” (koinonía), “propósito deliberado” (proaireō), “alegria” (hilarós). O apóstolo não fixa percentuais, mas estabelece quatro marcas: intencionalidade (“ponha de parte”), regularidade (“no primeiro dia”), proporcionalidade (“conforme a prosperidade”) e liberdade alegre (“não por constrangimento”). O dízimo, como estatuto nacional de Israel, não é imposto à igreja; o espírito da generosidade é elevado, não reduzido.


3) Tópicos-chave e textos muitas vezes citados


Um ponto sensível é a famosa conta de “23,3%”. Ela surge quando se soma, de modo cumulativo, o dízimo levítico, o festivo e o do terceiro ano, distribuídos ao longo do ciclo sabático. Outros estudiosos argumentam que os textos descrevem destinações complementares do mesmo décimo, e não três tributações independentes e fixas todo ano. A discussão, embora interessante, não altera o essencial: o dízimo mosaico pertence à ordem do templo, e a igreja vive da ordem de Cristo.


Outro ponto é a “casa do tesouro” (Ml 3:10): ali eram os armazéns do templo para mantimentos e sustento levítico; na igreja, não existe um prédio sacral equivalente, mas há o dever de sustentar ministério e misericórdia, com boa administração e transparência.


Por fim, Hebreus 7 não legisla sobre porcentagem cristã; ele usa Abraão-Melquisedeque tipologicamente para afirmar que o sacerdócio de Jesus é superior e definitivo.


4) História da Igreja


Logo nos séculos iniciais, comunidades cristãs cultivaram coletas fixas em favor dos necessitados e do ministério, ecoando 1Co 16 e 2Co 8–9. Entre Pais da Igreja, vê-se o apelo à generosidade sem tarifa, muitas vezes com exemplos de ofertas para além de 10% quando as circunstâncias exigiam. Com a cristandade medieval e, mais tarde, com contextos estatais, surgiram mecanismos paratributários associados ao clero e ao patrimônio eclesiástico — experiências históricas que não devem ser confundidas com mandamentos apostólicos.


Reformadores e puritanos retomaram o tema da mordomia: é dever cristão sustentar Palavra e sacramentos e socorrer os pobres. Em muitos ambientes, o “dízimo” reapareceu como regra de sabedoria e disciplina espiritual para educar o coração contra a avareza e dar previsibilidade à missão, sempre com a advertência de que a norma do NT é a generosidade segundo a graça, não uma tarifa automática.


5) Correntes denominacionais


Presbiteriano/calvinista

costuma-se ensinar que o cristão deve dar de modo regular, proporcional e consciente, e muitos líderes recomendam 10% como “piso prudencial” para disciplinar o coração, sem atribuir ao número a força de lei neotestamentária. Há vozes reformadas que defendem a continuidade moral do dízimo; há outras que, seguindo 2Co 8–9, falam em liberdade proporcional como norma, mantendo o 10% apenas como meta útil.

Metodista

incorporou uma pedagógica cultura de generosidade. Seguindo o ethos de John Wesley — “ganhe tudo o que puder, poupe tudo o que puder, dê tudo o que puder” — muitas igrejas metodistas apresentam o dízimo como meta formativa, atrelada à santidade prática e à missão, sem transformá-lo em condição de comunhão.

Pentecostal

especialmente em ramos clássicos, é comum a defesa pastoral explícita do dízimo como prática regular para sustentar a obra e como gesto de confiança em Deus. A ênfase devocional é forte, com apelos a Malaquias e ao cuidado com os necessitados, variando, entretanto, a linguagem e a rigidez conforme a denominação e a região.

Batista

documentos confessionais enfatizam a mordomia responsável: contribuir de modo alegre, regular, proporcional e liberal. Em convenções como a SBC, há resoluções de encorajamento aos dizimistas e de chamado à fidelidade generosa, sem que um percentual seja elevado a dogma.

Luterana

privilegia a linguagem da graça que move a dádiva. Ensina-se que dar é resposta livre e jubilosa ao evangelho; o dízimo pode ser boa regra para a disciplina cristã, mas não uma imposição legal. A prioridade pastoral é formar consciências, não estabelecer tarifas.

Puritana

legaram um ethos de liberalidade disciplinada: sustentar os encargos da igreja e socorrer os pobres era parte do dever cristão. Escritores como Richard Baxter falam em distribuir recursos com prudência proporcional, equilibrando deveres para com a família, as autoridades e a casa de Deus — mais uma vez, não como tabela fixa, mas como consciência cativa à Palavra.

Anglicana

documentos de mordomia frequentemente sugerem metas percentuais (por exemplo, dedicar uma fração da renda para a paróquia e outra para outras causas), sempre ancoradas em prestação de contas, planejamento paroquial e formação do coração generoso.

Católica

não estabelece 10% como norma universal; o preceito eclesial é “prover as necessidades da Igreja”, deixando a quantia à consciência bem formada, ao ensino pastoral e às circunstâncias. O eixo está na caridade ordenada: culto, ministros e pobres.

Adventista

o dízimo de 10% é doutrina afirmada como “do Senhor” e devolvido ao “storehouse” (tesouro denominacional) para sustento do ministério, ao lado de ofertas para projetos missionários e de misericórdia.

Congregacionais

 costumam apresentar o dízimo como disciplina espiritual recomendada e objetivo pedagógico, sublinhando a liberdade da igreja local e a responsabilidade do membro em planejar uma vida generosa.

6) Princípios práticos


A régua do Novo Testamento é clara: dar com intenção, regularidade, proporcionalidade e alegria. Isso significa separar com antecedência, na cadência do seu contexto (semanal ou mensal), uma porção que reflita sua prosperidade atual e as necessidades reais da igreja e dos pobres. Para muitos, 10% funciona como excelente ponto de partida, educando o coração contra a avareza e dando previsibilidade à missão.


Para outros, em fases de escassez, começar abaixo e crescer ao longo do tempo é mais honesto do que prometer o que não se pode cumprir; em tempos de abundância, a generosidade supera com naturalidade a antiga marca. Em qualquer cenário, a prática cristã inclui boa administração e transparência: quem dá adora a Deus, e quem administra o faz como mordomo fiel.


É pastoralmente saudável lembrar que não existe “oferta mágica” que compra bênçãos; existe fé obediente que se traduz em partilha efetiva para a Palavra, os sacramentos, a missão e os que sofrem.


7) Respostas rápidas a dúvidas comuns


O cristão é obrigado a dar 10%? O Novo Testamento não impõe um percentual. Ele convoca a generosidade proporcional. Muitos adotam 10% como regra de sabedoria; não é um grilhão, mas um guia formativo.


Malaquias 3:1 0 ainda se aplica? Aplica-se por analogia, não por transplante literal. O “depósito” era o templo; hoje, a aplicação é sustentar ministério e misericórdia com fidelidade e transparência, sem transformar o texto em contrato de prosperidade.


E se não posso dar 10% agora? Comece com honestidade e regularidade, organize-se, peça sabedoria e cresça. A medida é a graça recebida e a capacidade atual, não a comparação com os outros.


Para onde devo direcionar? A prioridade natural é a igreja local que te pastoreia, sem esquecer missões e pobres. O Novo Testamento une adoração e misericórdia.


Deus me abençoará se eu der? Deus promete cuidar de seus filhos. Mas dar não é barganhar; é adorar. A maior recompensa é participar da obra de Deus e ver o evangelho avançar.


8) Aplicação para hoje


A pergunta decisiva não é “quanto?”, mas “quem governa meu coração e meus bens?”. Se Cristo é o Senhor, a carteira se torna altar. Ore antes de decidir, peça luz para propor no coração o que é íntegro e sustentável, e comece com regularidade. Se a régua de 10% te ajuda a ordenar a vida, abrace-a como disciplina formativa; se Deus te dá mais, deixe a graça transbordar; se te dá menos, não ceda à culpa, mas persevere com fidelidade. Lembre-se de que toda contribuição é ato de esperança: cada real consagrado afirma que o Reino vale mais do que a ansiedade e que as pessoas valem mais do que as coisas. Em tempos de consumo voraz, a generosidade cristã é contracultural e luminosa. Que o Espírito alinhe nossas contas ao evangelho, para que a Palavra corra, os pobres sejam visitados e Cristo seja honrado — “porque Deus ama a quem dá com alegria”.

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